
Para o pesquisador Danilo Cymrot, embora o funk fa�a um estrondoso sucesso no Brasil e no exterior, o g�nero musical continua enfrentando um processo de ataques e persegui��o inclusive da lei. Para ele, a ascens�o de funkeiros como Anitta, hoje a artista brasileira mais conhecida fora do pa�s, n�o impede que o estilo sofra com criminaliza��o e repress�o policial.
"Acho que existe uma s�ndrome de vira-lata tamb�m, que n�o valoriza nossa produ��o", disse em entrevista � BBC News Brasil.
Danilo Cymrot � mestre e doutor em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da USP. Desde 2013 ele � pesquisador do Centro de Pesquisa e Forma��o do Sesc S�o Paulo. No m�s passado, Cymrot lan�ou o livro O Funk na Batida (Edi��es Sesc), sobre a hist�ria da criminaliza��o do funk por meio de projetos de lei que tentam disciplinar, proibir e censurar o g�nero.
A obra mostra como o ritmo, desenvolvido nas periferias do Rio de Janeiro e de S�o Paulo, passou a ser associado � criminalidade e � viol�ncia, sofrendo persegui��o da m�dia e de parlamentares - tanto de direita como de esquerda.
Na entrevista, o autor falou sobre o hist�rico de estigmatiza��o do funk nos anos 1990, o papel de parlamentares na cria��o de leis que dificultaram a realiza��o dos bailes e o chamado funk proibid�o, que aposta em letras sobre a viol�ncia na periferia e fac��es criminosas.
Por outro lado, Cymrot tamb�m comentou como os rolezinhos (encontro de jovens funkeiros em shoppings centers de S�o Paulo) desagradaram parte da periferia e de ambos os espectros pol�ticos, sendo classificado tanto como "vendido ao capitalismo" como "f�til" por causa do perfil de baixa renda de seus participantes.
Confira a entrevista abaixo.
BBC News Brasil - Hoje o funk � o ritmo brasileiro de mais sucesso fora do pa�s, ao mesmo tempo que ainda se diz perseguido por aqui. Por que essa contradi��o?
Danilo Cymrot - Mesmo com sucesso no exterior, ele continua atacado e desvalorizado no Brasil. Claro que um cantor de proibid�o n�o vai fazer o mesmo sucesso da Anitta. Os funkeiros sabem que precisam moldar o discurso para atingir determinados p�blicos.
Veja o caso da m�sica Deu Onda, do MC G15, que surgiu como um funk com linguagem expl�cita. Quando ela come�ou a fazer sucesso, ele mudou a letra para uma vers�o mais suave. Baile de Favela tocou na Olimp�ada de T�quio na apresenta��o da ginasta Rebecca Andrade, mas tamb�m foi uma m�sica que teve sua vers�o original "adaptada" para atingir outros p�blicos.
Acho que existe uma s�ndrome de vira-lata tamb�m, que n�o valoriza nossa produ��o. Alguns artistas, mesmo quando s�o valorizados no exterior, s�o atacados aqui. O sucesso n�o traz necessariamente o reconhecimento. Eles s�o acusados de terem tra�do suas origens, como a Carmem Miranda, ou porque "est�o manchando" a imagem do Brasil ao refor�ar o "apelo sexual e vulgar dos brasileiros", como a Anitta e outros artistas.
BBC News Brasil - Por que voc� aponta um "arrast�o" de 1992 como o in�cio da criminaliza��o do funk?
Cymrot - O primeiro baile funk, o Baile da Pesada, acontecia no Canec�o, no Rio de Janeiro, antes da casa virar o "templo da MPB". Os bailes sa�ram de l� e passaram a acontecer em favelas e na periferia do Rio. Nos anos 1980, a elite intelectual na Zona Sul do Rio n�o sabia o que era funk. O primeiro contato foi nesse epis�dio conhecido como "arrast�o".
Na verdade, o que aconteceu foi um encontro de duas galeras (grupo de jovens da periferia que se reuniam nos bailes). Elas sa�ram da Parada de Lucas e foram para a praia de Ipanema, que, embora fosse um ambiente democr�tico, era privatizada por hot�is e restaurantes voltados �s classes altas.
