
Renata Velloso Ara�jo Donato, mais conhecida como Renata Ara�jo, � uma mulher m�ltipla. Decidia, sempre fez o que quis. De crian�a t�mida, se transformou em adolescente extrovertida, participativa, e apesar de ter atuado por um tempo ao lado do pai, Eduardo Araujo, na rede de drogaria mais famosa da cidade, percebeu que ali n�o era seu lugar. Determinada, seguiu seu sonho e buscou realizar seus desejos. Especializou-se em psican�lise, e deixou aflorar seu lado art�stico que profissionalizou h� tr�s anos. Escreve, dan�a, canta, faz performances e tamb�m criou o projeto Letras pelo Sert�o, que leva a literatura para o Norte de Minas. Tudo isso sem descuidar de seu marido e seus tr�s filhos. Energia para todo este trabalho ela tem de sobra, al�m de uma simpatia e alegria contagiantes.
Fale um pouco da fam�lia.
Nasci em Belo Horizonte, sou filha mais velha de Sandra e Eduardo Ara�jo, e tenho tr�s irm�os. Perdi meu pai muito cedo. Ele era empres�rio e morreu, h� 16 anos, aos 60 anos, de mielo fibrose, em apenas 20 dias. Eu tinha uma rela��o muito pr�xima com ele. Na �poca em que ele faleceu eu lancei meu primeiro livro, Alma de vidro. O livro trata da quest�o do luto, por�m, nada direcionado a ele, mas �s coisas vividas, o que foi preciso trazer no dia a dia e na escrita para tentar fazer uma bordagem para a quest�o da morte. Foi uma das viv�ncias mais dif�ceis que eu tive, mas a escrita foi uma forma de tratar isso, foi uma sa�da para eu dar conta desse luto. Tive uma segunda m�e, minha m�e preta, que ficou conosco 46 anos, a Maria L�cia, que chamamos de G�, que me ensinou a sambar aos 3 anos de idade. Ela sempre foi uma figura muito importante na minha vida, e � at� hoje. Essa coisa do ritmo j� estava forte em mim, desde a inf�ncia. Aos quatro anos fui dan�ar bal� e fiz isso a minha vida inteira. Sou bailarina tamb�m.
"� um projeto aberto, em constante constru��o e evolu��o. Trata-se de uma biblioteca. Peguei uma casa da fazenda e montei uma biblioteca para as crian�as da regi�o"
Voc� era uma crian�a extrovertida?
At� meus 12 anos era muito introvertida. Estudava no Col�gio S�o Tom�s de Aquino e lembro que era muito t�mida. Nos mudamos para a Pampulha e fui estudar no Pit�goras e essa coisa inverteu, porque naquela �poca l� tinha dan�as, concorr�ncia, e entrei nisso tudo. Tinha concurso Garota Pit�goras, e eu participei e ganhei.
Come�ou a descobrir seu lado art�stico atrav�s da dan�a?
Foi, mas isso foi s� a posteriori. A gente s� consegue dizer dessa quest�o art�stica depois que voc� vai vivenci�-la para poder nome�-la. Ah, era aquilo! � um percurso todo para voltar e falar: Era. Na dan�a eu recordo disso, mas lembro que fiz bal� no Compasso, com Ana L�cia Vieira e Vit�ria Alvim, depois fui para o N�cleo Art�stico estudar com a Marjorie Quest. Depois fui para o Maur�cio Tobias, uma pessoa que eu guardo no cora��o, ele me ensinou presen�a de palco. Trouxe ele para participar de uma apresenta��o minha no Baretto.
E a m�sica?
Ouvia muita m�sica. Viaj�vamos de f�rias para a col�nia do Sesc. Era longe, e antes de ir j� ficava preocupada com que m�sica ouvir�amos no caminho. Naquela �poca era walkman, e ficava dias selecionando as m�sicas que meu pai gostaria de ouvir no caminho e passava as noites gravando as fitas cassetes. Com isso passava as noites ouvindo m�sicas de todas as �pocas. Meu pai amava m�sica, o C�lio Balona vivia l� em casa.
Sua musicalidade foi herdada dele?
