Em "As margens e o ditado", Elena Ferrante conta como encontrou seu estilo
Livro rec�m-lan�ado no Brasil re�ne quatro ensaios in�ditos sobre a escrita e ajuda a compreender seu processo criativo e seu percurso liter�rio
A experi�ncia como leitora e a influ�ncia de outros autores sobre sua obra tamb�m s�o abordadas por Elena Ferrante em seu novo livro
Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press
A reclus�o de grandes autores � parte da mitologia da literatura. Marcel Proust (1871-1922) passou suas tr�s �ltimas d�cadas confinado no quarto para concluir o monumental “Em busca do tempo perdido” (1913-1927). J. D. Salinger (1919-2010) publicou at� os anos 1960 – depois, at� o fim da vida, suas recusas em escrever e aparecer em p�blico o tornaram quase t�o famoso quanto seu mais importante t�tulo, “O apanhador no campo do centeio” (1951).
A lista � extensa. Inclui os brasileiros Rubem Fonseca (1925-2020), Dalton Trevisan, de 97 anos, e Raduan Nassar, de 87. Mas nenhum nome da literatura contempor�nea se beneficia mais da aus�ncia de exposi��o p�blica do que a italiana Elena Ferrante. N�o � nem uma quest�o de ser ou n�o reclusa, simplesmente n�o se sabe quem ela �. E a ignor�ncia sobre a verdadeira identidade por tr�s do pseud�nimo fez com que o interesse por sua obra aumentasse exponencialmente.
N�o fosse o valor liter�rio, � �bvio que o mist�rio em torno de sua persona se dissiparia. Ferrante, desde a explos�o mundial com a chamada “Tetralogia napolitana” (2011-2014), iniciada por “A amiga genial”, permanece ativa. Paradoxalmente, sua aus�ncia fez dela figura onipresente – tanto que se tornou c�lebre o falso an�ncio de sua morte, em agosto passado, em pegadinha de jornalista italiano. A escritora de (dizem) 79 anos vem, nos �ltimos tempos, tornando p�blica uma parte de sua trajet�ria – mas sempre com cuidado de revelar a escrita, nunca a identidade.
Com lan�amento pela Intr�nseca, “As margens e o ditado” � o novo t�tulo de n�o fic��o de Ferrante. N�o � o primeiro: a mesma editora j� publicou “Frantumaglia: Os caminhos de uma escritora” (2017), que re�ne cartas e entrevistas. O novo livro, editado na It�lia em 2021, compila quatro ensaios in�ditos em que Ferrante descreve sua jornada como leitora e escritora.
Os tr�s primeiros, “A caneta e a pena”, “�gua-marinha” e “Hist�rias, eu”, s�o resultado de um convite feito pelo Centro Internacional de Estudos Human�sticos Umberto Eco, da Universidade de Bolonha. Na s�rie de confer�ncias, realizadas em novembro de 2021, a atriz Manuela Mandracchia encenou os tr�s textos.
J� o �ltimo ensaio, “A costela de Dante”, � tamb�m de 2021 – o texto foi escrito a convite da Associazione degli Italianisti (ADI).
Lembran�as de inf�ncia
Os textos iniciais s�o mais reveladores. A partir de uma lembran�a de inf�ncia, os cadernos de ortografia, com as linhas pretas horizontais e as duas margens avermelhadas verticais, Ferrante teria moldado toda a sua escrita. “Acho que a minha ideia de escrita – e tamb�m todas as dificuldades que arrasto comigo – est�o relacionadas � satisfa��o de ficar plenamente dentro das margens e, ao mesmo tempo, � impress�o de uma perda, de um desperd�cio, por ter conseguido.”
A escritora utiliza como met�fora as margens como seu respeito pela ordem, traduzida por sua grafia met�dica, e tamb�m sua necessidade pelo caos, expressa na vontade de ir al�m da limita��o da folha de papel.
Admite tamb�m que sua briga entre obedecer e rebelar-se se relaciona com o fato de ser mulher. No in�cio de sua trajet�ria liter�ria, todos os seus modelos eram masculinos. Tentou, em v�o, imitar escritores. “Eu imaginava me tornar homem, mas, ao mesmo tempo, permanecendo mulher.”
A virada de chave se deu quando, na adolesc�ncia, Ferrante conheceu a obra da poeta renascentista Gaspara Stampa (1523-1554). “Stampa me dizia que a caneta feminina, justamente por n�o ter sido prevista dentro da l�ngua escrita da tradi��o masculina, devia fazer um esfor�o enorme e muito corajoso para violar ‘o jogo habitual’ e dotar-se de ‘inspira��o e estilo’”.
