Caetano Galindo fala sobre a l�ngua portuguesa no ciclo Divinas Conversas
Professor, escritor e tradutor, ele lan�ou "Latim em p�: um passeio pela forma��o do nosso portugu�s", que condensa seu curso sobre lingu�stica hist�rica
O curitibano Caetano Galindo leciona lingu�stica hist�rica na Universidade Federal do Paran� e deu in�cio ao projeto do livro a partir de uma parceria com o diretor teatral Felipe Hirsch
Crist�v�o Tezza/Divulga��o
Professor de lingu�stica hist�rica na Universidade Federal do Paran� desde 1998, o escritor e tradutor curitibano Caetano Galindo participa, nesta quarta-feira (13/9), do projeto Divinas Conversas, ciclo de encontros realizado pela Funda��o Torino, em Nova Lima. Ele vem a Minas Gerais para lan�ar o livro “Latim em p�: um passeio pela forma��o do nosso portugu�s” (Companhia das Letras).
Com um curr�culo que registra mais de 50 livros traduzidos do italiano, do romeno, do dinamarqu�s e, principalmente, do ingl�s, Galindo se destacou por verter para o portugu�s e facilitar o entendimento de grandes obras da literatura mundial, como “Ulisses”, de James Joyce. Ele estuda a obra do autor irland�s h� mais de 20 anos. Com suas tradu��es da obra e ensaios a respeito de Joyce, Galindo j� recebeu os pr�mios Jabuti, APCA e da Academia Brasileira de Letras.
Na entrevista a seguir, Galindo fala de seu fasc�nio pelo portugu�s que se fala no Brasil, do car�ter mutante da l�ngua e de suas transforma��es, desde o latim que se falava em Roma, passando por Portugal e chegando ao est�gio de miscigena��o que � hoje, no seu entendimento, um elemento unificador do pa�s.
O que mais te fascina em rela��o � l�ngua que se fala no Brasil?
O portugu�s do Brasil tem qualidades e singularidades que justificam o interesse, acima de tudo porque a gente tem o desenvolvimento de uma l�ngua europeia num contexto n�o europeu. A gente tem a assimila��o de um elemento origin�rio, ind�gena, e depois a sobreposi��o de um grande elemento negro africano escravizado, que vem formar este pa�s e vem formar tamb�m essa l�ngua. Num certo sentido, o que existe de impressionante no portugu�s do Brasil � o fato de ele representar, num ambiente que parece mais estud�vel, mais contido, tudo aquilo que �, na verdade, a forma��o do Brasil, essa na��o negra, ind�gena, europeia, singular, nova, baseada na viol�ncia, baseada na imposi��o. Existe uma coisa curiosa: essa variedade brasileira do portugu�s acabou se tornando, talvez, a maior e mais clara marca de unidade e de pertencimento dos brasileiros. O Brasil tem um cen�rio multil�ngue, mas a imensa maioria dos brasileiros � falante de portugu�s, e dentre esses, uma imensa maioria � falante apenas de portugu�s.
'O que existe de impressionante no portugu�s do Brasil � o fato de ele representar, num ambiente que parece mais estud�vel, mais contido, tudo aquilo que �, na verdade, a forma��o do Brasil, essa na��o negra, ind�gena, europeia, singular, nova, baseada na viol�ncia, baseada na imposi��o'.
Caetano Galindo, professor, pesquisador e escritor
Eu, particularmente, tenho grande carinho por marcas do portugu�s brasileiro que, muitas vezes, a gente consegue ligar a essa presen�a africana e que tendem a ser vistas como desvios, como marcas de inferioridade. A gente tem uma facilidade muito grande para, em vez de "as meninas", dizer "as menina", fazendo a marca do plural s� no artigo. Segundo a norma da l�ngua portuguesa, isso � um erro, a escola n�o preconiza essa variedade, mas � uma variedade viva e ativa da l�ngua. N�o h� nada de intrinsecamente ruim nisso. No m�nimo, houve um refor�o dessa tend�ncia por um tipo espec�fico de constru��o das l�nguas faladas na �frica do Oeste, especialmente na regi�o do Congo e na regi�o de Angola. Ali h� l�nguas em que o plural se faz no come�o da palavra, e n�o no final, ent�o � de se imaginar que falantes dessas l�nguas encontrem a express�o "as menina" como algo mais l�gico do que "as meninas". Eu cresci falando "as coisa", "as pessoa", "os cara vieram aqui", e isso � algo que me enche o cora��o de um calorzinho agrad�vel, quando eu chego em casa, saio da minha condi��o de representante p�blico da universidade, de uma editora, de um livro meu, e volto a falar o meu portugu�s mesti�o, impuro, errado do ponto de vista do m�todo da escola mais conservadora. � o equivalente de colocar o chinelo.