Pode ser, mas minha av� paterna, Nylse Velloso tocava piano. Papai tamb�m tocava, o piano dele est� comigo. Cheguei a tocar um pouco com uma mulher chamada Maria Luiza, que morava na rua. Era lindo, ela morreu nova, aos 40 anos, de l�pus. Lembro de ela tocando “Nunca”, “Ronda”. Meu pai gostava muito de Bossa Nova, Tom Jobim, Frank Sinatra, Gal Costa, que � o meu repert�rio hoje. Me recordo de j� estar com interpreta��o. A dramaturgia j� estava ali.
Voc� � assim determinada?
Sou. S� fui entender isso mais tarde, em an�lise. Sou extremamente focada.
O que te levou para a psican�lise?
Eu j� dan�ava, escrevia, desenhava. Quando fui fazer o vestibular tive que pensar um pouco, porque tinha a quest�o da empresa. Meu pai estava � frente da Araujo. Fiquei entre Administra��o e Psicologia. Eu sempre quis entender o ser humano. A busca do querer saber. Fiz vestibular para os dois cursos e passei nos dois, mas n�o dei conta de sustentar o meu desejo. Matriculei nos dois. Fiz um de manh� e outro � noite, mas acabei abrindo m�o da psicologia. Formei em administra��o e fiz p�s-gradua��o em marketing pela FGV.
Chegou a trabalhar na Araujo?
Sim. Separei produtos no CD, fui para organiza��es e m�todos. Tudo foi muito v�lido. Gostava, era feliz, mas meu fluxo de caixa n�o fechava. D� para entender isso. Quando percebi que eu estava atendendo as atendentes, como psic�loga, vi que meu lugar n�o era ali. Entreguei meu certificado de administra��o para o meu pai. Ele perguntou em que poderia me ajudar e disse que queria estudar psican�lise. Fiz a especializa��o pela Fumec, e estudo at� hoje. Participei e participo de muitos semin�rios. Mas minha escrita sempre foi muito po�tica. E estudo h� 22 anos, ininterruptamente. Tenho consult�rio e atendo at� hoje.
Voc� consegue administrar todas essas �reas de atua��o?
S�o v�rias �reas de desejo, n�. � a m�sica, a dan�a, a literatura e a psican�lise. Mas temos que conseguir, para nos realizar.
Quando voc� fez psican�lise, se sentiu completa?
Na hora que fui para a psican�lise o lado da dan�a ficou em stand by durante um bom tempo.
E quando o lado art�stico aflorou novamente?
A m�sica sempre esteve presente de uma forma muito amadora. Cantei na festa de 50 anos do meu pai. Nem sabia que eu era afinada. Sempre que tinha reuni�o eu acabava cantando. Um dia um amigo do meu marido Nadim Donato, perguntou por que eu n�o entrava para uma aula de canto, porque sempre pegava microfone para cantar. Eu cantava de atrevida. Foi o est�mulo que eu precisava. Tem tr�s anos apenas que todo este profissionalismo art�stico come�ou. Entrei para a aula com o professor S�rgio Moragas.
Quando conheceu o Nadim e quando se casaram?
Conheci o Nadim quando eu tinha 22 anos, e me casei tr�s anos depois. Aos 26 tive minha primeira filha, Camila, que hoje tem 22 anos, e faz psicologia. Tenho tamb�m o Rafael, com 20, que faz administra��o no Ibmec e Marcela, com 12, que tem o lado art�stico bem aflorado. E tenho o meu enteado, porque o Nadim j� tinha um filho do primeiro casamento.
Quando come�ou a fazer shows?
Fa�o aulas tr�s vezes por semana. O S�rgio levava os alunos para uma pizzaria no Graja� para os alunos treinarem. Depois teve um show no Vinil. �ramos tr�s para apresentar. Eu fui a �ltima e j� fui com meus poemas. Ali estava abrindo as portas para o que eu queria. E a primeira vez eu apresentei um show estruturado. Depois procurei o Fasano para propor uma apresenta��o no Baretto e lotei a casa.
No in�cio as performances ainda n�o tinham entrado no show?
