Cena de 'Nossa Senhora do Nilo' mostra diversas mulheres vestidas de branco, de pé, numa floresta

O escritor e cineasta Atiq Rahimi adaptou para as telas o livro "Nossa Senhora do Nilo", da autora ruandesa Scholastique Mukasonga; longa estreia hoje em Belo Horizonte

Pandora/Divulga��o

A obra de Scholastique Mukasonga, escritora ruandesa, � caracterizada por um complexo e violento entrela�ar entre vida e morte. Em "A mulher dos p�s descal�os" (2017), por exemplo, Mukasonga escolhe iniciar seu relato descrevendo em detalhes o assassinato da m�e, ocorrido durante o genoc�dio tutsi de 1994.

Entretanto, para al�m de narrar a extrema viol�ncia que culmina na morte de cerca de 800 mil pessoas, Mukasonga conta nas p�ginas seguintes o cotidiano de uma vida, as tradi��es que persistem e o amor por um pa�s que se perdeu.

"Nossa Senhora do Nilo", filme do afeg�o naturalizado franc�s Atiq Rahimi, tenta emular essa complexa rela��o. A obra � adaptada de um livro hom�nimo da escritora de 2012, no qual ela, mulher tutsi sobrevivente desse genoc�dio, conta o prel�dio do massacre ruand�s a partir da perspectiva de um grupo de alunas que estuda num internato cat�lico administrado por belgas.



Em meio ao deslumbramento e o choque, o filme, contudo, pouco consegue chegar ao �mago da representa��o dessa hist�ria. Dividido em cap�tulos que refletem a religiosidade crist� - inoc�ncia, sacril�gio e sacrif�cio, entre outros - o longa adota uma perspectiva interessante para narrar o cotidiano no Instituto Nossa Senhora do Nilo.

Num universo marcadamente feminino, o filme escolhe duplas de garotas e, aos poucos, as transforma em protagonistas, dando enredo e profundidade a Modesta (Belinda Rubango Simbi), Gloriosa (Albina Sydney Kirenga), Veronica (Clariella Bizimana) e Virginia (Santa Amanda Mugabekazi).

Essa estrat�gia � apresentada logo no in�cio da obra, durante uma esp�cie de chamada, quando Rahimi se det�m no rosto de cada uma delas � medida que os seus nomes s�o evocados.

Individualidade

A cena, que aponta para a constru��o de uma individualidade dessas meninas em meio ao espa�o coletivo - e opressor - de um internato, poderia ser melhor aproveitada caso o filme se esfor�asse em construir uma narrativa mais fluida entre as hist�rias contadas.

Entretanto, por tentar abordar os muitos aspectos dessa vida de forma fragmentada, toda a narrativa parece um pouco solta ou passageira demais - e o final, que deveria ser impactante, apenas se torna abrupto.

Outro momento ajuda a explicar essa ideia com maior precis�o. Localizado numa das nascentes do grande rio Nilo, precursor da humanidade, o Instituto Nossa Senhora do Nilo ganha esse nome justamente por causa de uma imagem milagrosa que teria aparecido nessas �guas.

Por isso, aos p�s dessa nascente, foi colocada a escultura de uma Nossa Senhora preta, constantemente adorada e preservada pelas alunas. Apesar de negra, Gloriosa e Modesta se incomodam com o aspecto de seu nariz, fino demais para os padr�es ruandeses. A primeira, principalmente, decide ent�o consertar o rosto, e convence a segunda a fazer essa repara��o.

O que poderia ser uma boa discuss�o sobre racismo e coloniza��o, para citar uma das quest�es que o filme suscita, se perde entre outras reflex�es igualmente relevantes, como a apresenta��o da hist�rica rivalidade entre hutus e tutsis que culmina no massacre ruand�s. Entre esses fragmentos, poucas ideias perduram.


Homem branco

Outro exemplo est� na figura de Fontenaille, papel de Pascal Greggory, homem branco propriet�rio de uma terra vizinha que parece interpretar a estereotipada figura do colonizador arrependido. Na produ��o, soa inc�modo o fato de que a tradi��o de um povo africano seja contada por seus relatos, principalmente quando a narrativa tamb�m apresenta a personagem de uma anci� curandeira na regi�o.

Como n�o h� tempo para adentrar individualmente nessas duas hist�rias, perdemos a poss�vel cr�tica que poderia ser feita quanto ao apagamento das tradi��es tutsis e a pr�pria viol�ncia da coloniza��o europeia.

Apesar desses aspectos, em dois momentos, o filme se permite uma fuga l�dica e fantasiosa que colabora para a materializa��o dessas tradi��es. Produz imagens belas, ressaltando a perda da inoc�ncia de suas personagens e a imin�ncia da guerra civil.

Por�m, quando o conflito chega, a visualidade da viol�ncia parece gratuita, fetichizada. Mais do que contexto, falta um sentimento de identifica��o que nem a presen�a de uma cartela final explicativa consegue resolver. E a mencionada rela��o entre morte e vida, infelizmente, se torna apartada. 

“NOSSA SENHORA DO NILO”
(Produ��o Fran�a, B�lgica, Ruanda, M�naco, 2019). Dire��o: Atiq Rahimi. Com Amanda Santa Mugabekazi, Albina Sydney Kirenga e Malaika Uwamahoro. Classifica��o: 16 anos. Estreia nesta quinta (5/1) no Cine Ponteio (18h40; nos dias 10/1 e 11/1, �s 19h) e no UNA Cine Belas Artes (20h30, Sala 3).