Os jovens come�aram a brigar em uma esp�cie de capoeira que misturava briga, brincadeira e dan�a. Algo parecido com o que acontece em um show de punk. Quem n�o estava familiarizado com a cena ficou muito assustado. Essa imagem de jovens negros correndo foi interpretada como um arrast�o, porque j� havia todo uma imagem constru�da do jovem negro perif�rico como um potencial assaltante.
Os participantes foram identificados pela imprensa como funkeiros, nome que virou quase um sin�nimo de arruaceiro, marginal e ladr�o. V�rios pesquisadores, como o antrop�logo Hermano Vianna, consideram esse epis�dio como o in�cio da criminaliza��o do funk.
BBC News Brasil - Al�m de um g�nero musical, o funk tamb�m costuma ocupar o espa�o p�blico, e isso gera rea��es. Como essa caracter�stica influenciou a criminaliza��o?
Cymrot - Historicamente, a reuni�o de jovens negros sempre causou desconfian�a e medo na elite brasileira. No s�culo 19, havia regulamentos que proibiam a circula��o de ajuntamentos de negros escravizados ou at� libertos. Existia a suspeita de que as aglomera��es poderiam ensejar revoltas. A capoeira foi criminalizada por isso.
Na Rep�blica Velha, negros circulando pela cidade eram acusados de vadiagem. O samba n�o foi proibido, mas sambistas foram presos e acusados desse delito. Ent�o, a criminaliza��o se repete com manifesta��es culturais da popula��o negra e perif�rica, n�o � uma novidade no Brasil.

BBC News Brasil - Os chamados rolezinhos, quando jovens da periferia se juntavam em shoppings centers de S�o Paulo no in�cio de 2014, tamb�m se enquadram nesse contexto?
Cymrot - Naquele momento, o shopping center tinha uma simbologia especial, porque o Brasil vivia um bom momento econ�mico, o �pice da era do consumo. Parte da popula��o ascendeu socialmente por meio do consumo. Isso se refletiu no funk ostenta��o.
S�o Paulo n�o tem praia e os jovens se organizaram pelas redes sociais para se encontrar nesses locais. � importante dizer que eles j� frequentavam esses lugares, era parte do cotidiano deles. E n�o eram shoppings da elite, mas na periferia mesmo, como Itaquera e Aricanduva.
E n�o s�o s� pessoas brancas e ricas t�m hostilidade ao funk, mas tamb�m gente das pr�prias periferias, que convive com o barulho, com os bailes nas ruas, com letras consideradas imorais pela religi�o evang�lica que � muito presente na periferia. Como eles faziam barulho, cantavam e se divertiam em grupo, essa aglomera��o foi reprimida por seguran�as e pela pol�cia.
BBC News Brasil - Os rolezinhos podem ser considerados um movimento de protesto?
Cymrot - Alguns pesquisadores tentaram relacion�-los �s manifesta��es de junho de 2013. Elas foram organizadas pelas redes sociais por jovens que tinham demandas sobre mobilidade e direito � cidade, mas tamb�m havia diferen�as. Embora n�o tivessem um discurso pol�tico expl�cito, os rolezinhos expressavam o direito de circular pela cidade, contra o ass�dio policial e contra o racismo.
Outro ponto � que eles mostravam a necessidade de serem integrados por meio do consumo e, curiosamente, foram criticados por isso. Os rolezeiros foram criticados pela esquerda, que os chamavam de alienados e de se venderem ao capitalismo. E � direita, por ostentarem marcas e desejos de um luxo que n�o s�o associados a essa classe social.
BBC News Brasil - Os chamados pancad�es tamb�m costumam incomodar muito parte da popula��o da periferia, por causa do barulho. Como esse conflito gera repress�o e leis que tentam disciplinar o funk?
Cymrot - Com a crise econ�mica a partir de 2015, os jovens que j� n�o tinham muito dinheiro para frequentar baladas e shows de funk fechados passaram a fazer os bailes no meio da rua, colocando uma caixa de som com volume alto. � um lazer barato. Drogas e bebidas tamb�m s�o consumidas ao ar livre.
Esses bailes ent�o passam a ser reprimidos pela pol�cia, tamb�m porque s�o frequentados pelo p�blico historicamente marginalizado. Essas mesmas drogas s�o usadas em baladas fechadas da classe m�dia, mas essas n�o passam por repress�o.