N�o. Claro que tinha uma bossa, um gingado. Mas depois eu fui entendendo a linguagem, o conceitual. A performance mais trabalhada e mais elaborada. Meu corpo sempre foi um corpo falante, mas eu n�o tinha sustenta��o, n�o tinha entendimento, por isso ele foi o �ltimo que entrou em cena. Percebi que n�o tinha como eu ir sem ele, ele faz parte de mim. Precisei dar conta dessa linguagem e assumi-la. � um corpoema. N�o tem como ficar fora. Eu escrevo os poemas para cada show. N�o � um show qualquer, eu tenho um tema. O pr�ximo � o Chegada, e escrevo v�rios poemas, conexos. E vou trabalhando as m�sicas. Este show eu trabalhei o Tupi, que � a origem da linguagem que nos marca. Vou come�ar cantando O Brasil n�o conhece o Brasil. Tem toda uma conex�o de pensamento.
Conseguiu realizar o seu desejo?
� preciso ter coragem para bancar um desejo, e � isso que eu quero dizer para o outro. A vida � curta. Temos que ir atr�s do que desejamos de fato. A coisa mais dif�cil da vida � a gente buscar o desejo e banc�-lo. Se a pessoa n�o sabe o que quer, vai fazer uma an�lise.
Voc� disse que tem sede do saber e do conhecimento. Ainda estuda?
Muito. Fiz curso de hist�ria da arte com o professor Luiz Fl�vio, mitologia, filosofia. Para entender, atrav�s da arte, o contempor�neo. Gosto das coisas com conte�do, preciso entender tudo na sua profundidade. Meu primeiro show se chama O abissal de mim, muito profundo, e paralelamente ao show, escrevi um livro, com o mesmo t�tulo. Fiz v�rias viagens culturais com o Luiz Fl�vio. Isso tudo me fez trazer a quest�o da leitura conceitual.
E a literatura?
Lembro eu ainda crian�a, na casa do meu av� materno. Ele lia muito, porque n�o teve muito estudo, e com isso adquiriu uma paix�o por leitura. Ele me ensinou a amar os livros. Colecionava livros. Lembro da cena de eu, entrando na biblioteca dele – descrevo isso em um livro que est� pronto para ser lan�ado –, e cheirando os livros. Como voc� pode ver, tudo na minha vida est� interligado. A dan�a, a m�sica, a voz, a literatura. Tive outro grande parceiro, al�m do meu av�, claro, que � o Alencar, da Quixote. Ele me mostrava os livros que achava que era importante e interessante para eu ler. Porque eu li muito, mas ele me apresentou grande e excelentes escritores, desde os cl�ssicos at� os atuais. Minha imers�o na leitura foi antes de eu entrar no campo da arte. J� atendia no consult�rio, mas estava mais tranquila na �poca. Como voc� pode ver, tenho muitas frentes de desejo. Estar na literatura, no corpo, na voz, na dan�a, na arte, na escrita. Fiz at� oficina de psican�lise e teatro com o Ant�nio Quinet.
Como nasceu o Projeto Letras pelo Sert�o?
Come�ou com a escrita do livro Abissal de Mim. Tive este despertar para o sert�o, porque n�o � s� o sert�o f�sico, � o “Ser T�o”. S�o v�rios questionamentos usando tanto o pr�prio sert�o que vira personagem, e ele entende que ele n�o � t�o “ser t�o”, quando ele se v� frustrado, manco porque as pessoas est�o com fome, tem a seca. Est� enlutado. Isso remete a quest�o de cada um de n�s. E abordo a quest�o da morte novamente, como antes as pessoas falavam da morte com mais naturalidade, os mortos eram velados dentro de casa, hoje, tem um distanciamento, um silencio velado, uma dificuldade em tratar da morte. Todos estes questionamentos que eu fiz a partir da morte do meu pai, porque ele falava muito “n�o me leva para casa”. Mas quando o sujeito tem escolha frente a morte? Onde escutamos de fato o sujeito frente a morte? O que realmente ele quer? Porque eles viram objeto nas m�os da medicina, dos hospitais, em um ambiente frios de um CTI, isolados da fam�lia. S�o v�rias passagens.
E o projeto?
