
Segundo a lenda dos Livros Sibilinos, em uma cidade antiga, uma mulher ofereceu para venda aos moradores 12 livros contendo todo o conhecimento e sabedoria do mundo, por um alto pre�o.
As pessoas se recusaram a compr�-los, achando a proposta rid�cula. A mulher ent�o queimou ali mesmo a metade dos livros e ofereceu os seis restantes pelo dobro do pre�o.
Os moradores da cidade riram-se dela, desta vez um pouco constrangidos. Ela ent�o queimou tr�s e ofereceu o restante, dobrando novamente o pre�o. E, um pouco relutantes - eram tempos dif�ceis, seus problemas pareciam estar se multiplicando -, eles recusaram novamente a oferta.
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Por fim, quando havia sobrado apenas um livro, os cidad�os pagaram o pre�o extraordin�rio que a mulher estava pedindo e ela foi embora, deixando que eles tentassem usar da melhor forma poss�vel 1/12 de todo o conhecimento e sabedoria do mundo.
Os livros transmitem o conhecimento. Eles agem como polinizadores da mente, espalhando ideias que se autorreproduzem no tempo e no espa�o.N�s esquecemos o milagre que � ver as letras exibidas em uma p�gina ou na tela de vidro, permitindo a comunica��o de um c�rebro para outro, no outro lado do mundo, ou a um s�culo de dist�ncia no tempo.
Como diz o escritor americano Stephen King, os livros s�o "uma magia port�til �nica". E essa parte port�til � t�o importante quanto a magia.
Um livro pode ser levado embora, escondido e ser sua pr�pria fonte particular de conhecimento. O di�rio pessoal do meu filho, por exemplo, tem um acess�rio que n�o funciona, mas � simbolicamente importante: um cadeado.
O poder das palavras dentro dos livros � t�o grande que h� muito tempo � costume omitir alguns termos, como palavr�es em romances do s�culo 19; ou palavras poderosas demais para serem escritas, como o nome de Deus em alguns textos religiosos.
Liberdade da leitura
Os livros transmitem conhecimento e conhecimento � poder. Por isso, eles s�o uma amea�a para as autoridades - tanto para governos estabelecidos quanto para l�deres autonomeados - que querem ter o monop�lio do conhecimento e controlar o que seus cidad�os pensam. E a forma mais eficiente de exercer esse poder sobre os livros � proibi-los.
A hist�ria da proibi��o de livros � longa e ign�bil, mas n�o est� morta. Ela segue sendo um expediente muito utilizado.
E o m�s de setembro marcou o 40º anivers�rio da Semana dos Livros Proibidos, um evento anual que "celebra a liberdade da leitura".
A Semana dos Livros Proibidos foi lan�ada nos Estados Unidos em 1982, em resposta ao aumento dos questionamentos sobre determinados livros nas escolas, bibliotecas e livrarias.
� preciso admirar, de certa forma, a energia e a vigil�ncia das pessoas que querem proibir livros hoje em dia, uma pr�tica que costumava ser muito mais simples no passado.
S�culos atr�s, quando a maioria da popula��o n�o sabia ler e os livros n�o eram facilmente dispon�veis, era poss�vel restringir o conhecimento na fonte.
A Igreja Cat�lica, por exemplo, por muito tempo dissuadiu as pessoas de terem suas pr�prias c�pias da B�blia, aprovando apenas uma tradu��o em latim que poucas pessoas comuns conseguiam ler.
A justificativa era evitar que os leigos fizessem m� interpreta��o da palavra de Deus, mas tamb�m os impedia de desafiar a autoridade dos l�deres da igreja.

