Na calada da madrugada do dia 30 de novembro, a C�mara dos Deputados aprovou a institui��o de crime de responsabilidade contra ju�zas e ju�zes que atuarem de "forma incompat�vel com o cargo”.
Embora tenha recebido apoio de alguns setores progressistas e movimentos populares, que enxergam na medida uma saud�vel restri��o a abusos cometidos no exerc�cio do poder punitivo, a legitimar a��es truculentas do Estado e propiciar persegui��o a determinados setores, � preciso que a altera��o legislativa seja analisada com mais cautela.
O direito penal n�o foi concebido para a emancipa��o de estratos sociais historicamente subalternos aos grupos pol�tica e economicamente dominantes; ao contr�rio, serve justamente ao disciplinamento e neutraliza��o do excedente da for�a de trabalho n�o absorvida pelo mercado, que, n�o sendo �til � sociedade de consumo, � atirada e esquecida nos estabelecimentos penitenci�rios, cujas condi��es fazem recordar o medievo.
Para tal escopo punitivista, o sistema necessita de ju�zes que legitimem a seletividade da pol�tica de persecu��o penal. Em outros termos, ju�zes que apliquem acriticamente a lei penal (esquecidos de que seu principal objetivo � proteger liberdades, e n�o viabilizar puni��es) e, ainda que com as melhores inten��es – oriundas de um arcabou�o de transmiss�o de conhecimento propagadora de vis�o de mundo autorit�ria –, auxiliem na tarefa de excluir a liberdade daquela parcela social e economicamente subalterna, formadora da grande massa carcer�ria.
Da� que ju�zes que assim n�o agem – conhecidos como garantistas, por aplicarem as garantias das liberdades p�blicas constitucionais – passam a ser vistos como verdadeiros obst�culos aos grupos dominantes. A famosa frase “a pol�cia prende, mas o Judici�rio solta”, corrente nos programas policialescos de r�dio e televis�o, simboliza, perfeitamente, a censura hegem�nica ao exerc�cio da independ�ncia funcional que privilegia os fins emancipat�rios dos direitos.
Neste ano de 2016, o acirramento dos conflitos pol�ticos brasileiros e o fortalecimento de demandas autorit�rias oriundas dos setores mais conservadores da sociedade civil agravaram esse quadro. Atualmente, h�, pelo pa�s, magistradas e magistrados sendo constrangidos por procedimentos pr�vios ou por processos administrativos em raz�o de, no exerc�cio de sua independ�ncia funcional, ter ousado fazer valer a Constitui��o frente ao poder punitivo, decretando a ilegalidade de pris�es por agentes destitu�dos de atribui��o de policiamento ostensivo; absolvendo cidad�os acusados de crimes cuja validade nem sequer passaria pelo controle de convencionalidade, como o desacato; determinando, em segunda inst�ncia, a soltura imediata de presos que deveriam estar em liberdade, entre tantos outros.
Por outro lado, desconhece-se a instaura��o de id�nticos procedimentos pr�vios ou de processos administrativos contra magistrados que legitimam a atua��o repressiva do Estado, muitas vezes relativizando garantias constitucionalmente asseguradas. Afinal de contas, como se viu, ainda que involuntariamente, legitimam a seletividade penal dominante.
� necess�rio, portanto, que se julguem as altera��es legislativas mais por sua origem e finalidades latentes do que, propriamente, por seu conte�do.
N�o se olvide que as garantias penais, e toda a revolu��o civilizat�ria do processo penal instaurada com o Iluminismo, foram criadas pela burguesia como forma de se proteger contra as arbitrariedades do poder mon�rquico; n�o foram forjadas para proteger o povo, que, n�o por acaso, � quem mais sofre ainda hoje com os abusos do Estado.
O projeto de lei que responsabiliza ju�zes por crimes de responsabilidade n�o �, da mesma forma, uma conquista progressista ou popular. Foi, tamb�m, forjado pela elite pol�tica para proteger a si pr�pria das arbitrariedades do poder punitivo; a popula��o pobre que superlota pres�dios continuar� a ter seus direitos fundamentais violados cotidianamente e, baixada a poeira, os ju�zes garantistas, que insistem, quixotescamente, em estabelecer limites constitucionais contra o poder de punir do Estado, � que ser�o mais gravemente atingidos pelas puni��es estabelecidas.
O crime de responsabilidade contra ju�zes, portanto, n�o passa de mais um mecanismo aparentemente jur�dico que, certamente, levar� � persegui��o seletiva de ju�zas e ju�zes que, no seu garantismo, obstam a seletividade penal.
No atual momento de tens�o pol�tica e de retrocesso de direitos, n�o se pode cair em velhas ilus�es. � preciso, mais do que nunca, lembrar as demandas hist�ricas da Associa��o Ju�zes para a Democracia (AJD) em favor das liberdades p�blicas em detrimento do fortalecimento de mecanismos seletivos de puni��o.
Andr� Augusto Salvador Bezerra - Presidente do conselho executivo da Associa��o Ju�zes para a Democracia (AJD) e Eduardo de Lima Galdur�z - Secret�rio do conselho executivo da Associa��o Ju�zes para a Democracia (AJD)