Obras expostas no Museu Inim� de Paula expressam o encanto e a preocupa��o de Monica Sartori com a natureza
Monica Sartori/instagram
''Monica Sartori aborda a natureza para falar de nossa humanidade. Ao sagrar o mundo natural, imagina que possamos olh�-lo de outro modo, respeitando suas condi��es, os limites que define para nossa vida''
RONALD POLITO*
O Museu Inim� de Paula apresenta a exposi��o “Homenagem ao cerrado/ Campos rupestres”, da artista pl�stica Monica Sartori. Trata-se de uma excelente mostra de uma artista que atingiu a plena maturidade em suas cria��es. Essencialmente uma desenhista, mas n�o apenas, Monica vem h� d�cadas desenvolvendo sua pesquisa pl�stica em que a linha ocupa o prosc�nio. Desenho, como sabemos, � “registro muito pr�ximo do processo mental, da ideia que est� nascendo”, “� o desenho que pare o mundo” (Roberto Pontual).
Na arte brasileira, o desenho, para Tadeu Chiarelli, sempre ocupou lugar de destaque, da Col�nia � arte atual, influenciando a pintura, a escultura e outros campos de cria��o. Nas �ltimas d�cadas, no final dos anos 1960 e principalmente nos anos 1970, o pa�s viu se formar uma constela��o de bons desenhistas, muitos de Minas Gerais.
Monica � herdeira desse movimento. Surgindo com seus primeiros trabalhos nos anos 1980, vem desenvolvendo obra de grande coer�ncia pl�stica, n�o apenas no desenho, como tamb�m na gravura e na pintura. Se havia alguma figura��o humana nos anos iniciais, da� em diante ela se centrou em captar paisagens, a natureza, com destaque para as montanhas de Minas, tema t�o frequentado, mas renovado por seu trabalho ao desenvolv�-lo como sugest�o, insinua��o, quando o relevo mineiro ressurge com grande sensualidade e despojamento.
''No final dos anos 1960 e principalmente nos anos 1970, o pa�s viu se formar uma constela��o de bons desenhistas, muitos de Minas Gerais. Monica � herdeira desse movimento. Surgindo com seus primeiros trabalhos nos anos 1980, vem desenvolvendo obra de grande coer�ncia pl�stica, n�o apenas no desenho, como tamb�m na gravura e na pintura''
No elenco de suas prefer�ncias est�ticas, ela indica Klee, Mondrian, Kandinsky e Duchamp como decisivos em sua forma��o. No cat�logo da exposi��o no Museu Inim� de Paula, h�, no entanto, uma ep�grafe de Cy Twombly no excelente texto de apresenta��o, de autoria de Luiz Flavio, intitulado “Monica Sartori: Campos cerrados e abertos”, e a refer�ncia me parece certeira.
Basta olhar seus desenhos da d�cada de 1980 para notarmos o quanto eles guardam de garatuja, de arcaico (anterior � escrita), de rabisco, de rasura, de picha��o, de gesto infantil, enfim, mais infantil ainda que os de Mir�, para vermos essa filia��o a Twombly como fundamental. A capacidade de desenhar como uma crian�a � algo bastante dif�cil porque implica “desaprender”, abandonar o automatismo da m�o.
Pratos aludem ao cerrado e � terra, que nos cerca e nos alimenta
Monica Sartori/Instagram
Outro modo de olhar para seus trabalhos seria pensarmos o quanto eles s�o devedores da arte oriental do nanquim com sua radical economia de meios, em que se inclui a chamada “teoria das pinceladas incompletas”. Dado um tra�o, o olho organiza o que falta e monta a figura.
No entanto, h� que se notar como esse trabalho vem se desenvolvendo mais recentemente, quando o desenho se aproxima da pintura, o desenho se faz pintura na mesma medida em que a pintura se faz desenho. Outro aspecto decisivo � a ambiguidade dos trabalhos: eles ora parecem abstratos, ora parecem figurativos. Esses dois pontos, abordados por Luiz Flavio em seu texto, s�o fundamentais para compreendermos as implica��es das obras atuais.
Em um mundo mais que saturado de figuras e de texturas ou intensidades, nada mais estrat�gico do que se situar entre esses registros, o que parece ser o melhor caminho da arte atual que ainda lida como o suporte do papel ou da tela. E a secular discuss�o sobre a preced�ncia do desenho ou da pintura � completamente reconfigurada ao se borrarem os limites entre os campos, o que seu trabalho consegue atingir com bastante originalidade.
Al�m desses aspectos fundamentais, � preciso reconhecer ainda na intencionalidade dos trabalhos da exposi��o uma postura pol�tica e ecol�gica t�o urgente hoje, diante da enorme destrui��o a que est�o sujeitos esses espa�os naturais.
A exposi��o se subdivide em tr�s campos, e penso que � poss�vel l�-los a partir da ideia de como se articulam, resultando em um todo harm�nico e com diversas significa��es. Dos depoimentos da artista, colhemos sua intimidade desde a inf�ncia com a regi�o dos cerrados e com os campos rupestres, o que marcou especialmente suas prefer�ncias em termos de paisagem. � o que se torna vis�vel agora.
Dos cerrados ela privilegiar� as grandes extens�es, os horizontes sem fim, a vegeta��o rarefeita, os movimentos verticais que ora ascendem, ora descem pela superf�cie, revelando o que h� de tr�gico, grave e mesmo soturno nessa regi�o.