Mesmo quando as taxas de alfabetiza��o aumentaram, como ocorreu quando o Reino Unido introduziu leis sobre a educa��o no final do s�culo 19, os livros continuaram sendo caros, particularmente as obras liter�rias de ponta, cujas palavras e ideias eram mais duradouras (e, potencialmente, mais poderosas).
Foi somente nos anos 1930, com as editoras Albatross Books e Penguin Books, que o novo p�blico que ansiava por livros acess�veis de qualidade teve seu apetite satisfeito.
E, simultaneamente, a proibi��o de livros passou a assumir nova forma, com os censores tentando acompanhar desesperadamente a prolifera��o de novos t�tulos que abriam os leitores para novas e perturbadoras ideias.
Mas a surpresa sobre a expans�o da proibi��o dos livros no s�culo 20 foi observar como � abrangente esse desejo de "prote��o".
A 'corrup��o das mentes'
O governo da China, por exemplo, continua a emitir at� hoje decretos contra livros nas escolas que "n�o estejam alinhados com os valores centrais socialistas [do pa�s]; que tenham vis�es de mundo, da vida e valores distorcidos".
Estas s�o palavras flex�veis que podem ser aplicadas a qualquer livro que as autoridades desaprovem, por qualquer raz�o - mesmo que "os alunos, na verdade, n�o olhem mesmo para eles", como observou um professor em 2020 ao retirar das prateleiras da biblioteca da escola os cl�ssicos de George Orwell: A Revolu��o dos Bichos e 1984.
Na R�ssia, a proibi��o de livros sempre foi uma atividade notadamente p�blica, considerando a quantidade de grandes escritores que o pa�s exportou, querendo ou n�o, para o restante do mundo.
Na era sovi�tica, por exemplo, o governo tentou exercer o m�ximo de controle poss�vel sobre os h�bitos de leitura dos seus cidad�os, da mesma forma que sobre os demais aspectos das suas vidas.
Em 1958, o escritor russo Boris Pasternak recebeu o Pr�mio Nobel de Literatura pelo seu romance Doutor Jivago, que havia sido publicado na It�lia no ano anterior, mas n�o no seu pa�s.
O pr�mio despertou tanto a ira das autoridades sovi�ticas (a imprensa controlada pelo Estado chamava o livro de "obra maliciosa e artisticamente esqu�lida") que Pasternak foi obrigado a recus�-lo.
O governo repudiava o livro n�o s� pelo que ele deixou de incluir - a obra n�o enaltece a Revolu��o Russa) -, mas tamb�m pelo que havia nele: enfoques religiosos e celebra��o do valor do indiv�duo.
E, observando o "grande valor de propaganda" de Doutor Jivago, a CIA fez com que o livro fosse impresso na Uni�o Sovi�tica.

A proibi��o de livros na URSS levou ao desenvolvimento da literatura samizdat (autopublicada). A ela devemos, por exemplo, a preserva��o da obra do poeta russo Osip Mandelstam (1891-1931).
O escritor dissidente Vladimir Bukovsky foi quem resumiu a samizdat: "Eu mesmo escrevo, edito, censuro, publico, distribuo e cumpro a pena de pris�o".
Mas o Ocidente se engana ao acreditar que o mesmo n�o acontece por aqui. Quando livros s�o proibidos ou existem tentativas de proibi��o, o argumento � o mesmo de qualquer outra parte do mundo: o objetivo � proteger o cidad�o comum, que aparentemente � tacanho demais para julgar as obras por si pr�prio, contra a exposi��o a ideias degradantes.
No Reino Unido, a proibi��o de livros muitas vezes tem sido uma ferramenta contra a percep��o de obscenidade sexual.
Ela � tipicamente uma tentativa de usar a for�a bruta da lei para impedir mudan�as sociais - uma t�tica que sempre falha, mas, mesmo assim, � irresist�vel para as autoridades que s� pensam no curto prazo.
Muitos escritores viram sua reputa��o melhorar gra�as �s leis brit�nicas sobre a obscenidade. James Joyce teve essa percep��o ao afirmar, enquanto escrevia seu livro Ulysses que, "apesar da pol�cia, gostaria de incluir tudo no meu romance".
Ulysses foi proibido no Reino Unido entre 1922 e 1936, embora o censor respons�vel pela proibi��o tivesse lido apenas 42 das 732 p�ginas da obra. "Tudo", conforme mencionado por Joyce, incluiu masturba��o, palavr�es, sexo e idas ao banheiro.

