Arthur Bispo do Rosario acreditava ter recebido de vozes celestiais a miss�o de 'representar todas as coisas existentes na Terra'. Na foto, de 1943, ele veste uma de suas obras
Era quase v�spera de Natal quando o sergipano Arthur Bispo do Rosario, ent�o com 29 anos de idade, recebeu a revela��o que iria definir sua vida e obra.
Na noite de 22 de dezembro de 1938, guiado pelo que descreveu como a apari��o de sete anjos e vozes celestiais, ele peregrinou durante dois dias pelas ruas do Rio de Janeiro, onde morava, at� chegar ao Mosteiro de S�o Bento, no centro da cidade.
Ap�s anunciar aos monges que era um enviado de Deus para "julgar os vivos e os mortos", Bispo foi encaminhado ao Hospital Nacional de Alienados, antigo manic�mio localizado na Praia Vermelha. Diagnosticado com esquizofrenia paranoide, foi transferido dias depois para a Col�nia Juliano Moreira, institui��o psiqui�trica em Jacarepagu� onde passaria a maior parte das cinco d�cadas seguintes.
Ele transformou as celas em que estava confinado em oficina de trabalho e come�ou a recriar cenas do cotidiano e a contar a sua vers�o da hist�ria do universo. Utilizava qualquer material que encontrasse, como len��is, uniformes, peda�os de madeira de caixas de feira, cabos de vassouras, chinelos, t�nis Conga, talheres, canecas e todo o tipo de sucata e objetos que ganhava e trocava com outros pacientes.
Quando morreu, em 1989, aos 80 anos, havia deixado um acervo de mais de mil objetos, entre estandartes, indument�rias, bordados, vitrines, fich�rios, m�veis, esculturas, miniaturas e outras pe�as diversas sem categoriza��o. Nenhuma tinha data ou a assinatura do autor.
Pobre, negro e considerado "louco", Bispo passou a vida inteira � margem da sociedade, e n�o se considerava um artista e nem via seu trabalho como arte. "Essa � minha miss�o, representar a exist�ncia na Terra. � o sentido da minha vida", dizia.
Mas, a partir da d�cada de 1980, nos anos finais de sua vida, o mundo art�stico come�ou a descobrir suas obras. Ap�s a morte, ele continuou a ganhar reconhecimento da m�dia e da cr�tica especializada, com exposi��es no Brasil e no exterior e uma apresenta��o na Bienal de Veneza, em 1995, onde sua arte foi aclamada como vanguardista.
"Bispo do Rosario � um dos maiores artistas brasileiros", diz � BBC News Brasil o curador do Museu Bispo do Rosario Arte Contempor�nea, Ricardo Resende. O museu funciona nas instala��es da Col�nia Juliano Moreira.
"Quando sua obra emergiu, n�o se encaixava em nada do que havia registrado na hist�ria da arte, mas parecia se inserir em tudo o que a modernidade e a contemporaneidade haviam criado. Na verdade, pode-se dizer, precede tudo", diz Resende.
"O que poder�amos chamar de ‘est�tica da precariedade’, ou ‘est�tica da pobreza’, t�o comum na arte contempor�nea, expressando a simplicidade da vida na institui��o, nas cidades e campos, e da crian�a que nunca foi esquecida. � isso que Bispo involuntariamente nos apresenta como sua est�tica."
Agora, sua vida e obra s�o tema de uma exposi��o na galeria da Americas Society, em Nova York, no que � a primeira retrospectiva dedicada a ele nos Estados Unidos. O t�tulo da mostra, que vai at� 20 de maio, � Bispo do Rosario: All Existing Materials on Earth (Todos os Materiais existentes na Terra), uma refer�ncia � miss�o que marcou a trajet�ria do artista.

O 'Manto da Apresenta��o', destaque da mostra em Nova York, � considerado a obra-prima de Bispo e foi produzido para ser vestido pelo artista no Dia do Ju�zo Final
Rafael Adorjan, Cortesia da AS/COADo caos � ordem
Bispo do Rosario nasceu em 1909 na cidade de Japaratuba, em Sergipe. Teve passagem pela Marinha, de onde foi desligado em 1933 por indisciplina, e uma breve carreira como pugilista profissional, encerrada ap�s um acidente em que teve o p� esmagado. Tamb�m trabalhou como lavador de bondes na companhia Light e empregado dom�stico, at� ser internado.
