O jurista argentino Luis Moreno Ocampo

O jurista argentino Luis Moreno Ocampo foi o promotor que levou generais ao banco dos r�us

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O jurista argentino Luis Moreno Ocampo, 70 anos, foi criticado at� pela m�e quando assumiu o primeiro caso de sua carreira como promotor: levar a julgamento os nove ditadores militares que governaram a Argentina entre o golpe de Estado de 1976 e a redemocratiza��o em 1983.

A oposi��o da m�e virou anedota do filme Argentina, 1985, indicado ao pr�mio de melhor filme internacional do Oscar 2023 e vencedor do Globo de Ouro na categoria melhor filme estrangeiro.

Em entrevista � BBC News Brasil por Zoom, de seu apartamento em Malibu, na Calif�rnia, Ocampo afirmou que a hist�ria retratada no cinema e no streaming mostra �s novas gera��es a necessidade de punir respons�veis por crimes violentos do passado e a import�ncia de realizar julgamentos justos at� contra os torturadores mais cru�is.

O filme recria um momento decisivo da hist�ria argentina. Mesmo com a retomada do poder pelos civis, n�o havia unanimidade no pa�s sobre a conveni�ncia de julgar militares respons�veis por crimes b�rbaros.

Pelo menos 30 mil pessoas desapareceram no pa�s durante a ditadura, segundo estimativas de organiza��es de direitos humanos.

Mas o primeiro presidente da redemocratiza��o, Ra�l Alfons�n, tinha como bandeira de campanha levar a julgamento os respons�veis nas For�as Armadas pelos crimes da ditadura — venceu a elei��o com 52%.


Raúl Alfonsín, primeiro presidente da redemocratização, em maio de 1987 na Argentina.

Ra�l Alfons�n, primeiro presidente da redemocratiza��o, revogou lei de 'autoanistia' dos militares

Rafael WOLLMANN/Getty Images

Alfons�n revogou uma lei de "autoanistia" que os militares editaram antes de deixar o poder. E determinou por decreto que a promotoria abrisse investiga��es contra os comandantes da Marinha, da Aeron�utica e do Ex�rcito no per�odo ditatorial. Assim nasceu o processo contra os nove comandantes militares.

O Brasil caminhou de maneira oposta. Nenhum presidente tomou a iniciativa de revogar a Lei da Anistia, sancionada pelo �ltimo ditador, Jo�o Figueiredo, em 1979. O Supremo Tribunal Federal (STF) manteve, em 2010, a validade da Lei da Anistia, e ainda n�o pautou o julgamento de um recurso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que tenta reverter a decis�o.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) j� mandou o Brasil reabrir investiga��es sobre respons�veis por assassinatos durante a ditadura brasileira, o que tem amparado decis�es de ju�zes para retomar e avan�ar alguns casos. Para Ocampo, a anistia tornou o Brasil mais propenso � interfer�ncias das For�as Armadas na vida pol�tica.

"A falta de clareza do que aconteceu no Brasil durante a ditadura ajuda pessoas a romantizar sobre serem protegidas por homens fortes, como minha m�e pensava que era protegida pelo general Jorge Videla (ditador que comandou a Argentina entre entre 1976 e 1981)", diz o ex-promotor.

Mas, depois dos ataques de 8 de janeiro em Bras�lia — quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) destru�ram patrim�nio, mobili�rio e edifica��es do Executivo, do Legislativo e do Judici�rio contra a vit�ria de Luiz In�cio Lula da Silva (PT) —, Ocampo avalia que o Brasil pode servir de modelo sobre como reagir a investidas contra a democracia.

"Ainda que existam diferen�as pol�ticas, todos os pol�ticos precisam concordar em proteger a democracia. O Brasil pode mostrar ao mundo como reagir politicamente a ataques contra a democracia. Por isso, acredito que o governo Lula tem que criar um consenso sobre isso. Sei que � dif�cil, porque as redes sociais est�o tornando a sociedade muito fragmentada", pondera o jurista.

"� um grande desafio pol�tico para Lula conseguir consenso para proteger a democracia e tirar vantagem desses ataques", acrescenta.