Sempre tive o desejo de ter uma biblioteca. Sonho que herdei do meu av�. Temos uma fazenda no Norte de Minas, depois do Rio S�o Francisco. � um cantinho do c�u, como dizia meu pai, e passei minha inf�ncia, at� a adolesc�ncia indo para l�. Depois que me casei retomei minhas idas, agora com meu marido e filhos. A conviv�ncia com as pessoas da regi�o sempre me cativou, pessoas simples, da terra, com uma sabedoria natural. Gosto de gente. Quando escrevi o livro, a analogia com o Sert�o acabou me enraizando ainda mais na regi�o. � um projeto aberto, em constante constru��o e evolu��o. Trata-se de uma biblioteca. Peguei uma casa da fazenda e montei uma biblioteca para as crian�as da regi�o. Pedi doa��o de livros para grupo de amigos aqui de BH. Ganhei um caminh�o de livros, de temas variados. A biblioteca estava pronta. Fizemos uma sele��o, doamos para escolas da regi�o mais livros, porque n�o cabia. Quero fazer uma biblioteca conceitual para a regi�o. Ganhamos livros cl�ssicos, de cole��o capa dura, maravilhosos. Dois meses depois chegou a pandemia, e l� n�o tem internet. O que essas crian�as fariam? Como ficariam sem aula? Com a ajuda de duas professoras, Rosangela e Ivani, muito envolvidas com o projeto, decidimos transformar em “biblioteca itinerante”, levando os livros para a casa das crian�as e trocando de tempos em tempos. E pedindo para eles fazerem uma escrita do que achou do livro. O resultado foi surpreendente. Textos, poemas. Um material muito rico. Os pais come�aram a ler tamb�m. Fiquei dois meses, retornei para BH, e depois de quatro meses, voltei para l�. Os professores ficaram encantados de poderem ter acesso a livros que queriam ler e n�o tinham acesso.
Quem toda o projeto na sua aus�ncia?
Eles. Fa�o quest�o de dizer que o projeto n�o � meu, � deles, e eles t�m que agir. Se eles n�o entenderem isso e n�o atuarem, o projeto vai morrer. Eles t�m que querer porque � para o interesse deles. N�o adiante eu ficar injetando desejo o tempo todo. � preciso que sintam que foi feito para eles e se apropriem da materialidade que foi doada. O andamento e a continuidade dependem deles. Estou aqui como apoio, ajuda e n�o como a dona do projeto. A �ltima vez que eu cheguei l� apenas avisei que tinha chegado e fiquei quieta, em sil�ncio. E eles entenderam que a a��o teria que ser deles. E eles s�o guerreiros. A intens�o � montar v�rias casas bibliotecas, em regi�es mais afastadas, para facilitar a chegada dos livros a um maior n�mero de fam�lias. J� estamos fazendo roda de leitura com dramaturgia. E saem coisas riqu�ssimas. Agora j� temos divulgadores mirins que s�o Letras pelo Sert�o, que v�o em outras comunidades contar da sua experi�ncia. Eles v�o de bicicleta. � lindo. Sou uma apaixonada pelo projeto. J� at� escreveram uma m�sica a partir da leitura.
Chegou a ir na casa das crian�as?
Sim, fui em v�rias. Desde quando come�amos a distribuir os livros. Eu tenho muita facilidade de chegar no outro, ent�o descia na casa das pessoas, tomava cafezinho com o biscoito da regi�o. Fiz conta��o de hist�rias, usei de todas as ferramentas que eu tenho para despertar o desejo de querer saber em todos eles. Vi que eles tinham o desejo, s� n�o tinham o material. Acabei atendendo fam�lias, porque n�o tem como separar todas as minhas �reas de atua��o, a psicanalista est� ativa o tempo todo. Foi o que eu te disse l� no in�cio, tudo est� interligado e tudo junto se completa formando quem eu sou. Ouvi hist�rias lindas, outras muito tristes, mas � gratificante quando voc� percebe que conseguiu ajudar e levar o bem. A biblioteca n�o � s� para crian�as, � para todo ser que desejar saber.
Como voc� tem tempo para isso tudo?
Acho que te respondo assim: � porque eu sei da finitude da vida. Em um dos shows que eu escrevi eu disse “N�o sei o que pode acontecer quando eu abro as portas de mim, s� me cabe o ato de fazer”. E como vai tocar o outro ou n�o, n�o me preocupa.