O ator Carlos Francisco no Centro de BH

Nascido e criado em Santa Tereza, Carlos Francisco voltou a morar em Belo Horizonte em 2013, depois de um longo tempo vivendo e trabalhando em S�o Paulo

JAIR AMARAL/EM/D.APRESS


O ator Carlos Francisco, de 61 anos, � uma pessoa disciplinada. Toda vez que entra em um set, desliga o celular. Mas sabe-se l� por qual raz�o, um dia, j� no final da filmagem de “Curtas jornadas noite adentro” (2021), de Thiago Mendon�a, se esqueceu. O telefone tocou e ele, envergonhado, atendeu. Do outro lado da linha estava Fellipe Fernandes, assistente de dire��o em “Bacurau” (2019).

De bate pronto, Fellipe perguntou se Carlos poderia ir imediatamente para o Rio Grande do Norte para participar do filme de Kleber Mendon�a Filho e Juliano Dornelles. Naquele momento n�o dava – ele estava em S�o Paulo filmando, precisava de pelo menos dois dias. Fellipe topou. Carlos voou na data combinada, sem saber o que iria encontrar. J� tinha ouvido falar de Kleber, mas sequer havia assistido a “Aquarius” (2016), at� ent�o o mais comentado filme do cineasta pernambucano.

S� chegando l� – no povoado de Barra, distante 300 km de Natal – o ator mineiro teve consci�ncia da “dimens�o do filme”. Ficou sabendo por Kleber que havia sido escolhido por meio de um teste para outro filme e tamb�m por uma cena do curta “Nada” (2017), de Gabriel Martins. “Bacurau” foi um divisor de �guas para muitos dos profissionais envolvidos – Carlos Francisco inclusive.



A cena que seu personagem, Damiano, e sua companheira, Deyse (Ingrid Trigueiro), protagonizam no longa, � cat�rtica, “um momento de grito entalado na garganta”, conforme define o ator. A import�ncia do filme, aliada � for�a desta sequ�ncia, colocaram, com o perd�o do chav�o, Carlos Francisco no mapa do cinema. 

Indica��o 

At� ent�o, o ator j� havia feito outras produ��es, curtas e longas, mas o impacto de “Bacurau” jogou luz em sua carreira. E outro filme, este com uma participa��o bem maior, sedimentou sua trajet�ria: “Marte Um” (2022), de Gabriel Martins, em que interpretou um dos quatro protagonistas, o porteiro Wellington, cruzeirense fan�tico e pai da fam�lia Martins – pelo papel o ator foi indicado ao Grande Pr�mio do Cinema Brasileiro, que ser� realizado em 23 de agosto, no Rio de Janeiro.



As luzes, ali�s, continuam acesas para ele. H� duas semanas Carlos estava em Cataguases, Zona da Mata mineira, preparando-se para ir para o set de “Ana, en passant”, filme de Fernanda Salgado, quando veio a not�cia: ele tinha vencido o pr�mio de atua��o em produ��es internacionais no Tribeca Film Festival (festival nova-iorquino criado h� duas d�cadas por Robert De Niro).

“Voc�s est�o de brincadeira, me gozando”, foi a primeira rea��o de Carlos ao saber da not�cia. O pr�mio foi pelo filme “Estranho caminho”, de Guto Parente (produ��o que levou tamb�m os trof�us de melhor narrativa, roteiro e fotografia no Tribeca). Na hist�ria rodada em Fortaleza, Carlos interpreta Geraldo, pai do protagonista, David (Lucas Limeira).

Pai e filho n�o se falam h� uma d�cada. David mudou-se para Portugal, mas retornou para o Cear� para participar de um festival de cinema. S� que o in�cio da pandemia pegou a todos. O festival � interrompido, a pens�o onde o jovem estava hospedado � fechada e o dinheiro come�a a diminuir. Sem ter a quem recorrer, ele vai atr�s do pai – e a rela��o entre os dois � o cerne do drama. “Estranho caminho” come�ou s� agora a ser exibido em festivais, ent�o deve demorar um pouco para chegar ao circuito comercial. 

Mas Carlos poder� ser visto em outra produ��o em breve. Com pr�-estreia nesta quarta (5/7), �s 20h30, no UNA Cine Belas Artes – antecipando a estreia oficial, no dia seguinte – “Can��o ao longe”, novo longa-metragem de Clarissa Campolina, traz Carlos como o motorista Miguel. A participa��o na hist�ria que acompanha o rito de passagem para a vida adulta de uma jovem arquiteta acabou lhe valendo o pr�mio de melhor ator no Festival de Bras�lia de 2022.

