Cate Blanchett interpreta Lydia Tár e surge no filme Tar regendo orquestra

Cate Blanchett interpreta Lydia T�r, cuja vida "perfeita" entra em crise ap�s o suic�dio de ex-amante

Focus Features/divulga��o

'O que amo neste roteiro � a import�ncia de analisar as estruturas de poder, mas tamb�m a cumplicidade das pessoas que facilitam o funcionamento desta estrutura e se beneficiam dela'

Cate Blanchett, indicada ao Oscar 2023 por seu trabalho em 'T�r"


Em uma entrevista, o romancista norte-americano William Faulkner disse, em tradu��o livre, que “a �nica responsabilidade do autor � com a pr�pria arte” e “honra, orgulho, dec�ncia, seguran�a e felicidade devem ser colocados em risco para se ter o livro escrito”.

Essa imagem do g�nio atormentado que deve ser perdoado por todos os seus atos em nome de um prop�sito maior podia ser atraente e aceit�vel em 1956, quando Faulkner explicou sua filosofia profissional. Mas certamente ganhou outros contornos nos dias de hoje. E � neste terreno f�rtil para discuss�es acaloradas sobre abusos, cultura do cancelamento e obst�culos de vida que floresce “T�r”, primeiro filme do diretor Todd Field desde “Pecados �ntimos”, de 2006, e indicado a seis categorias no Oscar, na ter�a-feira (24/1).
 
“O ato da cria��o � totalmente ego�sta. Ele n�o funciona muito bem com a vida cotidiana, n�o � educado”, disse o cineasta na estreia do longa no supertecnol�gico cinema do Museu da Academia, em Los Angeles, em outubro do ano passado.

“Isso me soa como uma justificativa”, rebateu a atriz Cate Blanchett, protagonista do filme. “Voc� fala que s� funciona fora da vida, mas interpretar algo t�o intenso me fez sentir mais viva que nunca.”

Lydia T�r � "quase" verdade

A vivacidade � percebida na tela. A hist�ria da ascens�o e queda de Lydia T�r, a maior condutora de m�sica cl�ssica da era moderna, disc�pula de Leonard Bernstein, ganhadora do EGOT (termo para quem tem pr�mios Emmy, Grammy, Oscar e Tony) e primeira mulher a liderar a Filarm�nica de Berlim, � t�o bem conduzida, interpretada e contada que muitos acharam que era a biografia uma figura real.

A revista New York fez um artigo intitulado “49 fatos sobre Lydia T�r”. Nas entrevistas, Todd Field lista com precis�o os detalhes de vida sua personagem como se fossem verdadeiros.
 
 

O filme mergulha num realismo obsessivo em suas intersec��es com o lado de c� da c�mera: no in�cio da trama, T�r est� prestes a lan�ar suas mem�rias, “T�r on T�r” pela Nan A. Talese, da editora Doubleday, e concede longa entrevista em p�blico para o escritor Adam Gopnik, da The New Yorker, dentro do festival produzido pela tradicional revista.

O fabuloso estudo de personagem orquestrado por Field e Blanchett foi at� elogiado eloquentemente pelo diretor Martin Scorsese quando “T�r” e sua protagonista levaram os pr�mios principais do New York Film Critics Circle, no in�cio de janeiro.
 
“N�s existimos na cabe�a dela. Experimentamos s� por meio da sua percep��o. O mundo � ela. Tempo, cronologia e espa�o se transformam na m�sica pela qual ela vive. E n�o sabemos aonde o filme vai. Apenas seguimos a personagem na sua esquisita e perturbadora estrada rumo ao seu destino final ainda mais estranho”, disse Spielberg.

� uma estrada que parecia pavimentada rumo � gl�ria. Depois das tarefas promocionais em Nova York, onde tem embate antol�gico sobre Bach com um jovem estudante de m�sica, T�r, vivida por Cate Blanchett, retorna para suas fun��es em Berlim, onde prepara sua filarm�nica para a grava��o ao vivo da �nica grande pe�a que falta em seu repertorio, a “Quinta sinfonia”, de Mahler, que, ali�s, ganhou nova vida no streaming depois da estreia do longa.

Na cidade, ela mora com a esposa, interpretada por Nina Hoss, tamb�m parte da orquestra, e a filha adotiva, vivida por Mila Bogojevic, num apartamento luxuoso que poderia ser capa de revista de decora��o europeia. Suas manh�s se dividem entre planejamentos importantes e caf�s com mestres da m�sica cl�ssica.

