Bi�grafo de Elizabeth Bishop diz que apoio da poeta ao golpe foi ef�mero
Thomas Travisano, que lan�a no pa�s "Elizabeth Bishop: Uma biografia", diz esperar que brasileiros compreendam melhor gesto da norte-americana ao ler seu livro
Elizabeth Bishop viveu no Brasil de 1951 a 1970; bi�grafo espera que seu livro ajude o leitor brasileiro a compreender epis�dio em que autora expressou simpatia pelo golpe militar, em 1964
Darcy Trigo/O Cruzeiro/Arquivo EM
A cena liter�ria brasileira quase veio abaixo em novembro de 2019. A Festa Liter�ria de Paraty havia anunciado que a homenageada da edi��o de 2020 seria a poeta norte-americana Elizabeth Bishop (1911-1979). A controv�rsia era pautada por dois pontos: Bishop n�o � brasileira (seria a primeira vez que a Flip homenagearia um autor estrangeiro) e expressou simpatia pelo golpe que deu in�cio � ditadura militar (1964-1985).
A pol�mica se apoiou em trechos de cartas que Bishop enviou ao escritor Robert Lowell (1917-1977). "Foi uma revolu��o r�pida e bonita... tudo terminado em menos de 48 horas", escreveu ela, em 4 de abril de 1964, tr�s dias ap�s o golpe que destituiu o presidente Jo�o Goulart. H� outras missivas do g�nero, e as redes sociais, naquele in�cio da gest�o bolsonarista, fervilharam � �poca.
No mesmo per�odo, o acad�mico norte-americano Thomas Travisano levava a cabo seu trabalho mais ambicioso em torno da poeta: a biografia "Love unknown: The life and worlds of Elizabeth Bishop", publicada nos Estados Unidos no final de 2019. Aos 71 anos, Travisano tem dedicado a maior parte de sua carreira a ela – �, inclusive, fundador da Elizabeth Bishop Society. � autor ou organizador de outros quatro t�tulos em torno da poeta, incluindo o que re�ne sua intensa correspond�ncia com Lowell.
Somente agora, tr�s anos e meio depois da controv�rsia, a obra ganha edi��o nacional, "Elizabeth Bishop: Uma biografia" (Companhia das Letras). Travisano espera que n�o seja tarde para que os leitores tenham nova perspectiva sobre a obra da poeta que amou o Brasil e viveu intensamente a realidade do pa�s. A Flip, vale dizer, cancelou a homenagem em agosto de 2020, quando buscava se reinventar em meio � pandemia.
Vencedora do Pr�mio Pulitzer em 1956 (por "North and South"), Bishop chegou ao Brasil em 1951. Ficaria apenas duas semanas, mas se apaixonou pelo pa�s e pela arquiteta Lota de Macedo Soares (1910-1967), que idealizou o Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro. Viveu no Brasil at� 1970 – em Petr�polis, no Rio e em Ouro Preto, na Casa Mariana, um im�vel colonial que recebeu o nome de sua mentora, a poeta Marianne Moore (1887-1972).
Solit�ria, depressiva, dependente de �lcool. Muito das hist�rias contadas a respeito de Bishop chamam a aten��o para esses aspectos. Travisano n�o diminui tais quest�es, mas apresenta outra perspectiva.
O autor d� bastante destaque para os anos dif�ceis iniciais. Bishop perdeu o pai e a m�e na inf�ncia. William Thomas Bishop morreu quando ela era um beb�; Gertrude Bulmer teve um colapso mental quando a filha tinha 5 anos, foi internada e nunca mais tornou a v�-la. A �rf� sem irm�os foi criada por parentes pr�ximos – o bi�grafo levanta a hip�tese de ela ter sido abusada por um tio.
A despeito dos traumas e da sa�de fr�gil, o que emerge da biografia � uma personagem que teve uma vida completa, com seus altos e baixos (muitos, vale dizer). "Alguns livros a apresentaram como v�tima. Bishop era uma pessoa aventureira, que correu v�rios riscos e viveu exatamente como quis", afirma Travisano em entrevista ao Estado de Minas. Leia a seguir.
