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Estado de Minas LITERATURA

Os livros 'perigosos demais' para serem lidos

Quarenta anos atr�s, surgia nos Estados Unidos a Semana dos Livros Proibidos. E, at� hoje, a censura parece estar viva e atuante.


08/11/2022 16:17 - atualizado 09/11/2022 10:43


Livro em chamas
(foto: Getty Images)

Segundo a lenda dos Livros Sibilinos, em uma cidade antiga, uma mulher ofereceu para venda aos moradores 12 livros contendo todo o conhecimento e sabedoria do mundo, por um alto pre�o.

As pessoas se recusaram a compr�-los, achando a proposta rid�cula. A mulher ent�o queimou ali mesmo a metade dos livros e ofereceu os seis restantes pelo dobro do pre�o.

Os moradores da cidade riram-se dela, desta vez um pouco constrangidos. Ela ent�o queimou tr�s e ofereceu o restante, dobrando novamente o pre�o. E, um pouco relutantes - eram tempos dif�ceis, seus problemas pareciam estar se multiplicando -, eles recusaram novamente a oferta.

Por fim, quando havia sobrado apenas um livro, os cidad�os pagaram o pre�o extraordin�rio que a mulher estava pedindo e ela foi embora, deixando que eles tentassem usar da melhor forma poss�vel 1/12 de todo o conhecimento e sabedoria do mundo.

Os livros transmitem o conhecimento. Eles agem como polinizadores da mente, espalhando ideias que se autorreproduzem no tempo e no espa�o.

N�s esquecemos o milagre que � ver as letras exibidas em uma p�gina ou na tela de vidro, permitindo a comunica��o de um c�rebro para outro, no outro lado do mundo, ou a um s�culo de dist�ncia no tempo.

Como diz o escritor americano Stephen King, os livros s�o "uma magia port�til �nica". E essa parte port�til � t�o importante quanto a magia.

Um livro pode ser levado embora, escondido e ser sua pr�pria fonte particular de conhecimento. O di�rio pessoal do meu filho, por exemplo, tem um acess�rio que n�o funciona, mas � simbolicamente importante: um cadeado.

O poder das palavras dentro dos livros � t�o grande que h� muito tempo � costume omitir alguns termos, como palavr�es em romances do s�culo 19; ou palavras poderosas demais para serem escritas, como o nome de Deus em alguns textos religiosos.

Liberdade da leitura

Os livros transmitem conhecimento e conhecimento � poder. Por isso, eles s�o uma amea�a para as autoridades - tanto para governos estabelecidos quanto para l�deres autonomeados - que querem ter o monop�lio do conhecimento e controlar o que seus cidad�os pensam. E a forma mais eficiente de exercer esse poder sobre os livros � proibi-los.

A hist�ria da proibi��o de livros � longa e ign�bil, mas n�o est� morta. Ela segue sendo um expediente muito utilizado.

E o m�s de setembro marcou o 40º anivers�rio da Semana dos Livros Proibidos, um evento anual que "celebra a liberdade da leitura".

A Semana dos Livros Proibidos foi lan�ada nos Estados Unidos em 1982, em resposta ao aumento dos questionamentos sobre determinados livros nas escolas, bibliotecas e livrarias.

� preciso admirar, de certa forma, a energia e a vigil�ncia das pessoas que querem proibir livros hoje em dia, uma pr�tica que costumava ser muito mais simples no passado.

S�culos atr�s, quando a maioria da popula��o n�o sabia ler e os livros n�o eram facilmente dispon�veis, era poss�vel restringir o conhecimento na fonte.

A Igreja Cat�lica, por exemplo, por muito tempo dissuadiu as pessoas de terem suas pr�prias c�pias da B�blia, aprovando apenas uma tradu��o em latim que poucas pessoas comuns conseguiam ler.

A justificativa era evitar que os leigos fizessem m� interpreta��o da palavra de Deus, mas tamb�m os impedia de desafiar a autoridade dos l�deres da igreja.


Uma cópia ilustrada da Bíblia em latim
A Igreja Cat�lica s� permitia c�pias da B�blia em latim para limitar o n�mero de pessoas que podiam ler a obra %u2014 e manter assim o monop�lio de sua interpreta��o (foto: Getty Images)

Mesmo quando as taxas de alfabetiza��o aumentaram, como ocorreu quando o Reino Unido introduziu leis sobre a educa��o no final do s�culo 19, os livros continuaram sendo caros, particularmente as obras liter�rias de ponta, cujas palavras e ideias eram mais duradouras (e, potencialmente, mais poderosas).