Alguns escritores e estudiosos, como Ailton Krenak e Jacyntho Lins Brand�o, j� disseram considerar inadequada a express�o "l�ngua portuguesa", por escamotear a contribui��o – e a perman�ncia – das l�nguas faladas pelos povos origin�rios. O que voc� pensa a respeito dessa quest�o?
Quem sou eu para discordar de gente como o Krenak e o Jacyntho. Se o Jacyntho disser que o c�u � amarelo, primeiro eu concordo, depois vou tentar entender o que ele est� falando. Eu, particularmente, acho que se houvesse justi�a c�smica, hist�rica, teria sido mais claro, em algum momento, a gente optar de vez por uma demarca��o da nossa diferen�a e escolher um nome como, sei l�, tupiniquim ou brasileiro, para a nossa l�ngua. Por outro lado, acho que isso � tamb�m uma quest�o bem menos importante. Os habitantes dos Estados Unidos da Am�rica n�o sofrem grandes dores ou inferioridades ou preconceitos por ainda se dizerem falantes de ingl�s, em vez de "american�s" ou "unitedian".
'Quem determina legisla��o sobre l�ngua � um consenso vago, lento, muito pouco m�vel, formado por reflexos de uma camada superior %u2013 e por isso mesmo conservadora. � um movimento que tem caracter�sticas ativamente excludentes. Voc� carimbar como errada, ruim, feia uma forma de uso da l�ngua � uma maneira de carimbar os seus usu�rios como errados, ruins, feios'
Caetano Galindo, professor, pesquisador e escritor
As l�nguas t�m fronteiras complicadas. � muito dif�cil, �s vezes, determinar o que s�o variedades de uma mesma l�ngua ou o que s�o duas l�nguas diferentes que se aproximam muito. A pol�tica tem um peso grande nisso. No livro, conto alguns casos em que praticamente da noite para o dia o que era uma l�ngua s� passou a ser duas, como no caso do romeno com o moldavo, no caso do hindi com o urdu, na �ndia; � muito menos uma quest�o de representar adequadamente uma realidade pretensamente clara do que uma quest�o de representar uma certa vontade pol�tica.
Voc� diz que, como fato cultural, a l�ngua se move mais e melhor do que a legisla��o. Gostaria que voc� explicasse essa coloca��o.
As legisla��es, o direito ou, no nosso caso, a gram�tica escolar, sempre se movem mais devagar do que a realidade que elas representam e que elas pretendem regular. Estamos n�s ainda embaralhados na quest�o de discutir a validade ou n�o do casamento entre pessoas do mesmo g�nero e, convenhamos, isso j� � um fato no nosso mundo, e s� por j� ser um fato � que essa discuss�o est� chegando agora ao direito. A legisla��o corre atr�s da realidade; a realidade muda mais r�pido, � mais ind�mita. A legisla��o tem o fito de travar um pouco essa mudan�a, deter um pouco essa mudan�a para manter uma estabilidade, uma ordem, para evitar que essa mudan�a seja acelerada e descontrolada ao ponto de n�o se entender o que est� acontecendo. O que h� de diferente, no caso da l�ngua, � que n�s n�o temos pol�cia, n�o temos mecanismos de san��o, n�o temos um Judici�rio, n�o temos nem mesmo um Legislativo; a gente n�o tem quem fa�a lei sobre l�ngua. Quem determina legisla��o sobre l�ngua � um consenso vago, lento, muito pouco m�vel, formado por reflexos de uma camada superior – e por isso mesmo conservadora. � um movimento que tem caracter�sticas ativamente excludentes. Voc� carimbar como errada, ruim, feia uma forma de uso da l�ngua � uma maneira de carimbar os seus usu�rios como errados, ruins, feios. Vale lembrar que a no��o de erro na l�ngua s� existe quando existe um mecanismo de legisla��o, uma gram�tica escolar, quando existem dicion�rios, quando existe essa camada da elite interessada em conter a mudan�a, porque, de resto, a hist�ria dos idiomas � uma sucess�o de erros que v�o sendo naturalizados pela gera��o seguinte e se transformam em padr�o daquela gera��o, apenas para se verem depois substitu�dos por novos erros. O portugu�s mais fino, mais elegante, mais po�tico falado hoje no mundo nada mais � do que o latim dilacerado, estropiado, completamente errado, o latim em p�, o latim pulverizado.
No Brasil, as comunidades perif�ricas t�m, no geral, quase que um l�xico pr�prio. Como, na sua opini�o, isso atravessa ou se insere na l�ngua que se fala no pa�s?