Qual foi a impress�o que o senhor teve no primeiro e �nico encontro com Bishop?
Ela fez uma leitura na Universidade da Virginia (onde Travisano fez seu mestrado e doutorado). Meus professores programaram um encontro meu e de outras pessoas ap�s a leitura. Conversamos por cerca de duas horas. Ela foi muito engra�ada - e esta foi a minha impress�o mais forte.
Tamb�m a de que queria deixar claro quais eram suas opini�es. De certa maneira, a poesia dela era diferente da persona. Ela era gay e isto, na �poca, n�o era p�blico. Poder�amos dizer que era um segredo aberto: as pessoas sabiam, mas n�o falavam sobre. Ela sabia que eu estava fazendo uma tese sobre ela.
E senti que ela sentiu que eu sabia coisas sobre ela. Mas ela n�o sabia o que eu sabia. Mesmo engra�ada, foi tamb�m muito cautelosa. O humor pode ser visto como uma forma de prote��o. Mais tarde, me tornei amigo de v�rios de seus amigos, tanto em Harvard quanto no Brasil e em Key West, onde ela viveu.
Tamb�m, durante um per�odo, fui um dos propriet�rios da casa em que ela cresceu na Nova Esc�cia (Canad�). Todos estes lugares e conex�es fizeram com que ela se tornasse pessoal para mim.
Chegaram a trocar cartas?
Sim, e tenho uma hist�ria sobre isto. As cartas dela para Marianne Moore estavam dispon�veis em uma biblioteca da Filad�lfia (Rosenbach Museum & Library). Escrevi a ela dizendo que iria para a Filad�lfia e leria as cartas. Cheguei numa quarta-feira, li algumas cartas e, como n�o deixavam fazer c�pias, voc� tinha que escrever � m�o.
Na sexta-feira, antes do almo�o, o curador me disse que havia recebido um telefonema da Elizabeth Bishop restringindo o acesso. Eu estava interessado nas cartas iniciais que ela mandou porque foi ali que disse a Marianne Moore quais eram os princ�pios da sua poesia. Depois, escrevi a Bishop pedindo permiss�o para ter acesso a elas. Ela respondeu: 'Bem, me disseram que se eu deixasse uma pessoa, teria que dar permiss�o a todo mundo. Mesmo que eu tenha gostado de voc�, minha resposta � n�o'.
Quando o senhor finalmente teve acesso � correspond�ncia completa?
Depois que ela morreu, as restri��es acabaram. Voltei � Filad�lfia cinco ou seis anos mais tarde. Quando li todo o material, entendi que realmente tinha conseguido o mais importante na primeira vez. O que aconteceu comigo era bem caracter�stico da Bishop. Mostrou tamb�m qu�o ing�nuo eu era na �poca, ao contar a ela o que iria fazer.
Com a biografia o senhor pretendeu tirar a sombra do alcoolismo e da solid�o que marcaram relatos biogr�ficos anteriores?
Alguns dos t�tulos anteriores traziam boas informa��es, mas tendiam a apresent�-la como v�tima, uma figura passiva. O que eu via era uma pessoa aventureira, que correu v�rios riscos e viveu exatamente como quis. Isto ela at� nos contou, seja por meio de sua poesia e em uma carta que escreveu quando adolescente. Estas quest�es me convenceram de que ela realmente foi agente de sua pr�pria exist�ncia. N�o era perfeita, mas fez o que quis, mesmo tendo asma, eczema e outras condi��es cr�nicas.
O lesbianismo foi uma quest�o central na obra de Bishop. A sexualidade dela � uma chave para entender sua poesia?
N�o � a �nica, mas � uma chave importante. Estimaria que 40% dos poemas s�o, de alguma forma, sobre o amor l�sbico. Se voc� tem consci�ncia disto, n�o � preciso ser um g�nio da poesia para encontr�-los. Ela disfar�a isto evitando pronomes de g�nero e raramente usa a palavra amor. Geralmente usa amigo ou algo do g�nero.
