
A moda brasileira est� bem representada em Londres. Jo�o Maraschin, ga�cho de Caxias do Sul, que j� trabalhou em Belo Horizonte como assistente de Ronaldo Fraga, realiza o sonho da carreira internacional com ousadia e originalidade. H� um ano, depois de estrear na passarela da London Fashion Week, a marca, que leva o seu nome, ganha visibilidade na contram�o do mercado. N�o segue tend�ncias, resgata t�cnicas artesanais, usa materiais improv�veis e mira em mulheres mais velhas.
As roupas s�o femininas e contempor�neas. Exibem formas minimalistas, mas, nas texturas, voc� encontra a riqueza dos trabalhos manuais. O estilista tem como compromisso preservar t�cnicas de artesanato, que s�o uma paix�o. Quando volta ao passado, ele sempre se enxerga tricotando.
Uma lembran�a marcante envolve sua tia-av� e as amigas, que se encontravam para fazer tric�, croch� e conversar. “Isso influenciou bastante a minha decis�o de querer preservar a hist�ria. Venho de uma fam�lia grande e era o �nico primo que dava aten��o ao que elas faziam. T�cnicas s�o deixadas para tr�s e o conhecimento regional acaba se perdendo nesta transi��o de gera��es”, comenta.
Jo�o entendeu que esse seria seu prop�sito como marca quando foi morar em Londres. Ele estudou por tr�s anos na London College of Fashion. “Enquanto fazia meu curso, fui provocado a pensar em quem era, minhas origens, o que carrego da minha hist�ria particular. Percebi que o artesanato se tornou protagonista do meu trabalho; consequentemente, as t�cnicas manuais s�o algo forte para mim.”

A marca tamb�m se conecta com a sustentabilidade, algo que para Jo�o � inegoci�vel. A moda em que ele acredita respeita o planeta e as pessoas envolvidas no processo. “Comparo sustentabilidade com qualidade. Nenhuma marca fala que tem ou n�o qualidade, isso � intr�nseco ao processo, seja em qual nicho atua. A minha abordagem de sustentabilidade � a mesma. Mais que desenhar a pr�xima roupa, desenho novos sistemas de como fazer roupa respeitando as pessoas e os recursos naturais.”
Trabalho colaborativo
Pelo lado humano, o estilista chegou a um modelo de neg�cio em que desenvolve um trabalho colaborativo com os fornecedores. Sua vis�o criativa direciona o processo, mas ele n�o imp�e nada. Tudo � decidido coletivamente. No momento, est� em contato com artes�os de Belo Horizonte, Itabira e Caxias do Sul. Explora t�cnicas regionais, deslocando-as para o exerc�cio contempor�neo de moda.
Em Itabira, ele conseguiu reativar um grupo de bordadeiras que estava parado. De longe, convidou as mulheres a bordar objetos, pessoas, frases e situa��es que refletissem o seu cotidiano. Uma desenhou o cachorro, outra a m�quina de costura. A artes� que se casou no meio da pandemia quis mostrar sua felicidade em uma representa��o dela com o marido, as alian�as e um cora��o. Frases como “A �gua est� acabando” e “N�o se mistura religi�o com pol�tica” complementam os desenhos.
As centenas de ilustra��es est�o bordadas em uma base dupla de tule que tem certa transpar�ncia. Quase n�o sobram espa�os vazios de tantos elementos reunidos em uma �nica pe�a (saia e blusa). As sobras das linhas s�o mantidas e d�o a ideia de um trabalho ainda em constru��o.
A conex�o com as comunidades � intensa e cont�nua. Com voca��o social, a marca quer garantir renda para os artes�os. “Estou na terceira cole��o e continuo com os mesmos fornecedores. A rela��o duradora d� um pouco mais de seguran�a e de estrutura para essas pessoas, elas sabem que o projeto n�o vai terminar em dois meses e n�o v�o ter que procurar o pr�ximo trabalho. A minha grande vontade, daqui a 10 anos, � olhar para tr�s e ver que evolu�mos juntos.”

Quando o assunto � mat�ria-prima, Jo�o sempre d� prefer�ncia para fibras naturais (melhor ainda se forem org�nicas) e materiais reciclados. “Trabalho muito com estoque parado. Isso faz parte da minha experi�ncia em moda. Voc� sempre tem tecidos que v�o ficar uma vida guardados e n�o vai utilizar”, explica o estilista, que tem buscado confec��es parceiras.
O poli�ster que usa � resultado do aproveitamento de res�duos de uma empresa de camisaria. O material serve como base para um blazer e uma cal�a, que tamb�m t�m na composi��o algod�o reciclado. A marca ainda desenvolve pe�as com seda que seria descartada.
Croch� com borracha
Materiais n�o convencionais na moda servem de impulso para a criatividade do estilista. Sempre disposto a experimentar algo novo, ele acabou fazendo croch� com borracha de c�mara de ar de pneu de bicicleta, moto e caminh�o. O material � limpo, tratado, cortado em tiras bem finas e vira um fio. Para fazer a cal�a pantalona, que pesa cinco quilos, utilizam-se mais de 40 c�maras de ar. A bainha ligeiramente enrolada � uma rea��o natural do material.
A borracha reciclada tamb�m aparece em uma sand�lia criada em colabora��o com a designer brit�nica Tabitha Ringwood. Feita manualmente, ela pode ser usada no ver�o, com os p�s � mostra, ou combinada com meias coloridas no inverno.

