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Estado de Minas LITERATURA

Livro conta hist�rias da censura � MPB com novas revela��es dos censurados

'Morda�a: Hist�rias de m�sica e censura em tempos autorit�rios' traz depoimentos de 29 artistas brasileiros que viveram a experi�ncia da censura


26/12/2021 04:00 - atualizado 26/12/2021 07:58

Multidão toma conta das ruas do Rio de Janeiro na passeata dos 100 mil, exibindo faixas contra a ditadura
Escrito pelos jornalistas Jo�o Pimentel e Z� McGill, o volume estava previsto para 2018, nos 50 anos do AI-5, decretado em 1968, ano da Passeata dos 100 Mil (foto: Evandro Teixeira/CPDOC/JB)
Em 1972, rec�m-chegado de Londres, Caetano Veloso iniciou uma turn� do �lbum “Transa”, gravado no per�odo do ex�lio. Em Salvador, recebeu uma intima��o para que se apresentasse antes do show para um censor. Encontrou-o na figura de seu antigo professor de metaf�sica do curso de filosofia. Era o antigo padre Pinheiro, que havia largado a batina e iniciado carreira no �rg�o de fiscaliza��o e repress�o da ditadura militar (1964-1985).

O ex-padre encasquetou com uma m�sica, “Nine out of ten”. Queria suspender o show por causa do primeiro verso, “I walk down Portobello Road to the sound of reggae” (“Eu des�o a Portobello Road ao som do reggae”). Pinheiro e sua equipe haviam feito extensa pesquisa e n�o encontraram um significado para reggae. Se n�o sabiam o que era, melhor reprimir. 

Caetano tentou dissuadi-lo, dizendo que aquele era um ritmo novo, jamaicano, que ele conheceu em Portobello Road e que a palavra ainda n�o estava no dicion�rio. O ex-religioso aceitou o argumento com uma condi��o: se o ex-aluno estivesse mentindo, ele seria preso de novo.

Tal acontecimento, 50 anos mais tarde, diz muito sobre amea�a, medo, mediocridade, ignor�ncia, pequeno poder, tudo o que acompanhou um dos per�odos mais repressivos da hist�ria brasileira. Mas o caso, contado de forma aned�tica pelo pr�prio Caetano, � uma forma de apresentar “Morda�a: Hist�rias de m�sica e censura em tempos autorit�rios” (Sonora Editora), dos jornalistas Jo�o Pimentel e Z� McGill.

NOVIDADES 


O tema, como um todo, j� foi tratado em livros, pesquisas, document�rios e entrevistas. Mas o formato � in�dito – e muitas das hist�rias reunidas, que v�m agora � tona pela voz dos pr�prios censurados, ganham nova luz. A ditadura, a pris�o e o ex�lio s�o assuntos que o pr�prio Caetano tratou em outras ocasi�es – como no recente document�rio “Narciso em f�rias” (2020). A hist�ria do reggae, no entanto, � nova. E casos assim v�o surgindo nas p�ginas do livro.

“Morda�a” re�ne 29 cap�tulos que se referem a 29 compositores atingidos pela tesoura da censura: Chico Buarque, Odair Jos�, Gilberto Gil, Beth Carvalho, Joyce, Jorge Mautner, Marcos Valle, L�o Jaime, entre outros. E n�o s� durante o per�odo militar, vale dizer, ainda que os depoimentos do per�odo formem a maior parte do volume. H� ecos at� a atualidade, como revela o rapper BNeg�o em um dos �ltimos relatos da obra, citando caso ocorrido em 2019, em Bonito, no Mato Grosso do Sul.

No final de 2017, a dupla de jornalistas cariocas, que n�o se conhecia, foi convidada pela Sonora para fazer o livro. A inten��o da editora era lan�ar o volume no final de 2018, com o recorte da censura decorrente do Ato Institucional N�mero 5 (AI-5), que inaugurou o per�odo mais sangrento da ditadura e completaria 50 anos em dezembro daquele ano.

“Logo vimos que n�o conseguir�amos entregar o livro a tempo. No meu caso, no in�cio n�o me empolguei, pois a quest�o da censura j� havia sido muito falada. Mas quando comecei as pesquisas e entrevistas, me fiz uma pergunta que voltava sempre: como � poss�vel que ningu�m tenha escrito um livro como este at� agora?”, comenta Z� McGill. Ou seja, o tema permeou v�rias obras, mas n�o da maneira como a dupla se prop�s a trabalhar.

Para Jo�o Pimentel, a percep��o de como o livro poderia vir a ser chegou durante uma das primeiras entrevistas para a obra. Conversando com Joyce, perguntou a ela do que se lembrava da virada de 31 de mar�o para 1º. de abril de 1964, quando houve o golpe militar. “Ela me disse que era uma menina que gostava de praia, viol�o e bossa nova, e a �nica lembran�a que tinha era de que, como morava em um pr�dio em Copacabana onde havia muitos funcion�rios p�blicos, se recorda deles acendendo velas, rezando e tomando vinho do Porto.”

Em 1968, Pimentel conta, Joyce era outra pessoa. “Ela deu um salto, tornou-se a primeira compositora a tratar da quest�o feminista, se transformou muito.” A conversa foi seguindo e chegou at� os tempos atuais, quando a dupla comentou que, depois de tudo o que aconteceu, ocorreu uma “volta ao pensamento obscuro, a uma tentativa de persegui��o � arte, � cultura e ao pensamento.” Pimentel deixou a entrevista sabendo que havia encontrado o fio para desenvolver o livro.