Para ilustrar a import�ncia n�o s� de punir os ditadores argentinos, mas de fazer isso em um julgamento justo, Ocampo conta que sugeriu ao diretor do filme, Santiago Mitre, que inclu�sse essa ideia no roteiro, na fala de um dos ju�zes: "Vamos dar aos militares o que eles n�o deram �s suas v�timas: um julgamento justo".

Veja abaixo trechos da entrevista com Ocampo:

BBC News Brasil - Ao contr�rio da Argentina, o Brasil aprovou uma Lei de Anistia para militares e n�o julgou os respons�veis por torturas e assassinatos durante a ditadura. Quais as consequ�ncias disso?

Luis Moreno Ocampo - No livro The Justice Cascade: How Human Rights Prosecutions Are Changing World Politics, a professora Kathryn Sikkink mostrou que a falta de investiga��es no Brasil est� ligada ao fato de ocorrerem mais casos de tortura do que em outros pa�ses. Pa�ses que investigam o passado t�m menos problemas de tortura policial do que o Brasil. Isso � importante. Precisamos oferecer ao presidente Lula um bom projeto para investigar o crime organizado de maneira generalizada. A ideia de gerenciar a viol�ncia com meios pac�ficos � crucial para nosso futuro, como a Argentina mostrou.

BBC News Brasil - Essa anistia aos militares da ditadura tornou o Brasil mais propenso a interfer�ncias ou a problemas com os militares na atualidade?

Ocampo - Sim. A falta de clareza do que aconteceu no Brasil durante a ditadura ajuda pessoas a romantizar sobre serem protegidas por homens fortes, como minha m�e pensava que era protegida por Videla. N�o sei o suficiente sobre o Brasil, mas na Argentina a investiga��o do passado produziu rebeli�es militares e conflitos. S� que as pessoas reagiram e defenderam a democracia. Essa foi a quest�o definidora.

BBC News Brasil - Como o senhor observou os ataques contra os Tr�s Poderes do Estado brasileiro no dia 8 de janeiro em Bras�lia?

Ocampo - � incr�vel como os ataques de Bras�lia foram similares aos ataques contra o Congresso dos Estados Unidos. Acho que n�o estamos prestando aten��o a isso. Nos Estados Unidos, condenaram os l�deres dos ataques, mas ainda h� pol�ticos no Senado apoiando essa invas�o.

� muito importante o que Lula fez no Brasil no dia seguinte ao ataque, quando reuniu l�deres pol�ticos contra isso. Isso � crucialmente importante. Ainda que existam diferen�as pol�ticas, todos os pol�ticos precisam concordar em proteger a democracia.

O Brasil pode mostrar ao mundo como reagir politicamente a ataques contra a democracia. Por isso, acredito que o governo Lula tem que criar um consenso sobre isso. Sei que � dif�cil, porque as redes sociais est�o tornando a sociedade muito fragmentada. � um grande desafio pol�tico para Lula conseguir consenso para proteger a democracia e tirar vantagem desses ataques.

Especialistas acad�micos precisam oferecer a Lula mecanismos eficientes para controlar o crime violento e as mudan�as clim�ticas. Quando se � pol�tico, n�o se tem tempo de pensar nesse tipo de quest�o. Os acad�micos n�o est�o ocupando esse espa�o. Especialistas precisam conceber novas ferramentas, incluindo ferramentas que usam intelig�ncia artificial, para controlar o crime organizado. Isso � crucial.


Foto tirada após a invasão de manifestantes golpistas no Senado brasileiro em 8 de janeiro de 2023

Foto tirada ap�s a invas�o de manifestantes golpistas no Senado brasileiro em 8 de janeiro de 2023

The Washington Post/Getty Images

BBC News Brasil - Houve relatos no Brasil de que alguns militares teriam facilitado ou se omitido nos ataques de Bras�lia. Como as autoridades devem lidar com isso?

Ocampo - Quando voc� v� o que aconteceu em Bras�lia, a falta de rea��o foi similar ao que aconteceu em Washington. A pol�cia e a Guarda Nacional n�o foram eficientes por horas. N�o foi t�o diferente. A pol�cia e o Ex�rcito seguem ordens. N�o precisa prender todos os policiais ou todos os militares. Precisa dar ordens claras.

