
Mineira abandona vida e carreira no Brasil depois de casamento com italiano e se redescobre ajudando mulheres e transexuais em situa��o de vulnerabilidade"Aqui, trabalhamos em rede, uns ajudando os outros, s� assim conseguimos ajudar um ser humano, pois s�o v�rias as necessidades"
Isabela Teixeira da Costa
Profissional de turismo das mais requisitadas da cidade, M�rcia Beatriz Moreira Hadad amava seu trabalho. E foi em uma viagem de trabalho que conheceu o italiano Alfonso, se apaixonaram, namoraram e se casaram. Por uma simples quest�o de oportunidade melhor de trabalho para ele, decidiram se radicar na It�lia, em vez de ficar no Brasil, e foi a� que come�aram as dificuldades na vida de M�rcia. Teve que come�ar do zero, literalmente, porque nenhum de seus estudos foi reconhecido no novo pa�s, e em fun��o disso ela acabou fazendo est�gios, conhecendo pessoas e descobrindo uma nova profiss�o que a cativou e para a qual se dedicou integralmente: mediadora intercultural. Explicando, ela ajuda mulheres e transexuais v�timas e viol�ncia dom�stica e de tr�fego sexual. Conhe�am M�rcia Hadad.
Conte um pouco de sua fam�lia.
Sou filha de Elias Hadad, m�dico psiquiatra, e de Beatriz, que sempre cuidou da fam�lia, e tenho dois irm�os. Fui uma crian�a muito livre, brincava na rua com meu irm�o que � um ano mais velho e era meu melhor amigo. Minhas brincadeiras eram mais masculinas, gostava de correr, subir em �rvores, e meu divertimento para irritar minha irm� era pular o muro e chegar na casa dos vizinhos antes dela. Gostava de esporte, mas parei por problemas na coluna.
Gostava de estudar?
Sim, queria fazer medicina e ser cardiologista, mas em 1977 sofri um grav�ssimo acidente de carro no qual quase morri, perdi dois amigos, um ficou parapl�gico e outro, tetrapl�gico. Minha irm� tamb�m estava no acidente. Nunca mais fui a mesma pessoa, por muitos anos vivi um grande sentimento de culpa por ter sobrevivido. No cursinho, um amigo sugeriu que eu fizesse turismo, e gostei da ideia. Foram quatro anos maravilhosos, em que conheci pessoas com quem ainda hoje, quando viajo para o Brasil, nos encontramos.
Sempre trabalhou com turismo?
Sempre, comecei em um hotel, depois fui trabalhar em ag�ncia de viagem e, conheci o Waldo Pinto, que era diretor l� e foi a pessoa mais importante na minha vida profissional, devo muito a ele. O turismo foi para mim um relacionamento de amor. Naquela �poca, todo mundo se conhecia. Eu organizava grupos e os acompanhava ao exterior, o trabalho era enorme, mas me realizava profissionalmente.
Quando e como conheceu seu marido?
Meu marido se chama Alfonso, nos conhecemos em Bournemouth, na Inglaterra. Em 1986, fui convidada para um famtour para conhecer uma rede de hot�is na �ustria. Depois, decidi fazer um curso de ingl�s em Bournemouth e �ramos colegas de classe. Namoramos por cinco anos e nos casamos em 1991.
O que a fez largar tudo aqui e ir para a It�lia?
A escolha de viver na It�lia foi unicamente econ�mica. N�o t�nhamos condi��es de nos manter aqui, mas ele podia nos manter na It�lia.
Sua adapta��o foi dif�cil?
N�o foi f�cil, sempre amei e amo minha p�tria. Tive que come�ar tudo de novo. Voltei a estudar, tive que fazer cursos profissionais para ter um t�tulo de estudo que tivesse um reconhecimento na It�lia. N�o foi f�cil. Sempre fui uma mulher muito segura, confiante, por causa do meu trabalho. Quando cheguei e percebi que nada do que eu tinha feito no Brasil tinha reconhecimento aqui na It�lia, entrei em um tipo de depress�o. Falava com meu marido, “mas s�o apenas 12 horas que separam o Brasil da It�lia, por que nada tem valor? Porque minha vida n�o tem reconhecimento? ”. Foi um per�odo muito triste para mim, pois sempre fui uma mulher independente e naquele momento eu n�o conseguia me reconhecer, parecia um pesadelo e eu n�o via a hora de acordar.
Conseguiu fazer amizades?
Fiz algumas amigas e amigos e todos s�o preciosos, posso considerar algumas como irm�s.