Foi somente nos anos 1930, com as editoras Albatross Books e Penguin Books, que o novo p�blico que ansiava por livros acess�veis de qualidade teve seu apetite satisfeito.

E, simultaneamente, a proibi��o de livros passou a assumir nova forma, com os censores tentando acompanhar desesperadamente a prolifera��o de novos t�tulos que abriam os leitores para novas e perturbadoras ideias.

Mas a surpresa sobre a expans�o da proibi��o dos livros no s�culo 20 foi observar como � abrangente esse desejo de "prote��o".

A 'corrup��o das mentes'

O governo da China, por exemplo, continua a emitir at� hoje decretos contra livros nas escolas que "n�o estejam alinhados com os valores centrais socialistas [do pa�s]; que tenham vis�es de mundo, da vida e valores distorcidos".

Estas s�o palavras flex�veis que podem ser aplicadas a qualquer livro que as autoridades desaprovem, por qualquer raz�o - mesmo que "os alunos, na verdade, n�o olhem mesmo para eles", como observou um professor em 2020 ao retirar das prateleiras da biblioteca da escola os cl�ssicos de George Orwell: A Revolu��o dos Bichos e 1984.

Na R�ssia, a proibi��o de livros sempre foi uma atividade notadamente p�blica, considerando a quantidade de grandes escritores que o pa�s exportou, querendo ou n�o, para o restante do mundo.

Na era sovi�tica, por exemplo, o governo tentou exercer o m�ximo de controle poss�vel sobre os h�bitos de leitura dos seus cidad�os, da mesma forma que sobre os demais aspectos das suas vidas.

Em 1958, o escritor russo Boris Pasternak recebeu o Pr�mio Nobel de Literatura pelo seu romance Doutor Jivago, que havia sido publicado na It�lia no ano anterior, mas n�o no seu pa�s.

O pr�mio despertou tanto a ira das autoridades sovi�ticas (a imprensa controlada pelo Estado chamava o livro de "obra maliciosa e artisticamente esqu�lida") que Pasternak foi obrigado a recus�-lo.

O governo repudiava o livro n�o s� pelo que ele deixou de incluir - a obra n�o enaltece a Revolu��o Russa) -, mas tamb�m pelo que havia nele: enfoques religiosos e celebra��o do valor do indiv�duo.

E, observando o "grande valor de propaganda" de Doutor Jivago, a CIA fez com que o livro fosse impresso na Uni�o Sovi�tica.


Boris Pasternak com sua esposa e filho em 1924
Boris Pasternak, retratado na imagem com sua esposa e filho, foi for�ado pelas autoridades sovi�ticas a recusar o Pr�mio Nobel de Literatura (foto: Getty Images)

A proibi��o de livros na URSS levou ao desenvolvimento da literatura samizdat (autopublicada). A ela devemos, por exemplo, a preserva��o da obra do poeta russo Osip Mandelstam (1891-1931).

O escritor dissidente Vladimir Bukovsky foi quem resumiu a samizdat: "Eu mesmo escrevo, edito, censuro, publico, distribuo e cumpro a pena de pris�o".

Mas o Ocidente se engana ao acreditar que o mesmo n�o acontece por aqui. Quando livros s�o proibidos ou existem tentativas de proibi��o, o argumento � o mesmo de qualquer outra parte do mundo: o objetivo � proteger o cidad�o comum, que aparentemente � tacanho demais para julgar as obras por si pr�prio, contra a exposi��o a ideias degradantes.

No Reino Unido, a proibi��o de livros muitas vezes tem sido uma ferramenta contra a percep��o de obscenidade sexual.

Ela � tipicamente uma tentativa de usar a for�a bruta da lei para impedir mudan�as sociais - uma t�tica que sempre falha, mas, mesmo assim, � irresist�vel para as autoridades que s� pensam no curto prazo.

Muitos escritores viram sua reputa��o melhorar gra�as �s leis brit�nicas sobre a obscenidade. James Joyce teve essa percep��o ao afirmar, enquanto escrevia seu livro Ulysses que, "apesar da pol�cia, gostaria de incluir tudo no meu romance".

Ulysses foi proibido no Reino Unido entre 1922 e 1936, embora o censor respons�vel pela proibi��o tivesse lido apenas 42 das 732 p�ginas da obra. "Tudo", conforme mencionado por Joyce, incluiu masturba��o, palavr�es, sexo e idas ao banheiro.


Exemplar do livro 'Ulysses', de James Joyce
'Ulysses', de James Joyce, completa 100 anos em 2022. O livro foi proibido no Reino Unido entre 1922 e 1936 (foto: Getty Images)

J� o poeta e romancista D. H. Lawrence foi um caso especial. Suas obras, que frequentemente continham atos sexuais que Lawrence observava com rever�ncia espiritual, foram o alvo de uma campanha da procuradoria p�blica brit�nica por anos.