Na Argentina, pessoas disseram que o respons�vel pela nossa seguran�a, durante o julgamento, tinha trabalhado em um centro de tortura, mas em 1985 o comiss�rio de pol�cia n�o seguia ordens do general Jorge Videla. At� escoltou Videla como prisioneiro. Os policiais seguem ordens.

BBC News Brasil - Por que o sr. acha que a rea��o de militares e policiais foi semelhante no Brasil e nos EUA?

Ocampo - Nos Estados Unidos, a Guarda Nacional foi realmente lenta e dizem que h� militares insubordinados nos baixos escal�es das For�as Armadas. Mas acho que ningu�m estava preparado para isso. N�o � f�cil matar pessoas protestando na frente do Congresso. � complicado. N�o estavam preparados para lidar com o problema. Mas algumas pessoas no Brasil e nos EUA agiram bem para resolver a situa��o, sejam autoridades ou membros do Congresso. O Brasil virou exemplo de como a democracia sob ataque � um problema global.

BBC News Brasil - Como as institui��es devem reagir a ataques como os sofridos pelo Brasil?

Ocampo - Os ju�zes reagiram muito bem, corretamente, garantindo que os criminosos sejam identificados. Realmente precisamos que os pol�ticos deixem claro no Brasil que a democracia � um projeto comum. Depois podem debater a economia. Mas isso � crucial.

BBC News Brasil - A ordem jur�dica internacional est� equipada para lidar com epis�dios como os ataques em Bras�lia?

Ocampo - N�o. Precisamos fazer mais. � um momento em que precisamos pensar como desenvolver a conex�o entre institui��es nacionais e internacionais. Alguns dizem que a Organiza��o das Na��es Unidas (ONU) n�o pode ser culpada pela falta de paz no mundo, porque a ONU � o pr�dio onde pa�ses soberanos se encontram. Culpar a ONU pela falta de seguran�a � como culpar o Madison Square Garden quando os Knicks jogam mal. O Tribunal Penal Internacional (TPI) foi a primeira institui��o a intervir nos pa�ses-estado. Minha experi�ncia l� transformou o meu entendimento.

Precisa ter esse tipo de institui��o internacional para constranger sistemas nacionais que pratiquem atos ilegais. � um modelo a ser desenvolvido, porque precisamos desenhar coisas novas. Precisamos de algo como um tribunal contra o crime organizado, que possa intervir quando crimes n�o s�o investigados. Precisamos de algo assim contra as mudan�as clim�ticas e contra o crime organizado.

Para o crime organizado, precisamos primeiro de uma organiza��o regional investigando os crimes. A Europol � a maior organiza��o policial, mas s� para a Europa. E a Interpol n�o � operacional; � um sistema de troca de informa��es sobre fugitivos. Precisamos de uma pol�cia central para controlar o crime organizado.

BBC News Brasil - Quase 40 anos depois, quais foram as consequ�ncias para a Argentina do julgamento dos comandantes militares pelos crimes praticados na ditadura?

Ocampo - O presidente Ra�l Alfons�n dizia que t�nhamos que acabar com 50 anos de impunidade por golpes de Estado e proteger a democracia. Esse era o plano dele. Ele se elegeu para isso. � interessante porque naqueles dias professores de ci�ncia pol�tica e de rela��es internacionais n�o queriam julgamentos ou investiga��es, porque a Espanha teve uma transi��o mais suave sem desafiar o ditador Francisco Franco.

E o Brasil tinha seguido em frente sem investigar antigos ditadores. Alfons�n enfrentou rebeli�es militares, mas as pessoas apoiaram a democracia e assim ela ficou mais forte. O filme � incr�vel, porque passou essa mensagem para novas gera��es. O filme n�o � s� importante para a Argentina, mas para o mundo todo, porque a democracia est� sob ataque em todo o mundo.

BBC News Brasil - Como foi superada a alega��o defensiva dos comandantes argentinos de que n�o sabiam e n�o organizaram os assassinatos e as torturas?