� claro que os pancad�es causam uma s�rie de transtornos, como polui��o sonora e interrup��o do tr�fego. A quest�o � se a repress�o policial aconteceria da mesma forma se fosse outra manifesta��o cultural em outras regi�es.
Essa repress�o gerou, por exemplo, 9 mortes em uma opera��o da PM em um baile de Parais�polis em 2019. Mas o funk n�o � homog�neo. Muitos reconhecem que as pessoas da periferia t�m direito ao sossego e n�o querem um baile funk na sua porta quatro dias por semana. Outros n�o querem o di�logo com o poder p�blico porque h� uma resist�ncia e desconfian�a em se submeter �s regras.
BBC News Brasil - Seu trabalho mostra que projetos de lei que tentam disciplinar o funk e os pancad�es foram produzidos por parlamentares de esquerda e de direita.
Cymrot - Tentei n�o ser manique�sta dizendo que o funk foi criminalizado pelo estado policial e pela burguesia de direita. � mais complexo. De fato, os projetos desfavor�veis ao funk em maioria v�m da direita, de parlamentares ligados � pol�cia. Mas a esquerda tamb�m participou.
Pol�ticos de direita criaram projetos de lei que pediam uma s�rie de exig�ncias que praticamente tornava imposs�vel a realiza��o dos bailes. Diziam: "O problema n�o � o funk, mas o barulho". Ao mesmo tempo, esses parlamentares tamb�m aprovaram leis que reconheciam o funk como manifesta��o cultural e reservavam espa�os para a realiza��o dos bailes, como o samb�dromo do Anhembi e o aut�dromo de Interlagos. � aquela coisa: "N�o tenho nada contra o funk desde que ele n�o aconte�a na minha porta".
J� no Rio � uma salada mais complexa, porque o funk est� t�o enraizado que se inseriu em v�rias inst�ncias da sociedade e dos partidos. A vereadora Ver�nica Costa (PL), por exemplo, � uma das parlamentares que mais t�m projetos a favor do funk. E ela fez sua carreira pol�tica em v�rios partidos de direita.

BBC News Brasil - Mas como a esquerda tamb�m perseguiu o funk?
Cymrot - Primeiro, o funk sempre foi visto com certa antipatia por ser um "g�nero alienado", principalmente em rela��o ao rap, que era mais politizado e respeitado artisticamente. � claro que isso n�o corresponde � realidade, porque sempre houve "funks conscientes" e com cr�tica social.
Segundo: muitos intelectuais de esquerda enxergam como manifesta��es populares ricas aquelas mais folcl�ricas, ou mesmo o rap, por conta de suas letras engajadas. O funk � visto como uma m�sica pobre em termos de qualidade, descart�vel, um g�nero imposto goela abaixo pela ind�stria cultural. Eu me pergunto se � uma 'm�sica pobre' ou uma 'm�sica de pobre'.
Mas essa ideia de imposi��o da ind�stria tamb�m n�o � verdadeira: o sucesso de um funk sempre come�a nos bailes de rua, e s� depois a ind�stria corre atr�s para tentar tirar uma lasquinha.
O terceiro elemento que gera muita cr�tica da esquerda � a acusa��o de que o funk tem letras machistas e homof�bicas. Isso � verdade, mas tamb�m h� muitos sambas, raps, forr�s e sertanejos que tamb�m s�o machistas e homof�bicos. Os funkeiros s�o seres em uma sociedade que � assim, e isso acaba se refletindo em algumas letras. N�o d� para generalizar e tratar isso como um problema s� do funk.
O que a gente v� s�o muitas cantoras que questionam e respondem a esse machismo nas letras. Mas essas funkeiras s�o vistas com desconfian�a por parte do feminismo mais ortodoxo porque elas refor�ariam a objetifica��o do corpo da mulher, tendo em vista que muitas letras humilham os homens usando argumentos sexistas.
Ent�o, o cen�rio � que o feminismo est� rachado em rela��o ao funk, a esquerda tamb�m est� rachada, e direita, idem. O funk gera todos esses conflitos.
BBC News Brasil - Como avalia o fen�meno do funk proibid�o, que aposta em letras sobre crimes e fac��es criminosas?
