Escritor Campos de Carvalho está sentado no chão, sobre o tapete, escrevendo sobre a mesa de centro de uma sala

Obra de Campos de Carvalho, autor recluso e avesso a badala��es, deixou o limbo gra�as � editora Maria Am�lia Mello

Elias Nasser/O Cruzeiro/arquivo EM/13/10/69

'O que antes era a consci�ncia, o anjo da guarda de cada um, hoje se chama o trans�stor: coisas da era nuclear ou eletr�nica. Voc� deixa que os outros pensem por voc� e decidam sobre o que voc� deve fazer'

Campos de Carvalho, escritor


Sob o pretexto de encontrar um ins�lito objeto, em “O p�caro b�lgaro”, o mineiro de Uberaba Campos de Carvalho criou uma das fic��es mais inventivas, livres e provocadoras da literatura brasileira moderna. A suposta expedi��o � Bulg�ria � o pretexto para uma viagem da imagina��o em uma trama regida pelo absurdo. “Copacabana � um bairro onde se pode viver tranquilamente, desde que se esteja louco”. Ele viaja para provar que a Bulg�ria n�o existe.

O narrador-protagonista se envolve em um labirinto de digress�es que subvertem completamente a l�gica e colocam em suspens�o a realidade: “Um escritor que nem sequer conseguiu escrever, um herdeiro que n�o herdou nada que prestasse, um cidad�o que nasceu numa cidadezinha e acabou sendo menor que a sua cidade, um desmemoriado para as coisas sem import�ncia e agora para as mais importantes”, se autodefine o narrador-protagonista.

Br�s Cubas

“O p�caro b�lgaro” est� de volta, depois das reedi��es de “A Lua vem da �sia”, “A chuva im�vel” e “A vaca do nariz sutil”, todos pela Editora Aut�ntica. � relato do que se passou e sobretudo do que n�o se passou, diz o narrador, como se reescrevesse “Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas”, de Machado de Assis, ou “Tristan Shandy”, de Laurence Sterne, com uma mirada de nonsense: “O que se convencionou chamar Bulg�ria � sobretudo um estado de esp�rito”, diz o narrador de “O p�caro b�lgaro”.

“Como Deus, por exemplo. Mesmo que ficasse um dia definitivamente demonstrada a inexist�ncia da Bulg�ria, ou das Bulg�rias, ainda assim continuariam a existir os b�lgaros – do mesmo modo como existem os lun�ticos que nunca foram e jamais ir�o � Lua.”

O narrador de “O p�caro b�lgaro” ataca, de maneira ir�nica e ferina, o senso comum, os valores tradicionais, as verdades prontas e os lugares comuns, em uma festa an�rquica do pensamento de tom hilariante.

“O que antes era a consci�ncia, o anjo da guarda de cada um, hoje se chama o trans�stor: coisas da era nuclear ou eletr�nica. Voc� deixa que os outros pensem por voc� e decidam sobre o que voc� deve fazer: e como os outros, por sua vez, est�o deixando que algu�m pense ou decida por eles, acaba ningu�m pensando nem decidindo por coisa nenhuma, o que � justamente o que o governo quer e faz o poss�vel para que aconte�a. Da� a F�brica Nacional de Trans�stores, e da� a voz do esp�quer que � a voz do governo anunciando sabonetes e uma era de franca prosperidade - para ele naturalmente”, escreve Campos de Carvalho.

A viagem da imagina��o do autor � sempre armada de uma vis�o insubmissa e irreverente: “N�o adianta querer ou n�o protestar. Se n�o f�ssemos de certo modo e at� certo ponto b�lgaros, n�o estar�amos aqui t�o interessados em provar a exist�ncia ou a inexist�ncia da Bulg�ria, e estar�amos antes cuidando de ir descobrir Portugal, o estado de Massachusetts, o C�ucaso ou simplesmente as pernas da vizinha ou da empregada, que est�o cobertas justamente para que as descubramos.”
 

''Em nossas conversas, nunca falou sobre os seus livros. Percebi que ele tinha certa m�goa de n�o ser reconhecido, sabia que tinha talento e era original. O interesse pela obra dele est� crescendo. Mas ele precisa e merece alcan�ar um p�blico mais amplo''

Maria Am�lia Mello, editora

 

Recluso, reservado e desconcertante

Campos de Carvalho (1916-1988) trabalhou como procurador de Justi�a em S�o Paulo, morou no Rio de Janeiro e viveu o tempo todo recluso.
 