Ocampo - Esse foi o maior desafio para n�s. No in�cio, n�o sab�amos exatamente quem estava torturando ou matando as v�timas. Ent�o escolhemos os casos mais graves da Comiss�o da Verdade. Tentamos mostrar diferentes anos e juntas militares, de diferentes partes do pa�s. Juntamos 700 casos.

Depois, come�amos a ligar para os sobreviventes e a perguntar como foram sequestrados, se havia testemunhas, se algum familiar viu etc. Tentamos fortalecer os depoimentos das v�timas com outras testemunhas.

Em seguida, buscamos outros documentos como habeas corpus ou queixas na justi�a sobre a pris�o da v�tima. Depois, na parte importante de provar que comandantes sabiam, o fato � que em todos os casos depois do sequestro as pessoas eram torturadas em centros clandestinos em depend�ncias das For�as Armadas ou da pol�cia. Era um sistema de tortura.

Para quebrar o sil�ncio, eles torturavam sem limites para conseguir mais informa��es. Isso mostrava a responsabilidade do comando e que n�o era um incidente isolado ou grupos agindo por conta pr�pria. A Comiss�o da Verdade chamava esses locais de tortura de "centros clandestinos".

Mas os militares, na sua linguagem, chamavam de "local de encontro de prisioneiros". Quando pergunt�vamos aos generais quais eram os centros clandestinos na �rea sob sua responsabilidade, eles negavam. Mas quando pergunt�vamos se havia "locais de encontro de prisioneiros" nas suas �reas, eles reconheciam esses lugares. Eles admitiam que inspecionavam e prestavam informa��es aos comandantes.


Foto sem data - provavelmente tirada por volta de dezembro de 1977 - de duas freiras francesas, irmã Alice Domon (esquerda) e irmã Leonie Duquet

As freiras francesas irm� Alice Domon (esquerda) e irm� Leonie Duquet foram sequestradas, torturadas e mortas durante a ditadura argentina (1976-1983)

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BBC News Brasil - Como se chegou a uma prova irrefut�vel contra os comandantes militares?

Ocampo - Tivemos uma "smoking gun" (uma "arma fumegante", uma prova irrefut�vel). A melhor prova para mim foi um caso em que a Marinha disse que freiras francesas foram sequestradas pelo grupo guerrilheiro Montoneros. Mostraram fotos das freiras com a bandeira dos guerrilheiros atr�s.

Tivemos diferentes testemunhas dizendo que as fotos foram feitas em um quartel da Marinha. E a mais importante testemunha foi o ex-presidente da Fran�a, Val�ry Giscard d'Estaing, porque ele contou que recebeu o almirante Emilio Massera na Europa, quando o militar argentino fazia um tour em busca de apoio para virar o novo presidente.

O presidente franc�s perguntou a Massera sobre as freiras francesas. Massera deu um papel sem assinatura, mostrando que as freiras francesas, citadas pelo nome, foram mortas pelas For�as Armadas, n�o pelos guerrilheiros.

Massera alegava que o Ex�rcito tinha matado as freiras, mas a verdade era que a Marinha tinha matado, ent�o Massera estava escondendo isso. Isso foi uma grande evid�ncia, uma "smoking gun". E o presidente franc�s testemunhou.

Nenhum comandante matou com as pr�prias m�os. Eles davam ordens. Comandantes n�o atiram, tra�am planos. As ordens formais nunca diziam para "torturar". As ordens diziam para fazer o que chamavam de "entrevistas t�ticas". Usavam palavras diferentes para esconder os crimes.

Chamavam as v�timas de "alvo planejado" e "alvo oportuno". "Alvo planejado" era a pessoa que devia ser sequestrada. "Alvo oportuno" era a pessoa que devia ser torturada. Algumas ordens n�s localizamos, mas tivemos de decodificar, porque foram escritas de maneira cifrada.

O n�mero de v�timas transformou o julgamento. Militares tentaram dizer que venceram a guerra contra os terroristas. Mas o que fizeram foi pior. A verdadeira quest�o � a seguinte: tratamos pessoas violentas como criminosos com direitos ou inimigos que podem ser mortos? Militares consideraram que os argentinos eram inimigos a matar. Diziam que defendiam a democracia e a liberdade. Como podem matar e torturar defendendo a democracia e a liberdade?

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64455895