Julio Jeha*
Especial para o Estado de Minas

Quando um autor se apropria de uma obra preexistente e lhe d� outra forma, outro significado, como fizeram as dezenas de dramaturgos que recontaram a hist�ria de Pigmale�o e Galateia, isso � pl�gio ou � apenas a literatura como ela sempre foi?
J� na “B�blia”, o autor do Eclesiastes declarava: “O que foi tornar� a ser, o que foi feito se far� novamente; n�o h� nada novo debaixo do sol”. Tal constata��o milenar est� no cerne do romance “Navalhas pendentes”, de Paulo Rosenbaum, atualizada com algoritmos e mercados globais, intelig�ncia artificial e autores inc�gnitos.
A literatura fala do ser humano no mundo. A literatura fala de si mesma. Esse aparente paradoxo se dissolve ao pensarmos em qualquer obra de fic��o: se � da humanidade que se trata, ent�o toda vez que o texto liter�rio se refere a outro texto semelhante, ele est� se referindo, tamb�m, � experi�ncia humana.
Isso se torna claro no romance de Rosenbaum, porque, al�m de outras quest�es, trata de originalidade e pl�gio, mercado e criatividade, mem�ria e fic��o, intelig�ncia artificial e o que significa ser humano. Acrescentem-se os conceitos de autorrefer�ncia e recurs�o, e teremos uma obra do nosso tempo que discute a natureza da literatura, mas que se aplica igualmente a outras artes.
MANUSCRITOS
Rosenbaum tece uma bem-urdida hist�ria em torno de uma editora que produz mais best-sellers do que seria razo�vel, escritos principalmente por Karel F., um autor que ningu�m sabe quem �. Quando o personagem Homero Arp Montefiore � contratado para avaliar manuscritos submetidos � publica��o, as coisas come�am a se complicar.
Ele desconfia de que algo il�cito est� acontecendo no rec�ndito da editora. A trama se adensa quando uma das maiores casas editoriais do mundo prop�e uma fus�o com sua cong�nere nacional. Assassinatos, fugas e desaparecimentos ocorrem, assim como a culpabiliza��o do narrador, que busca entender o que lhe est� ocorrendo.
Homero � o nome do narrador de “Navalhas pendentes'', mas tamb�m � o do suposto fundador da literatura europeia, de cuja obra deriva tudo o que escrevemos e lemos at� hoje. Outra refer�ncia liter�ria � Karel, t�o inc�gnito quanto Elena Ferrante, pseud�nimo de uma escritora italiana, tamb�m autora de best-sellers, t�o elusiva quanto o autor brasileiro.
Esse autor, supostamente brasileiro, tem o mesmo nome de Karel Capek, escritor tcheco que escreveu a pe�a “R.U.R. (Rob�s Universais de Rossum)” em 1920, sobre a robotiza��o de oper�rios. Seria coincid�ncia, no enredo, Homero submeter, sob pseud�nimo, “A f�brica de rob�s latinos” para avalia��o da editora? Ou ele est� recorrendo ao que j� foi feito para criar uma obra para outro mercado em contexto diverso daquele em que a palavra “rob�” foi primeiro introduzida?
Talvez a no��o que mais ocupe o narrador seja a da mem�ria, que aparece sob diversas formas no texto, associadas quase sempre � recupera��o dos eventos que lhe aconteceram e que o incriminam. As refer�ncias ao passado se d�o tamb�m quando ele tenta se reconhecer como indiv�duo, numa poss�vel caracteriza��o de si mesmo como uma personagem em uma trama.
Por�m, como hoje sabemos, a mem�ria recria mais do que repete o acontecido. Ent�o, o Homero apresentado ao leitor � verdadeiro, num mundo ficcional, ou � recriado por um processo imaginativo, tal como um autor cria suas personagens? Seria a narrativa de Homero autofic��o dentro da fic��o?
ALGORITMO
Essas e outras perguntas v�o encontrar respostas no algoritmo encomendado pela editora holandesa, o verdadeiro gerador dos in�meros best-sellers mundiais. A partir de manuscritos rejeitados, o programa consegue combinar trechos em textos org�nicos que fazem sentido e provocam emo��es nos leitores. O algoritmo precisou aprender n�o apenas sobre logos, mas tamb�m sobre p�thos para que seus livros pudessem passar por obras escritas por humanos.
Voltamos aos par�grafos iniciais desta resenha: a combina��o de textos preexistentes para dar � luz outros � pl�gio ou apenas uma releitura, uma reciclagem de elementos do nosso reposit�rio cultural? Shakespeare usou material de autores anteriores para criar suas pe�as, e n�o se fala de c�pia. Afinal, a significa��o depende do contexto – nenhum signo tem sentido no vazio.
Essa capacidade recursiva da literatura se alia � de autorrefer�ncia no final de “Navalhas pendentes” para surpreender o leitor, que n�o deveria se espantar em vista do que a narrativa vinha indicando.
Falar mais revelaria o desfecho que Paulo Rosenbaum d� ao livro. Basta dizer que, a partir da forma do romance de enigma, o autor atualiza a discuss�o tanto do fazer liter�rio quanto do mercado editorial. E o faz numa narrativa fluida que alia quest�es �ticas e est�ticas a den�ncias pol�ticas.
*Julio Jeha � professor de literaturas de l�ngua inglesa na Faculdade de Letras da UFMG

“NAVALHAS PENDENTES”
• Paulo Rosenbaum
• Caravana Grupo Editorial (328 p�gs.)
• R$ 62,90