"Todas essas experi�ncias de vida, marcadas por diferentes graus de marginaliza��o por conta de ra�a, classe e doen�a mental, se refletem em sua obra", diz � BBC News Brasil uma das curadoras da mostra, Tie Jojima, respons�vel pela exposi��o ao lado de Ricardo Resende, Aim� Iglesias Lukin e Javier T�llez.
Ap�s a interna��o inicial, Bispo chegou a passar alguns per�odos fora de institui��es psiqui�tricas, por ter fugido ou recebido alta. Em 1954, fugiu da Col�nia Juliano Moreira, e nos anos seguintes exerceu diversas atividades, como seguran�a, porteiro e funcion�rio em uma cl�nica pedi�trica, onde continuou a se dedicar a sua obra, trabalhando no por�o do pr�dio.
Em 1964, voltou definitivamente � Col�nia e foi instalado no N�cleo Ulisses Vianna, que era composto por 11 pavilh�es cercados por um muro alto, nos quais eram alojados pacientes considerados violentos ou agitados. Os pavilh�es eram divididos em enfermarias, cada uma com cerca de 40 camas, onde n�o havia privacidade, e tamb�m tinham uma ala sem camas, chamada de "bolo".
Segundo o Museu Bispo do Ros�rio Arte Contempor�nea, "nessas alas, os pacientes ficavam amontoados no ch�o e, ao seu redor, 10 celas-fortes – pequenos cub�culos com portas de ferro – mantinham os mais agitados contidos ou isolados por puni��o". Eles "recebiam alimenta��o pela fresta da porta e utilizavam um buraco no ch�o como sanit�rio".

Bispo deixou um acervo de mais de mil objetos, entre indument�rias, estandartes, bordados, vitrines, fich�rios, m�veis, esculturas, miniaturas e outras pe�as
Arturo S�nchez, Cortesia da AS/COABispo acabou transformando um conjunto de celas no Pavilh�o 10 em ateli�. "Forte e sisudo, o ex-boxeador tornou-se um 'xerife', posi��o que lhe assegurou privil�gios e permitiu a recusa de eletrochoques e medica��es", descreve o museu. "Nunca se interessou em participar dos ateli�s de arteterapia, mas estava sempre produzindo objetos num processo criativo incessante e solit�rio."
Tie Jojima ressalta a capacidade de Bispo de "resistir e sobreviver �s for�as que o reprimiam" e de encontrar formas de "subverter o sistema hospitalar que deveria control�-lo". "Ele transformou o espa�o em que vivia em um lugar onde criava seu trabalho e, eventualmente, tinha as chaves e controlava quem entrava e sa�a. Tamb�m trocava favores com funcion�rios para conseguir materiais", destaca.
Bispo trabalhava dia e noite, e s� concedia acesso ao local a quem respondesse qual era a cor de sua aura. "A cria��o obsessiva de trabalhos t�xteis e o ac�mulo de objetos o levaram do caos � ordem e o ajudaram a sobreviver �s duras condi��es de sua vida", diz � BBC News Brasil o co-curador Javier T�llez.
H� tra�os da Col�nia por toda a sua obra, como nas linhas azuis extra�das dos uniformes e utilizadas nos bordados, nas representa��es de pr�dios e nas listas de nomes de pacientes, psiquiatras e funcion�rios.
"Era um lugar extremamente dif�cil para os pacientes, mas forneceu a Bispo tempo e materiais para desenvolver sua obra, o que ele n�o teria conseguido em outro lugar, considerando sua condi��o social", observa T�llez.

Os Estandartes, feitos de len��is, trazem nomes de pessoas que conheceu, eventos mundiais, embaixadas de diferentes pa�ses e navios de guerra entre outros temas
Arturo S�nchez, Cortesia da AS/COADescoberta e reconhecimento
Em 1980, Bispo e seus trabalhos apareceram em uma reportagem de TV que mostrava a Col�nia Juliano Moreira e denunciava a precariedade em que viviam pacientes psiqui�tricos no Brasil. Dois anos depois, ele foi tema do curta-metragem "Prisioneiro da Passagem", do fot�grafo e psicanalista Hugo Denizart.