Outra estrat�gia � usar uma s�rie de refer�ncias pessoais atrav�s do (pronome) n�s. O leitor se pergunta: 'Quem somos n�s? Por que o n�s est� sendo usado ali?' Pistas como estas nos ajudam a compreender os poemas e entender como a sexualidade � uma for�a motriz no trabalho dela.
O Brasil foi essencial para a vida pessoal de Bishop. Para a carreira liter�ria tamb�m?
Absolutamente. Em um levantamento que fiz, 24 dos 100 poemas que ela publicou em vida eram sobre o Brasil. Ou seja, um quarto. Se voc� olhar para os n�o publicados, tem ainda mais. E ela chegou ao Brasil aos 40 anos, ent�o essa contagem s� vale para o que publicou depois disto. Ela tamb�m traduziu “Minha vida de menina” (da escritora mineira Helena Morley), cuja narrativa ela relacionou com a pr�pria inf�ncia na Nova Esc�cia, tinha planos de escrever “Black beans and diamonds” (feij�es e diamantes), sobre suas viagens pelo pa�s.
Como o senhor analisa a pol�mica suscitada pela decis�o da Flip de 2020 de homenagear Bishop?
H� dois fatos aqui: Bishop n�o era brasileira e foi vista como apoiadora do Golpe de 1964. � tudo muito complicado, mas entendo o que aconteceu. Ao mesmo tempo, ela foi uma poeta muito importante, que escreveu poemas realmente importantes sobre o Brasil. E fez tamb�m tradu��es fabulosas; a de Drummond, em particular, � muito boa.
Coeditou uma antologia da poesia brasileira no s�culo 20 que, para muitos norte-americanos, serviu como uma introdu��o � produ��o po�tica do Brasil. Acho que a quest�o sobre o apoio dela ao golpe foi exagerada. Ela nunca deu uma declara��o p�blica sobre isto. Escreveu cartas a Robert Lowell em que fazia um apoio sem grande entusiasmo ao golpe por causa da Lota. Lota trabalhava no Parque do Flamengo com o (Carlos) Lacerda, que era a favor dos militares.
Ent�o Lota ficou a favor, e Bishop, por conta dela, tamb�m. Mas rapidamente ela ficou desencantada com Lacerda, disse que ele estava ficando muito pr�ximo do macarthismo por sua oposi��o ao comunismo. Na poesia, mostrou profunda simpatia pelos pobres, em especial em poemas como “O ladr�o da Babil�nia”. Ou seja, ela n�o podia ser anti-golpe diante do contexto em que vivia. Tenho consci�ncia de que o governo militar fez coisas horr�veis no Brasil, ent�o o ressentimento sobre o per�odo � compreens�vel. Mas Bishop n�o tinha consci�ncia da dire��o que as coisas iriam tomar.
O senhor acredita que a chegada de sua biografia agora ao Brasil, tr�s anos ap�s a pol�mica, possa trazer uma nova leitura sobre a rela��o de Bishop com o pa�s?
Espero que sim. Se ele tivesse sa�do no Brasil na �poca da pol�mica, poderia ter dado outra perspectiva. Espero que agora n�o seja tarde. Acho que algumas pessoas v�o ler a biografia por causa da controv�rsia. Como resultado, saber�o mais sobre Bishop. Escrevi o livro tamb�m sabendo que teria leitores brasileiros.
N�o � que ela tenha amado tudo no pa�s, ningu�m espera isso. Ela tamb�m criticou demais os EUA. As pessoas devem entender qu�o complicada era a situa��o dela. Por outro lado, ela se comprometeu com o pa�s, era fascinada pela m�sica, comida, arte, natureza. Uma coisa que as pessoas diminuem � o tempo dela no pa�s.
Falam que foram 15 anos, mas foram 23. Ela chegou no Brasil em 1951 e sua �ltima visita foi em 1974. Em 1970, ela come�ou a dar aulas em Harvard, mas manteve a casa em Ouro Preto at� 1974. Nas f�rias, sempre ia para o Brasil. Ou seja, foi um tempo muito longo no pa�s.
capa do livro Elizabeth Bishop: Uma biografia traz foto do rosto da poeta Elizabeth Bishop
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