Plataformas de streaming s�o 'faca de dois gumes' para o cinema brasileiro
Empresas financiam filmes em meio � inoper�ncia da Ancine e de mecanismos p�blicos de incentivo, mas modelo adotado por elas pode prejudicar a cria��o autoral
''Que horas ela volta?'' entrou para o cat�logo "Mais Brasil na tela", da Netflix. A diretora Anna Muylaert comemora, mas defende regula��o das atividades das plataformas no pa�s (foto: Netflix/divulga��o)
Importantes filmes brasileiros dos anos 2000 a 2010 – como “Que horas ela volta?”, “O c�u de Suely” e “Cidade Baixa” – chegaram recentemente ao card�pio da Netflix. A plataforma apresentou, h� cerca de um m�s, o cat�logo “Mais Brasil na tela”, que trata de 40 produ��es, entre s�ries, filmes e document�rios, que estar�o dispon�veis ao longo do ano. Esse cen�rio evidencia que a Netflix e outros servi�os de streaming representam, atualmente, potente motor para a produ��o audiovisual brasileira.
O assinante conta com centenas de op��es de t�tulos. As produ��es pr�prias da plataforma, como “3%”, “Coisa mais linda”, “Pai em dobro” ou “Confiss�es de uma garota exclu�da”, seguem ganhando cada vez mais espa�o. No cen�rio de paralisia da Ancine e falta – ou precariedade – de mecanismos de financiamento p�blico para a produ��o audiovisual, plataformas ocupam lugar hegem�nico no panorama brasileiro, o que preocupa alguns cineastas.
Criada para a Netflix, a s�rie ''3%'' chegou � quarta temporada e abriu caminho para produ��es originais da plataforma no Brasil (foto: Netflix/divulga��o)
FRAGILIDADE
Em entrevista recente, Fernando Meirelles, diretor de “Cidade de Deus”, chamou a aten��o para o fato de que, no contexto da pandemia e de fragilidade das pol�ticas p�blicas voltadas para o setor, a cadeia produtiva do audiovisual se manteve ativa, principalmente gra�as �s plataformas.
Diretora de “Que horas ela volta?”, Anna Muylaert concorda, mas pondera que ficar dependente dos servi�os de streaming n�o � ben�fico nem para os cineastas nem para o p�blico.
“Tem duas quest�es a�: a da exibi��o e a da produ��o, que se constitui hoje no ponto mais importante. A Ancine est� parada, o Fundo Setorial represado, ent�o quem est� produzindo s�o as plataformas, e elas t�m um modelo de neg�cio em que voc� d� tudo, tanto em s�rie quanto em filme. Voc� passa a ser prestador de servi�o. As plataformas est�o entrando no pa�s da mesma forma como os portugueses chegaram em terras brasileiras; tudo � delas”, aponta Anna.
"Durante a pandemia, s� trabalhou quem fez s�rie ou filme para a Netflix e outras plataformas. Isso tem impacto, elas est�o formando gente, querem produzir mais no futuro, mas � aquela hist�ria: o audiovisual est� deixando de ser o que era, algo mais artesanal, com uma ideia de autoria, para virar mais um neg�cio tipo padaria"
Anna Muylaert, cineasta
De acordo com a diretora, cabe dar a devida import�ncia �s plataformas no atual ecossistema do audiovisual, mas � necess�rio haver processo de regula��o, como o que est� em curso na Fran�a, para que se resguarde o direito do autor. “Vai caber aos governos de cada pa�s criarem uma legisla��o para proteger os autores”, destaca.
“Durante a pandemia, s� trabalhou quem fez s�rie ou filme para a Netflix e outras plataformas. Isso tem impacto, elas est�o formando gente, querem produzir mais no futuro, mas � aquela hist�ria: o audiovisual est� deixando de ser o que era, algo mais artesanal, com uma ideia de autoria, para virar mais um neg�cio tipo padaria”, adverte.
No quesito exibi��o, Anna Muylaert diz que as plataformas cumprem papel importante ao abrir espa�o para diferentes produtos. “Estar na Netflix � �timo para ‘Que horas ela volta?’, porque ele j� estava no final da carreira de janela. Foi para o cinema, TV paga, TV aberta e agora est� l� no card�pio da Netflix. Isso � �timo, mas se a plataforma ganha dinheiro com um filme do qual sou s�cia, eu tamb�m devo ganhar. Nesse caso espec�fico, a gente ganhou, o produtor ganha, mas, no Brasil, todo filme que � produzido por eles � 100% deles”, destaca.
CHEFE DE CRIA��O
A cineasta observa que o streaming mudou completamente o panorama do audiovisual de 10 anos para c�. Atualmente, as plataformas s�o chefes de cria��o durante todo o ano, com volume incessante de produ��o. O reflexo disso � as pessoas passarem a consumir filmes e s�ries de maneira um tanto obsessiva.
“Tem gente que v� tr�s filmes por dia ou inicia uma nova s�rie toda semana. Na minha adolesc�ncia, voc� ia de vez em quando ao cinema e depois tinha o per�odo para ficar depurando aquilo. Hoje voc� tem uma forma de consumir mais superficial. N�o digo nem que � melhor ou pior, mas � tanto filme que a gente nem se lembra do que assistiu h� pouco tempo. O ser humano est� consumindo audiovisual num ritmo compulsivo, ent�o s�o produ��es feitas menos para gerar reflex�es e mais para matar o tempo. Isso � ruim”, considera.