Tamb�m em 1982, estandartes produzidos por Bispo foram inclu�dos na mostra coletiva "� margem da vida", no Museu de Arte Moderna do Rio, na primeira vez que sua obra foi exibida fora da Col�nia. Nos anos seguintes, Bispo foi tema de outras reportagens, mas somente ap�s a sua morte, em 1989, ele ganhou a primeira exposi��o individual, intitulada "Registros de minha passagem pela Terra".
Suas obras continuaram a chamar a aten��o dos cr�ticos e do p�blico e circularam em mostras em diversas capitais brasileiras. Em 1991, foi realizada sua primeira exposi��o internacional, em Estocolmo, na Su�cia, com curadoria de Frederico Morais, que organizou v�rias das mostras dedicadas ao artista.
A arte de Bispo continuou ganhando notoriedade, representando o Brasil na Bienal de Veneza em 1995, e sendo exposta em diversas cidades e pa�ses nos anos seguintes. Sua vida e obra inspiraram filmes, livros, teses, pe�as de teatro, espet�culos de dan�a e at� enredo de escolas de samba, e seu acervo foi tombado pelo Instituto do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico Nacional (Iphan).
A mostra na Americas Society, primeira exposi��o solo nos Estados Unidos e realizada em colabora��o com o Museu Bispo do Rosario, re�ne suas obras mais ic�nicas, com destaque para o "Manto da Apresenta��o", considerado sua obra-prima, que ele planejava vestir no Dia do Ju�zo Final.
"A parte externa (do manto) traz uma sele��o de palavras, formas e objetos pertencentes ao seu universo visual. Na parte interna, bordou nomes de mulheres que conheceu e escolheu para acompanh�-lo no Dia do Ju�zo Final", diz Jojima.
Muitos dos trabalhos em exposi��o s�o reconstru��o de objetos do cotidiano, com materiais simples que ele conseguia obter na Col�nia. Os bordados t�m destaque, assim como os temas que remetem � sua biografia, como os navios.

Na d�cada de 1980, no fim da vida, Bispo e suas obras come�aram a chamar a aten��o da m�dia e dos cr�ticos de arte. A foto mostra o artista em 1982
Hugo Denizart, Cortesia da AS/COAJojima cita, entre os outros pontos altos da mostra, os Estandartes, feitos de len��is que Bispo costurava, com nomes de pessoas que conheceu, eventos mundiais, embaixadas de diferentes pa�ses, navios de guerra e suas experi�ncias de vida no Rio de Janeiro, entre outros temas. "Funcionam como uma enciclop�dia visual e incluem refer�ncias autobiogr�ficas", diz a co-curadora.
A vida e a obra de Bispo geram debates sobre os limites entre loucura e genialidade e sobre quest�es de categoriza��o. "Desde a d�cada de 1980, quando se tornou conhecido no Brasil e depois internacionalmente, curadores e historiadores debatem se sua obra pode ser considerada 'arte'", dizem os respons�veis pela exposi��o.
"Quando chamou a aten��o de institui��es de arte e curadores, muitos acharam que n�o condizia com nada do que j� havia sido visto na hist�ria da arte, embora ressoasse com estrat�gias e experimentos de artistas do p�s-guerra e contempor�neos, que desafiaram fronteiras disciplinares e abra�aram objetos do cotidiano com o objetivo de fundir arte e vida", diz o cat�logo da mostra em Nova York.
Javier T�llez ressalta que, apesar das semelhan�as com outros artistas modernos e contempor�neos pelo uso de objetos, h� "diferen�as radicais em termos de intencionalidade" entre a obra de Bispo e pr�ticas art�sticas de vanguarda e neovanguarda.
"A obsess�o de Bispo do Rosario por colecionar e classificar as coisas � uma necessidade interna que corresponde a uma vis�o m�stica, e n�o a uma estrat�gia est�tica conceitual", salienta o co-curador.
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