Teve filhos?
Tenho uma filha, Giulia, hoje com 24 anos. Giulia praticamente me salvou, me deu uma for�a incr�vel. Depois de seu nascimento, comecei a me dedicar � vida profissional e vencer aqui na It�lia. Ela faz biotecnologia m�dica, estuda no Hospital San Rafaelle, de Mil�o.
Sente saudades da fam�lia?
Sinto muita falta da minha fam�lia, meus pais s�o minha for�a, uma casa precisa de colunas para se manter em p�, meus pais s�o minhas colunas. S� entendi essa import�ncia quando vim morar aqui na It�lia. Meus irm�os est�o sempre presentes na minha vida e principalmente no meu cora��o. O Brasil para mim � como meu respiro, preciso ir ao Brasil duas vezes por ano, � fundamental.
Conseguiu trabalhar na sua �rea na It�lia?
Um dos cursos profissionais que fiz na It�lia foi na �rea do turismo. Fui chamada para fazer uma entrevista no escrit�rio de representa��o da American Airlines, foi tudo bem, deveria come�ar esse trabalho no dia seguinte ao da entrevista, mas recebi um telefonema informando que o respons�vel do escrit�rio tinha contratado uma amiga.
O que fazia?
Como disse, estudava muito para ter reconhecimento no pa�s, e nos meus estudos acabei fazendo muito trabalho volunt�rio, que fa�o at� hoje. Fiz curso de mediadora intercultural, e tinha que fazer muitos est�gios.
Foi assim que conheceu a ONG na qual voc� trabalha?
Sim, um dos est�gios foi em uma institui��o da Prefeitura de Turim, de forma��o de jovens, e l� conheci a Silvia Airalle. O est�gio era para fazer uma pesquisa sobre imigra��o, e quando acabou me ofereci para continuar voluntariamente. Quando precisou novamente, ela me contratou. Como meu marido trabalhava nos fins de semana, Silvia me levava para passear. Nos tornamos grandes amigas. No final do curso, abrimos uma associa��o cultural que ensina italiano para estrangeiras, e come�amos a trabalhar fazendo parcerias com outras associa��es. Uma das parceiras � o Centro Interculturale delle Donne Alma Mater, que ajuda mulheres e transexuais. Comecei l� h� mais de 20 anos e estou at� hoje, e mesmo sendo remunerada, acabo fazendo horas extras como volunt�ria, porque muitas vezes sou procurada em casa e n�o deixo de ajudar a quem me liga. Este tipo de trabalho n�o pode ser burocr�tico, quando algu�m a procura � porque precisa de ajuda e n�o podemos pedir para ligar amanh�. Enfrento todos os tipos de problemas das mulheres, desde aprender a l�ngua italiana, a viol�ncia dom�stica ou o tr�fico sexual.
Come�ou atuando com mulheres?
Comecei trabalhando com crian�as refugiadas, mas n�o consegui ter o distanciamento necess�rio, a� entendi meus limites, e vi que poderia ser �til para mulheres e pessoas LGBT, porque consigo ajudar e dormir quando chego em casa. S� perco o sono quando vejo que a pessoa est� correndo risco de morte, e a� bato na porta das pessoas que podem me ajudar. Como disse, aqui trabalhamos em rede, uns ajudando os outros, s� assim conseguimos ajudar um ser humano, pois s�o v�rias as necessidades. J� ajudei mulheres a fugirem de casa, e sou consciente de que corro riscos. Uma mulher brasileira v�tima de viol�ncia � completamente diferente de uma mulher do Marrocos. A brasileira consegue trabalhar, a do Marrocos precisa primeiro aprender a l�ngua, porque ela � isolada do mundo pelo marido, trancada dentro de casa, � totalmente dependente e isso � sua cultura. N�o podemos tratar a mulher como categoria, mas como indiv�duo, e quando as ajudamos elas t�m que ser prioridade at� o momento de n�o correrem mais risco. A� acaba o assistencialismo e elas t�m que assumir a vida. Meu marido sempre se preocupou com o meu trabalho. Um dia, perguntei a ele se gostaria de me ajudar em uma fuga, ele disse que sim.
E como foi?