SISTEMA ALGOR�TMICO
O volume massivo de produ��o e a forma de consumo que ele gera � fruto da equa��o algor�tmica elaborada pelas plataformas sobre seus produtos, lembra Anna. “Vi um an�ncio da Netflix falando de 15 lan�amentos na semana. O mundo est� entrando no ritmo de consumo de telas, o que inclui celular na m�o o tempo inteiro, que redunda na supervaloriza��o da imagem em detrimento do real. Fui a Nova York recentemente, e a maior loja de brinquedos da cidade fechou, virou loja da Apple”, conta.
Luis Navarro faz o papel de Biriba, protagonista da s�rie 'Pico da Neblina', dirigida por Fernando Meirelles para a HBO (foto: HBO/divulga��o)
Em entrevista recente, Fernando Meirelles observou que com a chegada de novas plataformas, como Amazon, Apple TV+, Disney , Star , o mercado vem se adaptando para atender a esse crescimento na demanda por conte�do. Rodando a s�rie “Pico da Neblina” para a HBO, ele revelou dificuldades para conseguir montadores, fot�grafos, produtores-executivos, assistentes de dire��o e at� mesmo equipamentos.
Anna Muylaert concorda que se n�o fosse pelas plataformas, o cinema brasileiro poderia sofrer a mesma debilidade que se viu no governo Fernando Collor, quando a Embrafilme foi fechada. “Naquele momento, as pessoas ficaram sem trabalho, um (cineasta) foi para a publicidade, outro para a literatura, outro para o teatro. O cinema tinha acabado mesmo. Com a Ancine em estado de suspens�o, ter�amos cen�rio similar ao daquela �poca, com as pessoas sem trabalho. O streaming segurou a onda”, diz.
O lado perverso disso, ela aponta, � a depend�ncia em rela��o a essas empresas. “O produtor ganha um cach� e acabou, o autor ganha um cach� e acabou. Cada vez mais, as plataformas s�o donas dos meios de produ��o e os criadores ficam no papel de meros funcion�rios, figurantes. Nessa toada, daqui a pouco n�o vai mais existir poesia, s� algoritmo. E tamb�m n�o vai mais ter direito autoral”, salienta.
Este ano, Anna Muylaert filma “no modelo antigo” – com direito a Fundo Setorial, amparo da Ancine e apoio da Globo Filmes – o longa “Clube das mulheres de neg�cio”. “Nesse caso, n�s, produtores, somos os donos do filme”, explica. Em 2023, ela far� filme “no novo modelo” – escreve e dirige, mas n�o � dona de nada. “Aceitei porque � o que temos para o momento”, diz.
“O cinema com incentivo fica � merc� de quem incentiva, do que acontece politicamente no pa�s. A gente estava no auge, o cinema brasileiro presente em todos os grandes festivais do mundo. Mas a� parou tudo, e j� vimos esse filme na era Collor. Tudo na vida tem lado A e lado B. O streaming tem o lado A, que � o fomento � produ��o, mas tem o lado B, porque s�o, na maioria, empresas norte-americanas que v�o impor a forma de trabalho deles, com vistas a um produto que interessa a eles promover”, diz.
Jasmin Tenucci, premiada em Cannes em 2021, com a diretora Tang Hi, que levou o trof�u de melhor curta com ''All the crows in the world'' (foto: John Macdougall/AFP/17/7/21)
SOBREVIV�NCIA
Diretora do curta “C�u de agosto”, que ganhou men��o especial no Festival de Cannes do ano passado, a cineasta Jasmin Tenucci atualmente trabalha no roteiro de uma com�dia rom�ntica jovem para a Netflix. Ela concorda, em muitos aspectos, com Anna Muylaert.
“No Brasil, como as leis de incentivo � cultura foram sendo minadas, por um lado as plataformas garantiram emprego, a sobreviv�ncia de uma ind�stria. Ent�o, teve esse aspecto saud�vel de manter todo mundo empregado, o mercado funcionando, com produtos sendo lan�ados. Por outro lado, a plataforma de streaming produz determinado tipo de produto muito espec�fico, definido por algoritmo, o que � preocupante”, diz.
“Elas seguraram a onda por um tempo importante, para que a ind�stria n�o parasse, mas isso n�o pode seguir como algo hegem�nico”, aponta, chamando a aten��o para o fato de que tais empresas cumprem simultaneamente o papel de produtoras, distribuidoras e exibidoras. “Tomam conta de toda a cadeia.”
MUDAN�A
Para Jasmin, o mais ben�fico para o setor � a cria��o de mecanismos de financiamento, para que realizadores e p�blico n�o estejam sujeitos a lidar apenas com conte�do ditado pelas plataformas.
“Esses mecanismos at� existem, s� est�o inoperantes neste atual momento. Precisamos voltar a contar com eles. � saud�vel para a ind�stria poder contar tanto com as plataformas quanto com as leis de incentivo”, afirma a diretora.
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