Cymrot - Muita gente tem dificuldade de separar o autor do eu l�rico. N�o � porque uma pessoa est� cantando uma coisa que ela viveu aquilo de fato, que aquelas hist�rias narradas aconteceram exatamente daquele jeito. Em v�rias culturas existe essa pr�tica de contar vantagens nas m�sicas. Isso vale tanto pro funk proibid�o quanto o chamado funk de putaria, com letras pornogr�ficas.
Em muitas culturas, h� essa valoriza��o da figura do criminoso. Quando o Chico Buarque faz uma m�sica sobre um traficante ningu�m questiona se ele tem liga��o com alguma fac��o. Mas se for um jovem negro, morador de favela, ele � sempre visto como algu�m suspeito de ter envolvimento com o crime, vai ser chamado a prestar esclarecimento na pol�cia.
A verdade � que v�rios MCs j� disseram que s� fizeram funk proibid�o por uma quest�o mercadol�gica, de vendas mesmo. Essas m�sicas contam uma realidade, ou s�o uma forma de exorcizar esse terror pelo qual esses artistas passam desde crian�a. � uma mem�ria subterr�nea da hist�ria do Brasil. E essa � uma realidade violenta com a qual a sociedade n�o quer conviver. Prefere matar o carteiro em vez de lidar com a mensagem.
BBC News Brasil - Isso n�o acaba glamourizando uma vida que n�o � boa para os pr�prios jovens?
Cymrot - Sim, muitos cantam o funk de fac��o n�o porque t�m envolvimento com o crime, mas porque de certa forma a vida de um traficante � glamourizada como a de um sujeito que tem poder, dinheiro, contatos… Por outro lado, em comunidades que sofrem muito com a viol�ncia e corrup��o policiais, cantar sobre as fac��es � uma esp�cie de revide simb�lico. � como se o funkeiro dissesse � pol�cia: "Voc� pode me humilhar todos os dias, mas eu te respondo com uma batida e um funk".
Muitos funkeiros se incomodam quando um proibid�o fica famoso, pois eles dizem que as m�sicas s�o feitas da comunidade para a comunidade, ou seja, o objetivo � que ele fique ali.
BBC News Brasil - Poderia falar um pouco sobre o pornogr�fico?
Cymrot - Existe uma tradi��o da m�sica brasileira em falar sobre sexo, mas normalmente usando o duplo sentido. Na hist�ria, houve outras manifesta��es da popula��o negra perseguidas por conte�do tipo por sexual, como o lundu. O funk falar sobre isso de maneira t�o expl�cita � quase uma novidade. Curiosamente, muitos MCs dizem que come�aram a cantar esse estilo porque foram reprimidos quando cantavam o proibid�o.
O auge do funk com apelo sexual no Rio de Janeiro, nos anos 2000, surgiu como uma resposta aos bailes de corredor, que sempre terminavam em brigas entre o p�blico. Tamb�m surgiu com grande participa��o de mulheres, que dan�avam e subiam ao palco para cantar sobre o que gostavam de fazer, que tamb�m tinham direito de gozar etc.
Esse movimento foi at� chamado de "neofeminista". Muitas funkeiras reclamaram disso publicamente, dizendo que s� conseguiam espa�o se cantassem esse estilo. E muitas n�o tinham nada a ver com esse universo, eram mais conservadoras e at� evang�licas.
Mas h� tamb�m um papel pol�tico de questionar os bons costumes. Ent�o, quando fala sobre sexo de maneira expl�cita, o funk choca setores mais conservadores da sociedade.
BBC News Brasil - Nos anos 1990, no Rio, repercutiu muito o fato de jovens brancos de classe m�dia passaram a subir os morros para ir aos bailes.
Cymrot - � aquela coisa: "Voc� n�o gosta de mim, mas sua filha gosta". Houve uma grande influ�ncia da m�dia. Enquanto o mesmo canal mostrava no jornal o funk como uma cultura violenta, um programa vespertino, como o da Xuxa, convidava MCs para cantar e mostrar um "funk da paz", como a dupla Claudinho e Buchecha.
Os jovens da Zona Sul carioca se deixam contagiar pela batida e resolvem subir o morro. Isso gera um p�nico nos pais. Eles achavam que o funk estava levando seus filhos para o mau caminho, para lugares perigosos.
Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62355983
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