Seu romance O Arco-�ris foi queimado, sua correspond�ncia foi interceptada para apreender sua colet�nea de poemas Pansies ("Amores-perfeitos", em tradu��o livre) e houve uma batida policial em uma exposi��o da sua arte.

E a vingan�a prosseguiu at� mesmo depois da morte do escritor, quando a Penguin Books foi processada por publicar a obra O Amante de Lady Chatterley, em 1960.

O julgamento � famoso: a editora convocou dezenas de escritores e acad�micos para confirmar as qualidades liter�rias do romance - embora a escritora de livros infantis Enid Blyton o tenha recha�ado.

E o juiz exemplificou a desconfian�a do Estado sobre os leitores comuns ao aconselhar o j�ri a n�o confiar nos especialistas em literatura: "� assim que as meninas que trabalham na f�brica ir�o ler este livro?"

Mas o j�ri decidiu a favor da Penguin por unanimidade, o que foi coroado por uma deliciosa ironia. Tr�s anos atr�s, seis d�cadas depois da tentativa de proibir o livro, o governo brit�nico evitou que a c�pia de O Amante de Lady Chatterley usada pelo juiz fosse vendida para o exterior, para que "possa ser encontrado um comprador para manter no Reino Unido esta parte importante da hist�ria do nosso pa�s".


Homens lendo 'O Amante de Lady Chatterley'
A proibi��o de livros muitas vezes foi usada para combater a percep��o de obscenidade sexual, como no famoso julgamento contra o escritor brit�nico D. H. Lawrence e seu livro 'O Amante de Lady Chatterley' (foto: Getty Images)

Manter as ideias vivas

J� nos Estados Unidos, � uma esp�cie de tributo para o poder duradouro dos livros observar que proibi-los continua sendo algo t�o comum num mundo em que cada nova onda de tecnologia, da TV ao v�deo game e �s redes sociais, atrai temores sobre seu conte�do "inadequado".

As escolas s�o um nicho espec�fico de tentativa de censura, em parte porque dirigir a mente male�vel das crian�as parece ser uma forma eficiente de eliminar poss�veis riscos, mas tamb�m porque (ao contr�rio das livrarias) as diretorias das escolas s�o vistas com algum grau de influ�ncia pela comunidade.

Em 1982, ano do lan�amento da Semana dos Livros Proibidos, chegou � Suprema Corte dos Estados Unidos um caso de tentativa de censura na escola (no Distrito Escolar Island Trees, no Estado de Nova York, EUA).

O conselho escolar argumentava que "� nossa obriga��o moral proteger as crian�as das nossas escolas contra este perigo moral, al�m certamente dos riscos m�dicos e f�sicos".

Os riscos a que eles se referiam eram livros "antiamericanos, anticrist�os, antissem�ticos e puramente indecentes". A acusa��o de antissemitismo referia-se ao romance O Faz-Tudo (Ed. Record, 2006), do romancista judeu Bernard Malamud (1914-1986).

Mas o tribunal concluiu, com base na Primeira Emenda � Constitui��o americana, que os "conselhos escolares locais n�o podem retirar livros das bibliotecas escolares simplesmente porque eles n�o gostam das ideias contidas nesses livros". Mas isso n�o impediu as tentativas de proibi��o.


Bernard Malamud (1914 - 1986)
O livro 'O Faz-Tudo', do romancista americano Bernard Malamud, foi rotulado de antissemita pelos conselhos escolares do pa�s, talvez sem saber que o pr�prio autor era judeu (foto: Getty Images)

Um dos principais temas que causam proibi��es de livros nas escolas e bibliotecas americanas � o sexo. "Os Estados Unidos parecem ter muita preocupa��o com sexo", segundo o escritor James LaRue, quando era diretor do Escrit�rio de Liberdade Intelectual da Associa��o Americana de Bibliotecas, em 2017.

Tradicionalmente, sexo significava obscenidade. Isso levou o juiz americano Potter Stewart a lan�ar sua famosa defini��o do que � "pornografia expl�cita" em um processo judicial em 1964: "Eu sei quando a vejo".

Mas, hoje em dia, "sexo" em proibi��es de livros significa mais frequentemente sexualidade e identidade de g�nero. Os tr�s livros mais contestados de 2021 nos Estados Unidos foram questionados devido ao seu conte�do LGBTQIA+.