Instante
Elena leu muito a inglesa Virginia Woolf (1882-1941), em especial os seus di�rios, para encontrar uma solu��o para a escrita que planejava e a que executava. “O instante em que o objeto apareceu e o instante seguinte, em que voc� se p�e a escrever, devem encontrar uma coordena��o m�gica que desencadear� a alegria da escrita ou teremos de nos conformar com embromar por meio das palavras.”
Seus primeiros livros, “Um amor inc�modo” (1992), “Dias de abandono” (2002) e “A filha perdida” (2006), j� tinham a habitual narradora em primeira pessoa. Ferrante escreve, no entanto, que foi a escritora e poeta norte-americana Gertrude Stein (1874-1946) quem lhe inspirou o estilo pr�prio. E este, na opini�o dela, veio justamente com a tetralogia, que inaugurou a segunda fase da carreira, dando-lhe prest�gio e fama.
A autora escreve que, durante algum tempo, considerou “A filha perdida” seu �ltimo livro. “A minha �nsia adolescente de realismo absoluto havia se consumido.” Em um beco sem sa�da, ela releu, agora da maneira correta – “d�cadas antes, eu lera mal, muito mal” – “A autobiografia de Alice B. Toklas” (1933), de Stein.
Foi esse livro que a ajudou a escrever “A amiga genial” e tudo o que veio a partir do romance. “Foi a partir da� que comecei a pensar que poderia sair de Olga, Delia e, em especial, de Leda (as protagonistas de seus tr�s livros iniciais),... se narrasse uma liga��o entre duas personagens t�o fundidas quanto irredut�veis entre si.” � a chamada “outra necess�ria”. Comenta que durante um per�odo, ainda na �poca dos originais, “A amiga genial” teve como t�tulo “A amiga necess�ria”.
Ferrante ainda fala da import�ncia da “escrita herdada”. “� do terreno do que j� foi escrito que surge, por acaso, a frase que p�e em movimento um livrinho agrad�vel ou o grande livro que mostra a dire��o e constr�i um universo �nico de palavras, figuras e conflitos.” Termina o livro fazendo uma leitura feminista de Dante Alighieri (1265-1321). “A costela de Dante” seria sua “mais ousada cria��o: Beatriz.”
Capa do livro As margens e o ditado
“AS MARGENS E O DITADO”
.Elena Ferrante
.Tradu��o: Marcello Lino
.Intr�nseca (128 p�gs.)
.R$ 39,90 (livro) e R$ 26,90 (e-book).
TRECHOS
“Acho que a minha ideia de escrita – e tamb�m todas as dificuldades que arrasto comigo – est�o relacionadas � satisfa��o de ficar plenamente dentro das margens e, ao mesmo tempo, � impress�o de uma perda, de um desperd�cio, por ter conseguido”
“� do terreno do que j� foi escrito que surge, por acaso, a frase que p�e em movimento um livrinho agrad�vel ou o grande livro que mostra a dire��o e constr�i um universo �nico de palavras, figuras
e conflitos”
“O instante em que o objeto apareceu e o instante seguinte, em que voc� se p�e a escrever, devem encontrar uma coordena��o m�gica que desencadear� a alegria da escrita ou teremos de nos conformar com embromar por meio das palavras”
ELENA FERRANTE PARA VER
Confira adapta��es da obra da autora dispon�veis em streaming no Brasil
S�rie 'A amiga genial' foi lan�ada em 2018
HBO Max
» “A amiga genial” (2018, HBO Max)
A “Tetralogia Napolitana” virou s�rie com tr�s temporadas dispon�veis – a quarta e �ltima foi confirmada, mas sem previs�o de lan�amento. Tal qual nos livros, Elena Greco (a narradora � interpretada por Alba Rohrwacher) � uma escritora que come�a a trazer � tona suas mem�rias de inf�ncia, ao descobrir que a melhor amiga desapareceu d�cadas depois de terem se conhecido.
» “A filha perdida” (2021, Netflix)
� a mais conhecida adapta��o de um romance de Ferrante, que marcou a estreia da atriz Maggie Gyllenhaal na dire��o de longas. Indicado a tr�s Oscars, o filme protagonizado por Olivia Colman acompanha Leda, uma professora de meia-idade divorciada que, sozinha de f�rias na praia, come�a a refletir sobre os problemas de seu passado.
Valeria Golino e Giordana Marengo interpretam tia e sobrinha na s�rie' A vida mentirosa dos adultos'
Netflix/divulga��o
» “A vida mentirosa dos adultos” (2023, Netflix)
Mais recente romance de Ferrante (2019), foi adaptado como miniss�rie. Na hist�ria rec�m-lan�ada, acompanhamos duas mulheres, Vittoria (Valeria Golino) e Giovanna (Giordana Marengo), tia e sobrinha. Proibidas de se relacionar, as duas se conhecem somente quando a segunda faz 14 anos. Nos encontros, a garota passa a entender mais sobre o mundo para al�m de sua fam�lia.
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