A ideia de aproveitar a palha da costa, normalmente usada para fazer chap�u, surgiu durante uma conversa com artes�s de Belo Horizonte. O material passa por um processo de amaciamento para se transformar em roupa. Usando conhecimento tradicional da cestaria e t�cnica do croch� tunisiano, as mulheres chegaram a uma trama indiscutivelmente bela. A partir disso, a escolha foi criar uma camisa de manga curta e fechamento com faixa, que marca a cintura.
A busca por novos materiais levou Jo�o a descobrir no Rio de Janeiro o couro de folha, alternativa sustent�vel ao couro animal. Depois de mais um ano de testes, a marca est� pronta para lan�ar um vestido (que tamb�m funciona como casaco, por ser aberto na frente), uma jaqueta estilo biker e bolsas.
Inclus�o e diversidade s�o outros conceitos importantes para a marca. Jo�o nunca quis fazer roupa para o p�blico jovem. Desde o in�cio, direcionou o seu trabalho para as mulheres acima dos 40 anos, p�blico que enxerga valor em t�cnicas manuais e n�o se preocupa em seguir tend�ncia. “Meu produto n�o � algo que voc� compra, veste e descarta. Proponho uma experi�ncia mais aprofundada com os materiais e a moda.” Todas as modelos de prova de roupa e de campanha seguem o mesmo perfil.
A constru��o da roupa segue muito o que o estilista entendeu depois de uma pesquisa com mais de 50 mulheres em Londres. Ele tamb�m considerou o fato de que o corpo vai se transformando ao longo da vida e as medidas precisam mudar (na escala dos cent�metros). “A moda normalmente olha para corpos jovens, de passarela, mas eu olhei na contram�o disso. A minha modelagem, que � muito peculiar do meu trabalho, tem medidas totalmente diferentes do que aprendi na faculdade.”

As roupas s�o mais amplas e soltas, com um pouco mais de espa�o para os movimentos e conforto para n�o revelar o que n�o se quer mostrar. “Ao mesmo tempo, quebro este paradigma. No estudo, vi que muitas mulheres gostam de usar pe�as mais curtas, mostrar colo, b�ceps, o que muita gente acha que � tabu”, comenta o estilista.
As cole��es transitam entre tr�s intensidades de trabalho manual. Algumas pe�as s�o totalmente artesanais e se encaixam em ocasi�es especiais, como a cal�a de borracha, a camisa de palha e a saia de listras coloridas tricotada com algod�o reciclado. Roupas casuais que carregam t�cnicas manuais nos detalhes est�o em outra categoria. Como exemplo, a camisa estruturada com bordado discreto no bolso. Na outra ponta, pe�as bem pr�ticas para o dia a dia, entre elas uma camisa leve e solta de algod�o.
Experi�ncias intensas
Com 15 anos, j� interessado em ser estilista, Jo�o entrou para o curso t�cnico de costura e modelagem na sua cidade, Caxias do Sul. “Basicamente, o p�blico eram senhoras de mais idade e foi uma troca muito enriquecedora. Ali consolidei a vontade de continuar os estudos nesta �rea”, conta. No fim da faculdade, ele ganhou um pr�mio ao fazer uma cole��o que tinha muito de t�cnicas manuais. Um dos jurados era Ronaldo Fraga e essa foi a sua ponte para Minas Gerais.
Antes de se mudar para BH, a convite do estilista, o ga�cho passou por v�rias marcas do Sul, teve marca e loja pr�prias e fez cursos na It�lia. Aqui trabalhou por dois anos como assistente de cria��o de Fraga. Na sequ�ncia, foi realizar seu sonho de morar fora do Brasil. “Sempre tive vontade de continuar os estudos no exterior, tentar carreira internacional, e Londres era uma refer�ncia para mim.”

Jo�o emendou p�s-gradua��o e mestrado em design de moda na London College of Fashion. Neste meio tempo, trabalhou para Wales Bonner (moda masculina) e JW Anderson. “No fim do mestrado, participei do processo seletivo da London Fashion Week e foi o que abriu portas para mim. Sempre fui bastante empreendedor e, nestes tr�s anos de estudos, pensando no meu prop�sito de moda, fazia mais sentido em pensar algo meu, ter voz para decidir o qu� e como fazer.”
A marca estreou na semana de moda londrina em fevereiro do ano passado. O desfile fazia parte de uma iniciativa do Institute of Positive Fashion, ligado ao British Fashion Council, que d� visibilidade a neg�cios que t�m compromisso com o meio ambiente e as pessoas. Logo depois decretaram lockdown em Londres, mas o estilista seguiu seu caminho. “Me sinto bastante feliz e orgulhoso do que consegui conquistar neste um ano.”
Na primeira edi��o on-line da London Fashion Week, em junho, Jo�o participou com uma sess�o de fotos em que as roupas flutuam, sem modelo. Desde ent�o, ele n�o se apresentou mais. Como n�o segue a l�gica do mercado, s� lan�a cole��o quando tem o que mostrar.

Na marca, a m�xima � respeitar o tempo de cada processo. Roupas feitas a m�o, naturalmente, levam mais tempo, ainda mais na pandemia. “Decidimos, por seguran�a das artes�s, n�o fazer nada at� abril. N�o vou expor ningu�m ao risco em fun��o de uma cole��o que quero lan�ar em determinada data. N�o quero fazer um produto a qualquer custo”, defende. A pr�xima cole��o est� prevista para setembro.
Pelo tempo que os processos levam, Jo�o n�o descarta nada de uma cole��o para outra. Nem mesmo as pesquisas. “Acho injusto engavetar uma pesquisa (a primeira levou dois anos) e seguir em frente, sem olhar mais para aquilo.” Tanto que a primeira e a segunda cole��es s�o inspiradas em Jos� Leonilson, artista que, assim como ele, usava materiais improv�veis em seu trabalho. Os bordados das artes�s de Itabira fazem refer�ncia aos desenhos dele de caneta preta, que eram uma rea��o ao cotidiano.