Lan�amentos 

Carlos vai acompanhar o lan�amento do longa-metragem mineiro a dist�ncia. Ficar� at� o fim de julho em S�o Paulo, rodando “As florestas da noite”, de Priscyla Bettim e Renato Coelho, no qual tamb�m far� a prepara��o de elenco. 



Al�m destes, tem v�rios outros filmes j� rodados e aguardando lan�amento: “Enterre seus mortos”, de Marco Dutra; “Idade da pedra”, de Renan Rovida; “Antes do fim”, de Thiago Mendon�a”; “Fera na selva”, tamb�m de Clarissa Campolina, al�m dos curtas “Rinha”, de Rita Pestana, e “Sol”, do j� citado Mendon�a (ambos em finaliza��o).

� muita coisa para um ator cuja carreira no cinema s� engrenou quando ele retornou para Belo Horizonte, h� uma d�cada. E justi�a seja feita, ele esteve no elenco de produ��es mineiras anteriores a “Bacurau”, como “Ar�bia” (2017), de Affonso Uchoa e Jo�o Dumans; “No cora��o do mundo” (2019), de Gabriel e Maurilio Martins, e “Rua Guaicurus” (2019), de Jo�o Borges.

Nascido e criado em Santa Tereza, na Rua Salinas, bem ao lado da Pra�a Duque de Caxias, Carlos come�ou a carreira fazendo teatro amador nos anos 1980. Em 1991, mudou-se para S�o Paulo. Passou muitos anos pagando as contas como vendedor de caminh�es. O teatro esteve sempre no foco, mas a carreira s� come�ou a se desenvolver em meados dos anos 1990, quando ele participou de cursos de forma��o de atores na Oficina Cultural Oswald de Andrade.

Um marco desse per�odo foi a participa��o no espet�culo “O assassinato do an�o do caralho grande”, texto in�dito de Pl�nio Marcos que foi encenado com 35 atores. Esta experi�ncia est� na g�nese do grupo Folias, criado em 1997 – Carlos integra o n�cleo fundador. Dois anos mais tarde, quando o Folias conseguiu um galp�o para ser sua sede, ele passou tamb�m a gerenciar o espa�o, na ativa at� hoje, com uma s�rie de a��es.

“Eu tinha vontade de fazer cinema, mas n�o tinha a menor condi��o, por falta de tempo. Eu vivia em fun��o da companhia de teatro”, conta ele, que chegou a fazer pontas em algumas produ��es da �poca – “N�o conseguia nem uma di�ria inteira”. Pensava em voltar para BH para ficar pr�ximo da fam�lia e come�ou a se desligar do repert�rio do grupo. Tamb�m passou a fazer v�rios curtas – os filmes do diretor paulista Thiago Mendon�a foram sua porta de entrada para o cinema.



Em 2013, com a mulher, que � pedagoga, e o filho, hoje arquiteto, arrumou as malas e retornou para casa materna. “Sou de Santa Tereza desde que aqui era mato”, brinca Carlos. E foi tamb�m aqui que sua carreira virou cinema. “Os pr�prios trabalhos � que, de alguma forma, foram me levando para os pr�ximos”, conta ele.

Mesmo que tenha retornado para casa quando a produ��o audiovisual mineira tivesse dado in�cio a sua efervesc�ncia, Carlos admite que aqui chegou sem muita perspectiva. Era um pensamento quase como o de Wellington, seu personagem em “Marte Um”, que, em uma das cenas mais tocantes do filme, diz para o filho Deivinho: “A gente d� um jeito”.

“Quando vim para Belo Horizonte, eu queria ficar perto da minha m�e. Sobre como ia ser a minha vida, ia pensar depois. Mas confiava em que ia dar certo.” Carlos n�o tinha projeto algum, fosse teatro ou cinema. 

“Quando cheguei, recebi um recado do Chico Pel�cio (do Grupo Galp�o) para que fosse tomar um caf� com ele. Ficamos algumas horas conversando, ele me disse que n�o tinha nada para me oferecer concretamente, mas que eu pensasse no que queria, fizesse uma proposta e que ele tentaria viabilizar. Acabou que n�o fiz a proposta para o grupo, n�o voltei, mas aquele momento plantou algo na minha alma. (A conversa) Me tirou medos, rancores. Vi que n�o estava s�, desamparado”, conta.