J� o poeta e romancista D. H. Lawrence foi um caso especial. Suas obras, que frequentemente continham atos sexuais que Lawrence observava com rever�ncia espiritual, foram o alvo de uma campanha da procuradoria p�blica brit�nica por anos.
Seu romance O Arco-�ris foi queimado, sua correspond�ncia foi interceptada para apreender sua colet�nea de poemas Pansies ("Amores-perfeitos", em tradu��o livre) e houve uma batida policial em uma exposi��o da sua arte.
E a vingan�a prosseguiu at� mesmo depois da morte do escritor, quando a Penguin Books foi processada por publicar a obra O Amante de Lady Chatterley, em 1960.
O julgamento � famoso: a editora convocou dezenas de escritores e acad�micos para confirmar as qualidades liter�rias do romance - embora a escritora de livros infantis Enid Blyton o tenha recha�ado.
E o juiz exemplificou a desconfian�a do Estado sobre os leitores comuns ao aconselhar o j�ri a n�o confiar nos especialistas em literatura: "� assim que as meninas que trabalham na f�brica ir�o ler este livro?"
Mas o j�ri decidiu a favor da Penguin por unanimidade, o que foi coroado por uma deliciosa ironia. Tr�s anos atr�s, seis d�cadas depois da tentativa de proibir o livro, o governo brit�nico evitou que a c�pia de O Amante de Lady Chatterley usada pelo juiz fosse vendida para o exterior, para que "possa ser encontrado um comprador para manter no Reino Unido esta parte importante da hist�ria do nosso pa�s".

Manter as ideias vivas
J� nos Estados Unidos, � uma esp�cie de tributo para o poder duradouro dos livros observar que proibi-los continua sendo algo t�o comum num mundo em que cada nova onda de tecnologia, da TV ao v�deo game e �s redes sociais, atrai temores sobre seu conte�do "inadequado".
As escolas s�o um nicho espec�fico de tentativa de censura, em parte porque dirigir a mente male�vel das crian�as parece ser uma forma eficiente de eliminar poss�veis riscos, mas tamb�m porque (ao contr�rio das livrarias) as diretorias das escolas s�o vistas com algum grau de influ�ncia pela comunidade.
Em 1982, ano do lan�amento da Semana dos Livros Proibidos, chegou � Suprema Corte dos Estados Unidos um caso de tentativa de censura na escola (no Distrito Escolar Island Trees, no Estado de Nova York, EUA).
O conselho escolar argumentava que "� nossa obriga��o moral proteger as crian�as das nossas escolas contra este perigo moral, al�m certamente dos riscos m�dicos e f�sicos".
Os riscos a que eles se referiam eram livros "antiamericanos, anticrist�os, antissem�ticos e puramente indecentes". A acusa��o de antissemitismo referia-se ao romance O Faz-Tudo (Ed. Record, 2006), do romancista judeu Bernard Malamud (1914-1986).
Mas o tribunal concluiu, com base na Primeira Emenda � Constitui��o americana, que os "conselhos escolares locais n�o podem retirar livros das bibliotecas escolares simplesmente porque eles n�o gostam das ideias contidas nesses livros". Mas isso n�o impediu as tentativas de proibi��o.

Um dos principais temas que causam proibi��es de livros nas escolas e bibliotecas americanas � o sexo. "Os Estados Unidos parecem ter muita preocupa��o com sexo", segundo o escritor James LaRue, quando era diretor do Escrit�rio de Liberdade Intelectual da Associa��o Americana de Bibliotecas, em 2017.
Tradicionalmente, sexo significava obscenidade. Isso levou o juiz americano Potter Stewart a lan�ar sua famosa defini��o do que � "pornografia expl�cita" em um processo judicial em 1964: "Eu sei quando a vejo".
Mas, hoje em dia, "sexo" em proibi��es de livros significa mais frequentemente sexualidade e identidade de g�nero. Os tr�s livros mais contestados de 2021 nos Estados Unidos foram questionados devido ao seu conte�do LGBTQIA+.
Isso traz � discuss�o a ideia de que certos livros s�o proibidos para proteger os jovens, n�o como tentativa de purga ideol�gica. E demonstra a falta de imagina��o dos censores, que defendem que a exibi��o (por exemplo, de pessoas transg�neros) � que causa o fen�meno e n�o o contr�rio.
Esta concep��o est� ligada � cren�a de que as coisas de que n�o gostamos podem ser ignoradas com seguran�a - basta n�o as vermos impressas. Um livro que � presen�a constante entre os 10 mais citados na lista de livros proibidos nos Estados Unidos � o cl�ssico moderno O Olho Mais Azul (Ed. Companhia das Letras, 2019), da escritora americana Toni Morrison (1931-2019), devido � sua descri��o de abuso sexual infantil.