Isso n�o � uma singularidade do Brasil, isso � uma realidade de qualquer comunidade lingu�stica. O latim falado em Roma na virada do primeiro mil�nio, em torno do nascimento de Cristo, j� era uma l�ngua estratificada: os jovens falavam diferente dos velhos, as pessoas da cidade falavam diferente das pessoas do campo, os pobres falavam diferente dos ricos, os alfabetizados falavam diferente dos n�o alfabetizados. As comunidades perif�ricas em Roma tamb�m tinham seu vocabul�rio pr�prio – existia o latim dos bandidos, o latim das prostitutas, o latim dos migrantes, o latim dos escravos, e isso foi verdade na Idade M�dia, foi verdade em Portugal desde que Portugal se formou, assim como � verdade no Brasil e � verdade em todos os pa�ses. Isso se torna mais evidente no caso de comunidades realmente marginalizadas, que acabam, muitas vezes, com o intuito de se proteger, criando uma linguagem que prime pela diferen�a.
'Voc� carimbar como errada, ruim, feia uma forma de uso da l�ngua � uma maneira de carimbar os seus usu�rios como errados, ruins, feios. Vale lembrar que a no��o de erro na l�ngua s� existe quando existe um mecanismo de legisla��o, uma gram�tica escolar, quando existem dicion�rios, quando existe essa camada da elite interessada em conter a mudan�a, porque, de resto, a hist�ria dos idiomas � uma sucess�o de erros que v�o sendo naturalizados pela gera��o seguinte'
Caetano Galindo, professor, pesquisador e escritor
Ainda outro dia eu estava na Bienal do Rio ouvindo a Amara Moira, uma escritora travesti brasileira, falar um pouco do pajub�, que � justamente essa linguagem desenvolvida pelos travestis no Brasil, marcadamente de origem africana. Pajub�, originalmente, quer dizer segredo, ent�o falar em pajub� � falar de maneira secreta. � uma forma de transformar o mecanismo de exclus�o num mecanismo pr�prio deles, de singulariza��o, de empoderamento como a gente diria hoje. "Ah, voc�s querem me excluir, ent�o voc�s v�o me excluir de verdade, voc�s n�o v�o nem me entender mais, eu vou criar minha cultura paralela".
'L�ngua brasileira', disco de Tom Z�, foi fonte de inspira��o para o livro de Caetano Galindo
Fernando Laszlo/divulga��o
Qual foi a motiva��o ou o est�mulo para voc� escrever "Latim em p�: um passeio pela forma��o do nosso portugu�s"?
A primeira motiva��o � minha trajet�ria; estou h� 25 anos lecionando lingu�stica hist�rica, hist�ria das l�nguas rom�nicas, hist�ria da l�ngua portuguesa e hist�ria do portugu�s brasileiro, mat�ria da qual fui me aproximando mais com as mudan�as de curr�culo. Comecei a pensar que eu j� estava maduro, por assim dizer, para escrever sobre o conte�do do meu curso. A segunda motiva��o, mais direta, foi o meu envolvimento com o projeto do Felipe Hirsch, que assina a orelha do livro, e me chamou, antes da pandemia, para trabalhar com ele numa pe�a com a qual pretendia tratar da hist�ria do portugu�s no Brasil a partir das can��es do Tom Z�. Isso acabou crescendo muito, gerou um disco de m�sicas in�ditas do Tom Z�, que, assim como a pe�a, tamb�m se chama "L�ngua brasileira"; gerou um evento no Museu da L�ngua Portuguesa, no Dia Internacional da L�ngua, que foi filmado e transformado num longa chamado "Nossa p�tria est� onde somos amados". Eu queria contribuir com alguma coisa minha, do meu mundo, para o projeto. O livro acabou sendo publicado no in�cio de 2023, um ano depois da estreia da pe�a, ent�o ele fecha esse projeto maluco do Felipe e apresenta minha contribui��o a isso tudo.
CICLO DIVINAS CONVERSAS
Com Caetano W. Galindo, que lan�a o livro “Latim em p�: um passeio pela forma��o do nosso portugu�s”, nesta quarta-feira (13/9), �s 19h30, na Funda��o Torino (Rua Jornalista Djalma Andrade, 1.300, Piemonte, Nova Lima). Convites dispon�veis no site EventBrite.
Capa do livro, "Latim em p�: um passeio pela forma��o do nosso portugu�s"
“LATIM EM P� - UM PASSEIO PELA FORMA��O DO NOSSO PORTUGU�S”
• De Caetano W. Galindo • Companhia das Letras • 228 p�ginas • R$ 59,90
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