Em alguns trabalhos, como “Luta pela vida”, a clara divis�o em dois campos, com predom�nio da linguagem da pintura no campo superior e do desenho no campo inferior, orquestra duas atmosferas poss�veis do cerrado, as cores terrosas e rudes em contraste com a leveza das linhas e da atmosfera azul do mar de suaves montanhas a se perder no horizonte. Duas facetas a conviver no mesmo espa�o natural.
Por vezes esses limites se diluem, como em “Gr�fico ecol�gico”, n�o apenas pela mistura de terras e azuis, como pela dilui��o de uma figura��o precisa, o que a palavra “gr�fico” do t�tulo auxilia a esclarecer, e a feliz circunst�ncia de estarmos diante de uma pintura que � um desenho e vice-versa, ou de uma paisagem que � simultaneamente uma abstra��o.
Cerrado, com suas curvas, linhas e cores em objetos do dia a dia
Monica Sartori/Instagram
� importante notar que todos os trabalhos possuem t�tulos que conferem um norte para sua leitura. Em paisagens desprovidas de qualquer presen�a humana, no entanto, � a palavra que pode humaniz�-las. Nesse sentido, h� duas obras curiosas na mostra: uma que se chama “Escrita”, talvez a mais severa do conjunto, em azul-escuro e quase negro em seus dois campos de cor, o mais escuro a sugerir a ponta de uma pena de nanquim. Pintar � escrever com linhas e cores, � revelar as palavras que est�o por tr�s das imagens.
Na outra, intitulada “Poema CS”, ela transcreve na parte superior do quadro um poema de seu bisav�, Joaquim C�ndido da Costa Sena, uma ode � natureza. A composi��o � como que, se isso fosse poss�vel, um an�logo de um ex-voto feito em nome da natureza, agradecendo pela manuten��o do mundo dos cerrados. A palavra, assim, ocupa lugar de destaque para a particulariza��o do que se busca apresentar.
O segundo agrupamento da exposi��o, “Campos rupestres”, desloca totalmente nosso olhar. N�o as extens�es imensas, as paisagens sem fins, enormes, grandiosas, mas o mundo natural visto de perto, ao alcance da m�o. Se alguma vegeta��o e flores j� se anunciavam nas paisagens do cerrado, como no trabalho “Homenagem � vegeta��o – Cerrado/ CR”, nesse segundo grupo as flores ocupam o prosc�nio, ou melhor, s�o a �nica cena destacada do fundo branco, infinito.
Detalhe da s�rie com flores, que tem forte tend�ncia minimalista
Monica Sartori/Instagram
O texto sens�vel de Cristina �vila, intitulado “De como amar as flores do cerrado”, que acompanha o cat�logo, esmi��a a grande diversidade floral dos campos rupestres, atento � dimens�o l�rica, po�tica dos nomes das flores.
� completa a mudan�a de escala. O que importa agora � ver o que h� de delicado e vivo em paisagens aparentemente in�spitas. A t�cnica tamb�m � outra. Se as flores s�o claramente desenhos, na exposi��o eles ressurgem como gravuras, modo inclusive de a artista dar continuidade � grava��o, campo que j� a atraiu no passado.
A s�rie de flores tem forte tend�ncia minimalista: apenas alguns tra�os de caules esguios e longos, ao sabor do vento, uma flor ou duas em destaque, ou pequenos conjuntos de min�sculas flores na vegeta��o baixa, o que � um modo de romper com hierarquias da representa��o floral. Aqui o destaque � para o menor, o simples, o que pode passar despercebido, mas que merece ser olhado.
O terceiro conjunto exposto re�ne lou�as, porcelanas pintadas ou adesivadas em tamanhos variados. Nova e sugestiva inflex�o ocorre. Primeiro, pela utiliza��o de outro suporte, mas principalmente, segundo penso, por habitar esses territ�rios com a presen�a humana, no ato de tornear com a terra as vasilhas para nossa mais estrutural necessidade: a alimenta��o.
Misto de homenagem e humildade diante da imensid�o da natureza, essas vasilhas feitas com a terra do mundo devolvem a ele suas pr�prias imagens; � o cerrado, com suas curvas, linhas e cores, que se v� nos potes, copos, pratos, bules, jarras. Gir�-los � ir descortinando a infinitude da paisagem e do horizonte. Eles s�o o momento em que comungamos com o que nos cerca e nos alimenta.
Faz parte ainda da exposi��o o que podemos chamar de sua “paisagem sonora”, a m�sica “Estrela”, especialmente composta e executada ao piano por Henrique Cabral.
Monica Sartori aborda a natureza para falar de nossa humanidade. Ao sagrar o mundo natural, imagina que possamos olh�-lo de outro modo, respeitando suas condi��es, os limites que define para nossa vida, na tentativa de criar um novo pacto para a sobreviv�ncia de todos.
“HOMENAGEM AO CERRADO/CAMPOS RUPESTRES”
Exposi��o de M�nica Sartori. At� 11 de julho, no Museu Inim� de Paula (Rua da Bahia, 1.021, Centro). Funciona �s tercas, quartas, sextas e s�bados, das 10h �s 18h30; quintas, das 12h �s 20h30; e domingos, das 10h �s 16h30. Informa��es: (31) 3213-4320.
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