Suic�dio

A vida perfeita e a carreira invej�vel conquistada a duras penas e estudos, segundo a pr�pria personagem, come�a a ruir com a not�cia do suic�dio de uma antiga instrumentista da filarm�nica. A garota deixou provas de suas rela��es sexuais com T�r, que, ap�s o t�rmino do caso, teria colocado a amante na lista negra que a impossibilitava de assumir qualquer emprego em filarm�nicas de prest�gio.

O que parecia um estudo bem-feito de personagem vira sinfonia complexa de g�neros que vai do horror cl�ssico sobrenatural kubrickiano ao drama psicol�gico, discutindo rela��es de poder, ego, privil�gio de elites (intelectuais ou n�o) e a carta branca que alguns recebem por serem considerados “g�nios”.

“O que amo neste roteiro � a import�ncia de analisar as estruturas de poder, mas tamb�m a cumplicidade das pessoas que facilitam o funcionamento desta estrutura e se beneficiam dela”, explica Cate Blanchett, que entrevistou diversas maestrinas para o papel.

“Poderia ser uma arquiteta ou gerente de banco, mas � na grande narrativa da m�sica cl�ssica que o filme faz seus questionamentos sobre estruturas de poder no mundo moderno, mas n�o os responde.”
 
Marin Alsop, regente da Sinfônica de Chicago, durante ensaio

Marin Alsop, regente da Sinf�nica de Chicago, questiona o motivo de a protagonista ser mulher, embora homens famosos cometam abusos no cen�rio erudito

Alex Halada/AFP
 

O fato de o filme mostrar a maestrina l�sbica abusando da sua posi��o de poder para obter ou facilitar rela��es sexuais gerou cr�ticas de Marin Alsop, uma das raras condutoras no campo dominado por homens.

“Tantos aspectos superficiais de 'T�r' parecem se alinhar com minha vida pessoal. Assim que assisti ao filme, n�o fiquei preocupada, mas ofendida como mulher, condutora e l�sbica”, declarou a l�der da Sinf�nica de Chicago e ex-regente da Orquestra Sinf�nica de S�o Paulo (Osesp) ao jornal brit�nico “The Sunday Times”.

“H� tantos homens com casos documentados que poderiam servir de base para o filme. Em vez disso, colocaram uma mulher no papel com os atributos destes homens.”
 
Alsop n�o cita nominalmente os acusados. No entanto, h� casos recentes na m�sica cl�ssica envolvendo abusos de poder e ataques sexuais.
 
James Levine, pianista e condutor ligado � Metropolitan Opera de Nova York, morto em 2021, foi acusado de abusar de nove alunos, em 2018. No mesmo ano, Charles Dutoit, diretor art�stico e principal maestro da Orquestra Filarm�nica Real, em Londres, renunciou ao cargo ap�s den�ncias de agress�o sexual.

Diretor aponta machismo

Todd Field n�o se mostra alheio �s cr�ticas por sua escolha ousada. “� uma opera��o que existe h� muito tempo na m�sica cl�ssica, que � basicamente masculina”, diz o cineasta.
 
“Ao fazer um filme que tenta questionar estruturas de poder me parece importante a capacidade de abstra��o, porque te possibilita olhar para o sistema de uma maneira diferente, como se fosse quase um conto de fadas. Afinal, com exce��o de grandes condutoras como Marin Alsop ou Nathalie Stutzmann, h� poucas oportunidades para mulheres nesta �rea.”

Questionada pelo escritor Jonathan Franzen, que conduz a conversa no Museu da Academia, se a invers�o de g�neros no topo da pir�mide de poder mudaria alguma coisa, a atriz Cate Blanchett � direta. “Posso ter vivido embaixo de uma pedra, mas ainda n�o experimentei um sistema matriarcal”, responde Blanchett, que aprendeu a conduzir e tocar piano cl�ssico para o papel com uma pianista h�ngara.

“Para saber como funcionaria esse sistema (matriarcal), ele precisaria existir. Esse filme � um exame do poder e da corrup��o do poder. Haveria menos nuances se fosse sobre um homem.”

“T�R”

Filme de Todd Field. Com Cate Blanchett, Nina Hoss, No�mie Merlant, Sophie Kauer, Alec Baldwin e Mark Strong. Em cartaz em salas dos shoppings Diamond e Ponteio.