Isso traz � discuss�o a ideia de que certos livros s�o proibidos para proteger os jovens, n�o como tentativa de purga ideol�gica. E demonstra a falta de imagina��o dos censores, que defendem que a exibi��o (por exemplo, de pessoas transg�neros) � que causa o fen�meno e n�o o contr�rio.

Esta concep��o est� ligada � cren�a de que as coisas de que n�o gostamos podem ser ignoradas com seguran�a - basta n�o as vermos impressas. Um livro que � presen�a constante entre os 10 mais citados na lista de livros proibidos nos Estados Unidos � o cl�ssico moderno O Olho Mais Azul (Ed. Companhia das Letras, 2019), da escritora americana Toni Morrison (1931-2019), devido � sua descri��o de abuso sexual infantil.


Toni Morrison
O cl�ssico moderno 'O Olho Mais Azul', da escritora americana Toni Morrison, � presen�a constante na lista dos livros mais questionados (foto: Getty Images)

Mas a censura liter�ria nos Estados Unidos tem uma longa hist�ria. Sua primeira v�tima famosa foi o romance antiescravagista A Cabana do Pai Tom�s, de Harriet Beecher Stowe, publicado em 1852.

Em 1857, um homem negro de Ohio (EUA), Sam Green, foi "julgado, condenado e sentenciado a 10 anos de pris�o na penitenci�ria" por "estar de posse de A Cabana do Pai Tom�s". O fato de que a obra atualmente � criticada com mais frequ�ncia pelo lado progressista do espectro pol�tico, por retratar os personagens negros de forma estereotipada, � uma reviravolta da hist�ria.

Quanto mais importante for um livro, maior a probabilidade de que ele atraia a aten��o dos censores. Um livro que vem sendo questionado regularmente nos Estados Unidos � O Apanhador no Campo de Centeio (Ed. Todavia, 2019), do escritor americano J. D. Salinger (1919-2010).

Um professor foi demitido em 1960 por ensinar sobre a obra, que depois foi retirada das escolas nos Estados de Wyoming, Dakota do Norte e Calif�rnia, nos anos 1980.

O argumento para a proibi��o do romance de Salinger � tipicamente por profanidade e linguagem obscena, embora sua frase de abertura, com tudo aquilo "meio David Copperfield", possa parecer antiquada hoje em dia.


Cópias do livro 'O Apanhador no Campo de Centeio', de JD Salinger, em uma estante
'O Apanhador no Campo de Centeio' foi contestado por uma linguagem que hoje � considerada ing�nua (foto: Getty Images)

A proibi��o de livros � uma atividade ampla, que re�ne livros que normalmente n�o andam juntos. Ela engloba um pouco de tudo, desde fic��o popular (como Peter Benchley, Sidney Sheldon e Jodi Picoult) at� cl�ssicos consagrados (Kurt Vonnegut, Harper Lee e Kate Chopin).

Ela tem mais alvos que um torneio de arco e flecha, que v�o desde acusa��es de venera��o do ocultismo (a s�rie Harry Potter) at� o ate�smo (O Estranho Caso do Cachorro Morto, de Mark Haddon - Ed. Record, 2004).

Mas, evidentemente, h� esperan�a. A publicidade trazida pela Semana dos Livros Proibidos, por exemplo, leva esses livros e a quest�o da censura para os holofotes.

E existe o chamado "Efeito Streisand" - tentar proibir livros faz com que mais pessoas tomem conhecimento da sua exist�ncia. Nos Estados Unidos, algumas livrarias Barnes and Noble mant�m mesas de livros proibidos e seu website tem uma categoria separada para eles.

No Reino Unido, uma feira de livros raros na Galeria Saatchi, em Londres, exibiu e colocou � venda edi��es raras de livros proibidos, desde um rar�ssimo exemplar autografado de O Apanhador no Campo de Centeio (ao pre�o de 225 mil libras, ou cerca de R$ 1,34 milh�o) at� o cl�ssico Das Revolu��es das Esferas Celestes, de Nicolau Cop�rnico, que escandalizou a Igreja Cat�lica em 1543, ao sugerir que a Terra n�o era o centro do sistema solar (cotado em 2 milh�es de libras, ou cerca de R$ 11,9 milh�es).

Mas a eterna vigil�ncia, n�o s� da Associa��o Americana de Bibliotecas, mas de todos os leitores, em todas as partes do mundo, � o pre�o de manter nossas ideias vivas. Como nos conta a hist�ria dos Livros Sibilinos, livros podem ser queimados, seu conhecimento pode ser perdido e nada dura para sempre.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-63556693

Leia a vers�o original desta reportagem (em ingl�s) no site BBC Culture.


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