Mas a censura liter�ria nos Estados Unidos tem uma longa hist�ria. Sua primeira v�tima famosa foi o romance antiescravagista A Cabana do Pai Tom�s, de Harriet Beecher Stowe, publicado em 1852.
Em 1857, um homem negro de Ohio (EUA), Sam Green, foi "julgado, condenado e sentenciado a 10 anos de pris�o na penitenci�ria" por "estar de posse de A Cabana do Pai Tom�s". O fato de que a obra atualmente � criticada com mais frequ�ncia pelo lado progressista do espectro pol�tico, por retratar os personagens negros de forma estereotipada, � uma reviravolta da hist�ria.
Quanto mais importante for um livro, maior a probabilidade de que ele atraia a aten��o dos censores. Um livro que vem sendo questionado regularmente nos Estados Unidos � O Apanhador no Campo de Centeio (Ed. Todavia, 2019), do escritor americano J. D. Salinger (1919-2010).
Um professor foi demitido em 1960 por ensinar sobre a obra, que depois foi retirada das escolas nos Estados de Wyoming, Dakota do Norte e Calif�rnia, nos anos 1980.
O argumento para a proibi��o do romance de Salinger � tipicamente por profanidade e linguagem obscena, embora sua frase de abertura, com tudo aquilo "meio David Copperfield", possa parecer antiquada hoje em dia.

A proibi��o de livros � uma atividade ampla, que re�ne livros que normalmente n�o andam juntos. Ela engloba um pouco de tudo, desde fic��o popular (como Peter Benchley, Sidney Sheldon e Jodi Picoult) at� cl�ssicos consagrados (Kurt Vonnegut, Harper Lee e Kate Chopin).
Ela tem mais alvos que um torneio de arco e flecha, que v�o desde acusa��es de venera��o do ocultismo (a s�rie Harry Potter) at� o ate�smo (O Estranho Caso do Cachorro Morto, de Mark Haddon - Ed. Record, 2004).
Mas, evidentemente, h� esperan�a. A publicidade trazida pela Semana dos Livros Proibidos, por exemplo, leva esses livros e a quest�o da censura para os holofotes.
E existe o chamado "Efeito Streisand" - tentar proibir livros faz com que mais pessoas tomem conhecimento da sua exist�ncia. Nos Estados Unidos, algumas livrarias Barnes and Noble mant�m mesas de livros proibidos e seu website tem uma categoria separada para eles.
No Reino Unido, uma feira de livros raros na Galeria Saatchi, em Londres, exibiu e colocou � venda edi��es raras de livros proibidos, desde um rar�ssimo exemplar autografado de O Apanhador no Campo de Centeio (ao pre�o de 225 mil libras, ou cerca de R$ 1,34 milh�o) at� o cl�ssico Das Revolu��es das Esferas Celestes, de Nicolau Cop�rnico, que escandalizou a Igreja Cat�lica em 1543, ao sugerir que a Terra n�o era o centro do sistema solar (cotado em 2 milh�es de libras, ou cerca de R$ 11,9 milh�es).
Mas a eterna vigil�ncia, n�o s� da Associa��o Americana de Bibliotecas, mas de todos os leitores, em todas as partes do mundo, � o pre�o de manter nossas ideias vivas. Como nos conta a hist�ria dos Livros Sibilinos, livros podem ser queimados, seu conhecimento pode ser perdido e nada dura para sempre.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-63556693
Leia a vers�o original desta reportagem (em ingl�s) no site BBC Culture.