TORTURA


“O assunto, para quem viveu uma ditadura, como o Geraldo Azevedo, que sofreu tortura, � muito dif�cil. Mas acho que este momento (da gest�o Bolsonaro) fez com que as pessoas ficassem com mais vontade de falar. Acho que ‘Morda�a’ � tamb�m um livro para voc� lembrar que muita coisa ruim existiu”, afirma Pimentel. “Fiquei com a sensa��o de que muitos dos entrevistados estavam com o assunto censura entalado na garganta e s� esperando que algu�m perguntasse a eles”, comenta McGill.

Os autores decidiram incluir somente hist�rias de personagens censurados vivos que pudessem (e quisessem) dar o seu depoimento para o livro. Houve algumas tentativas frustradas, caso de Rita Lee, Milton Nascimento, �ngela R� R�. Mas a cole��o de depoimentos – e a riqueza de detalhes de v�rios deles – preenche eventuais lacunas.

“Tentei muito falar com o Aldir (Blanc), que era amigo meu, mas, nos �ltimos dois, tr�s anos ele quase n�o falou com ningu�m, estava deprimido. ‘O b�bado e o equilibrista’ foi o hino da Anistia, ent�o ele tinha que aparecer de forma mais consistente no livro”, diz Pimentel. Ele fez uma longa entrevista com Jo�o Bosco, que falou da rela��o com a censura e de outra personagem essencial para a hist�ria, Elis Regina.

Os textos, divididos entre cada um dos dois autores, v�o se revelando aos poucos. Chico Buarque, um dos autores mais censurados, sofreu a primeira canetada em 1966, com “Tamandar�”. Edu Lobo � um caso �nico: teve duas instrumentais censuradas, “Casa forte” e “Zanzibar” (com isso, os autores apontam para a total falta de no��o das pessoas que integravam os �rg�os de repress�o). 

Evandro Mesquita ri ao relembrar que fez os censores dormirem. Em 1977, o futuro vocalista da Blitz era integrante da trupe Asdr�bal Trouxe o Trombone. Antes das apresenta��es teatrais, os censores tinham que assistir ao espet�culo. Pois ele durava quatro horas e meia – quando Mesquita olhou para a plateia, dois censores haviam pegado no sono. Caetano, antes de ser preso com Gil no fim de 1968, nunca havia tido uma can��o censurada.

CENSORES


Os autores tentaram contato tamb�m com antigos censores – n�o conseguiram falar com ningu�m. Mas uma das figuras “do lado de l�” que mais marca presen�a no livro � Solange Hernandez, conhecida como Dona Solange ou “Tesourinha”. Entre 1981 e 1984, � frente da Divis�o de Censura de Divers�es P�blicas (DCDP), ela interditou 2,5 mil can��es.

Uma de suas principais v�timas foi L�o Jaime. Os dois nunca se viram, o compositor conta, mas acabaram desenvolvendo uma rela��o, com troca de bilhetes e uma jocosa homenagem. Nos anos 1980, conta L�o Jaime, ele dividia apartamento com Leoni. Um dia, vendo uma partitura do The Police, L�o gritou para Leoni do quarto: “Que m�sica � essa, ‘So lonely’?” 

O companheiro, sem ouvir direito, respondeu perguntando: “Solange?”. Foi o que bastou para que L�o tivesse o estalo para a can��o que homenageou a censora: “Voc� � bem capaz de achar/Que o que eu mais gosto de fazer/Talvez s� d� para liberar/Com cortes para depois do altar/Solange, Solange, Solange”. A “Tesourinha” adorou e n�o tirou uma v�rgula.

Falando de tempos mais recentes, o livro chega a hist�rias p�s-ditadura, como a ruidosa pris�o do Planet Hemp em 1997 por apologia � maconha – o caso come�ou em Belo Horizonte, onde a banda foi detida durante a madrugada do show que faria, e prosseguiu em Bras�lia, onde os integrantes ficaram presos por cinco dias.

O relato � feito por BNeg�o, que, 22 anos mais tarde, sofreu com censura em um show no Festival de Inverno de Bonito, interrompido pela pol�cia local – o estopim teria sido a agress�o que um produtor local havia sofrido na noite anterior. “Vimos que ter�amos que deixar claro que a censura n�o � s� da �poca da ditadura, ainda que seu auge tenha sido naquele per�odo”, afirma McGill. 

Tanto que os autores escreveram o posf�cio, “Censura nos anos Bolsonaro”, em que recuperam casos de repress�o pol�tica em atividades e produ��es culturais do per�odo mais recente. S�o exemplos o adiamento de dois anos para o lan�amento do filme “Marighella”; o cancelamento da exposi��o “Queermuseu”, em Porto Alegre; o ataque sofrido pela produtora Porta dos Fundos ap�s o lan�amento do filme “A primeira tenta��o de Cristo”, que foi tirado do ar pela Netflix por liminar da Justi�a carioca. 
capa do livro 'MORDAÇA: HISTÓRIAS DE MÚSICA E CENSURA EM TEMPOS AUTORITÁRIOS'

“MORDA�A: HIST�RIAS DE M�SICA E CENSURA EM TEMPOS AUTORIT�RIOS”
Jo�o Pimentel e Z� McGill
Sonora Editora 
(340 p�gs.)
R$ 69,90


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