Expliquei que a mulher n�o podia saber que ele era meu marido, que dever�amos ser muito r�pidos, pois a vizinhan�a poderia informar ao marido dela, que era violento. Fomos em uma cidade perto de Turim, estacionamos pr�ximo da casa da senhora, ela me avisou quando o marido saiu de casa, e em poucos minutos enchemos cinco sacos grandes de lixo com as roupas, e corremos para o carro, colocamos os sacos no porta-malas e fomos embora. Chegando em Turim compramos malas. Acompanhei a senhora em uma casa ref�gio e no dia seguinte ela voltou para o Brasil (nesse caso especifico, ajudei uma brasileira em parceria com o projeto Rientro Volontario Assistito (Retorno Voluntario Assistido). O projeto cobria o custo da passagem, uma ajuda financeira para a viagem e para recome�ar no pa�s de origem.
Do que voc� tem mais medo?
Temo mais pela minha filha, que alguma coisa possa acontecer com ela por vingan�a por parte desses homens, mesmo porque j� tive que depor em tribunal v�rias vezes.
Como elas ficam sabendo da Associa��o?
Pelo boca a boca. � uma associa��o cultural de mulheres para mulheres e oferecemos v�rios cursos, como de l�ngua italiana, de assist�ncia familiar, oficinas de costura, de trabalhos manuais, temos psic�logos e advogados. Muitos maridos, inclusive os �rabes, deixam suas mulheres frequentarem a escola porque s� tem mulher. Quando elas come�am a viver com mulheres de outras culturas passam a comparar a sua vida, e come�am os conflitos familiares. Agimos quando elas pedem ajuda. N�o convencemos ningu�m de que est� sendo v�tima de viol�ncia, ela tem que sentir. Isso � seri�ssimo e de grande responsabilidade. Muitas mulheres, depois de denunciar o marido, acabam voltando para ele por raz�es l�gicas – o marido e a fam�lia s�o as �nicas refer�ncias que ela tem naquele pa�s; se saem, est�o diante do desconhecido. Toda casa de apoio tem regras desconhecidas. � dif�cil e delicado.
E este trabalho em rede?
Fazemos parcerias com v�rias associa��es e ONGs porque cada uma delas atua em uma frente diferente, precisamos de casa ref�gio, de ensinar um trabalho, de documentos, de emprego em outra cidade e at� mesmo em outro pa�s, de moradia, transporte, roupas, alimenta��o, etc. Esta rede � fundamental para conseguirmos realizar todas as fases do processo com seguran�a. Trabalho tamb�m em outras associa��es. Uma delas � a Associazione Mamre, na qual atuo como mediadora etnocl�nica. L� eu trabalho com psic�logos e antrop�logos na cura psicol�gica e emocional. Trabalhamos somente com estrangeiros ou casais em que um dos c�njuges � estrangeiro.
Voc� tamb�m luta contra o tr�fico sexual?
Sim, este � outro tipo de problema muito grave, o tr�fico de seres humanos para o mercado da explora��o sexual e do trabalho em geral. Estamos falando de organiza��es criminosas, e o perigo para essas pessoas e para os t�cnicos que ajudam � grande. Geralmente, s�o mulheres brasileiras que trazem mulheres e at� homossexuais oferecendo trabalho em sal�es de beleza. Elas trabalham indoor, e a primeira coisa que fazem � sequestrar os passaportes. E obrigam essas pessoas a se prostitu�rem. Registram a imagem e amea�am mand�-las para as fam�lias no Brasil. A associa��o onde trabalho faz parte de um grupo de associa��es que atuam no territ�rio nacional para ajudar mulheres, homens, pessoas LGBT no tr�fico de seres humanos. Eu me ocupo mais das pessoas LGBT, principalmente transexuais que est�o no mercado sexual. Para mim, as trans s�o as pessoas que mais sofrem com a viol�ncia e discrimina��o, e elas trabalham nas ruas.
Voc� mudou muito depois que passou a fazer esse trabalho?
Muito. Hoje, meu prazer � ficar em casa, porque trabalho com pessoas que n�o t�m casa. Nossos valores mudam. N�o tenho mais preconceito de nada, nem cor, nem sexo, nem religi�o, nem cultura.
J� pensou em escrever um livro contando suas experi�ncias?
Duas amigas me falam sempre que preciso escrever meus casos, n�o por serem interessantes, mas porque podem ser �teis para muitas pessoas.
Quais s�o seus planos futuros, tanto profissionais quanto pessoais?
Hoje, gostaria de n�o ter responsabilidade na vida das pessoas, �s vezes sinto que muitas esperam uma solu��o para a vida delas. N�o sou a solu��o, sei que posso ser �til, mas a decis�o depende delas, n�o posso decidir por elas, � muita responsabilidade.