Atores Francisco Hyjnõ Kraho, Debora Sodré, Luzia Cruwakwyj Kraho e Henrique Ihjac Kraho sorriem para os fotógrafos no Festival de Cannes

Atores Francisco Hyjn� Krah�, Debora Sodr�, Luzia Cruwakwyj Krah� e Henrique Ihjac Krah� chegam ao Pal�cio dos Festivais de Cannes

Valerie Hache/AFP

 
Empunhando o marac�, Francisco Hyjn� Krah� preencheu a sala Debussy, no Pal�cio dos Festivais de Cannes, com o som do instrumento tradicional de seu povo. No palco, foi sint�tico ao se dirigir � plateia: “Voc�s ver�o o que est� acontecendo no cerrado, ver�o essas imagens”. Minutos depois, em close, o mesmo marac� surgiu na telona, na abertura de “Crowr�”, ou “A flor do buriti”.
 
O filme dirigido por Ren�e Nader Messora e Jo�o Salaviza est� em competi��o na Um Certo Olhar, mostra que deu � dupla o pr�mio do j�ri em 2018 por “Chuva � cantoria na aldeia dos mortos”, tamb�m feito com ind�genas krah�.
 
Se o filme anterior via os riscos de destrui��o e apagamento das tradi��es ind�genas na aurora do bolsonarismo, “A flor do buriti” encara as consequ�ncias dessa era, conciliando o registro de uma aldeia em Tocantins e discursos pol�ticos diretos, com S�nia Guajajara, hoje ministra dos Povos Ind�genas, culminando nos protestos de diversos povos em Bras�lia, em abril de 2022.
 
Ao explorar as fronteiras entre document�rio e encena��o, o longa avalia a linha que separa os protagonistas dos “cupe”, os n�o ind�genas. N�o � toa, o personagem Hyjn� guarda a porteira da estrada que liga a cidade ao seu territ�rio. Tenta ser diplom�tico, mas se imp�e ao flagrar contrabandistas que escondem araras na mochila.

Fronteira espiritual

A conex�o com a natureza � fundamental. P�ssaros e um simp�tico filhote de tamandu� s�o t�o relevantes para a comunidade como as plantas, tanto usadas em rituais quanto servem de ponte para a terceira fronteira, a espiritual. � para um buriti que Hyjn� pedir� conselhos e evocar� seus ancestrais.
 
Jot�t, sua jovem sobrinha, tamb�m luta nesse plano espiritual – tem sonhos estranhos que, segundo a tradi��o, afastam o esp�rito de seu corpo e sugerem sua voca��o como xam�. Mais do que desafio psicanal�tico (e a simbologia dos sonhos � tema frequente nos di�logos), esse desencarnar a aproxima de seus ancestrais.
 
Como a aldeia dos mortos do t�tulo anterior, as vis�es de Jot�t se confundem com flashbacks que mencionam a Guarda Rural Ind�gena, sangrenta mil�cia criada da ditadura militar, a inefici�ncia da Funai e o massacre nos anos 1940, comandado por um fazendeiro da regi�o. Uma das poucas sobreviventes foi Crowr�, av� de Hyjn�, e que tem o mesmo nome de sua esposa.
 
A reencena��o dessa trag�dia encanta pelo apuro est�tico e hist�rico, recorrendo � densa nuvem de fuma�a que envolve os atores e transforma em met�fora a persist�ncia desses ancestrais. “A hist�ria n�o acaba”, diz o narrador, ainda que bois (e homens) sigam pisando e destruindo essas terras.
 
Messora e Salaviza acertam ao retratar as fragilidades e medos desse povo. Logo no come�o do filme, uma crian�a tenta espantar um boi da aldeia, mas teme que o animal se revolte se for atingido no olho. Uma outra jovem acha que isso vai assust�-lo de vez. A flecha fica em suspens�o, apontada diretamente para a c�mera.
 
Duas solu��es caminham juntas: Patpro, irm� de Hyjn�, se encanta pela milit�ncia institucional, enquanto sua filha se afasta cada vez mais do mundo “cupe”. Mesmo com incertezas e perigos, o filme termina com uma nota esperan�osa, com a f� de que essas hist�rias sejam imortalizadas algum dia.
 
Ator Viggo Mortensen segura arma e tem roupas de cowboy no filme Eureka

Viggo Mortensen protagoniza 'Eureka', filme de Lisandro Alonso cuja trama envolve ind�genas dos EUA e do Brasil

Reprodu��o
 

Ind�genas s�o tema de longa argentino

Curiosamente, a tem�tica ind�gena brasileira tamb�m apareceu no festival em “Eureka”, primeiro filme do argentino Lisandro Alonso desde “Jauja”, de 2014.

 

A hist�ria, conduzida com serenidade e longos sil�ncios por duas horas e meia, vai de um faroeste com Viggo Mortensen em preto e branco, passando pela hist�ria de uma policial do povo oglala lakota, um dos locais mais pobres nos Estados Unidos dos dias atuais, at� culminar numa viagem no tempo para o Brasil do final dos anos 1970, sob o governo Geisel, seguindo o ind�gena de uma seita em que todos se re�nem para narrar seus sonhos.
 
Vago e bastante aberto a interpreta��es, o filme exibido fora de competi��o d� conta de costurar quest�es como a depress�o e o suic�dio entre ind�genas, o animismo, a transforma��o de humanos em animais m�gicos, o garimpo ilegal e as possibilidades infinitas do cinema – o que sempre valorizou trabalhos do diretor.
 
“O tempo � uma ilus�o”, afirma um dos personagens. Ent�o, talvez n�o seja proibido dormir durante o filme, como fizeram alguns espectadores na sess�o com a presen�a do cineasta e do elenco.
 
Seja embuste ou g�nio, Alonso sempre apresenta um enigma que vai al�m de n�s mesmos. E a surpresa de encontrar o Brasil fora de um filme brasileiro basta para lembrar que nossas hist�rias n�o est�o isoladas do mundo.