Era t�o estranho e desconcertante quanto seus personagens. Concedeu rar�ssimas entrevistas, n�o gostava de tirar fotos, n�o fazia pol�tica liter�ria e detestava badala��es ou gl�rias falsas. Todas as suas obras foram produzidas entre 1956 e 1968.

Ele foi redescoberto pela editora Maria Am�lia Mello, que conheceu a obra do escritor mineiro na �poca em que era resenhista dos suplementos liter�rios da Tribuna da Imprensa e do Jornal do Brasil.
 
“Fiquei muito encantada com a linguagem, a maneira como ele descreve as cenas. Ele tem muito humor, n�o � escancarado, mas � sutil, com um nonsense que escapava completamente da literatura realista brasileira. Tinha um clima fant�stico de J.J. Veiga e de Victor Giudice”, diz ela.

Em uma reviravolta do destino, na d�cada de 1980, Maria Am�lia se tornou editora da Jos� Olympio, lembrou-se de Campos de Carvalho e come�ou a perguntar onde ele estava.

“As pessoas o confundiam com Jos� C�ndido de Carvalho, autor que tamb�m editei. Ningu�m mais sabia quem era Campos de Carvalho. Algu�m me disse que ele morava em Petr�polis. Fui at� l�, o porteiro me contou que ele estava morando em S�o Paulo, perto do Incor, Instituto do Cora��o. � que Campos de Carvalho tinha muito medo de morrer do cora��o e resolveu morar perto do Incor. Mexi daqui e dali e encontrei a casa onde ele morava. Ficou muito feliz ao saber que eu queria reeditar os livros dele”, diz a agora curadora das obras do escritor mineiro.

'Mesmo morto continuarei dando o meu testemunho de morto. Esta chuva im�vel serei eu que estarei cuspindo'

Campos de Carvalho, escritor


Obra reeditada

Na Jos� Olympio, Maria Am�lia reeditou as quatro novelas de Campos de Carvalho – “A vaca do nariz sutil”, “A Lua vem da �sia”, “A chuva im�vel” e “O p�caro b�lgaro”. Recentemente, quando se transferiu para a Editora Aut�ntica, a editora republicou todos os volumes em edi��es esmeradas.

“Mesmo morto continuarei dando o meu testemunho de morto. Esta chuva im�vel serei eu que estarei cuspindo”, escreve Campos de Carvalho em “A chuva im�vel”. Maria Am�lia comenta: “Tem alguma coisa de poesia na fic��o dele. A chuva pressup�e movimento.”

A editora e curadora visitou Campos de Carvalho diversas vezes em S�o Paulo. Viveu cenas de nonsense t�o inquietantes quanto as da fic��o do escritor mineiro.

“Ele era fechado, n�o tinha filhos, vivia com a esposa, dona Lygia. Havia uma coisa engra�ada. Dona Lygia tinha dificuldade de ouvir, e Campos se recusava a falar. De vez em quando, ele dizia uma coisa absurda do tipo 'vai chover amanh�, n�o sei que horas, mas com certeza ser� �s quatro da tarde'. A�, eu disse para ele: 'Se n�o chover, o trem vai descarrilhar'. Ele soltou uma risada e, partir daquele momento, a nossa conversa se despiu da cerim�nia e se tornou um di�logo de pessoas normais.”

O primeiro par�grafo de “A Lua vem da �sia” � bastante revelador do esp�rito an�rquico de Campos de Carvalho: “Aos 16 anos, matei meu professor de l�gica alegando leg�tima defesa. E que defesa poderia ser mais leg�tima?”.
 
Em “O p�caro b�lgaro”, ele faz uma expedi��o � Bulg�ria para provar que ela n�o existe. O �ltimo cap�tulo � intitulado “Partida”, mas se trata n�o do fim, mas de uma partida de cartas.

Capa do livro O púcaro bulgaro

Capa do livro O p�caro bulgaro

Aut�ntica/reprodu��o
“Ele � desconcertante. Em nossas conversas, nunca falou sobre os seus livros. Percebi que ele tinha certa m�goa de n�o ser reconhecido, sabia que tinha talento e era original. O interesse pela obra dele est� crescendo. Mas ele precisa e merece alcan�ar um p�blico mais amplo”, afirma Maria Am�lia Mello.

“O P�CARO B�LGARO”

• De Campos de Carvalho
• Editora Aut�ntica
• 110 p�ginas
• R$ 59,80