
Separados dos pais desde o nascimento, como forma de evitar o cont�gio, os filhos de portadores de hansen�ase carregam sequelas na alma, mais dif�ceis de curar que as do corpo. Calcula-se que mais de 40 mil beb�s e crian�as cresceram isolados em 101 orfanatos e educand�rios no Brasil, enquanto seus pais eram separados em col�nias. Tornaram-se “�rf�os” de pais vivos por imposi��o do Estado. Meu maior sonho era poder tocar na m�o da minha m�e”, diz Maria das Dores Moreira, de 53 anos, a Dad�, ex-interna da Pupileira Hernane Agr�cola, no Bairro do Horto, na Regi�o Leste de BH. Eram permitidas visitas das m�es, desde que fosse mantida dist�ncia m�nima de 100 metros, separadas por cerca de arame farpado.
Agora, para minimizar o impacto da viol�ncia f�sica, psicol�gica e social sofrida por v�rias gera��es, o Movimento de Reintegra��o das Pessoas Atingidas pela Hansen�ase (Morhan) est� fazendo mobiliza��o nacional para que os filhos separados sejam indenizados, a exemplo do que j� ocorre com ex-internos. Inspirado na iniciativa das Av�s da Pra�a de Maio, na Argentina, o Morhan pretende ajudar os ‘filhos separados’ a reencontrarem seus pais, por meio de parceria com o Instituto Nacional de Gen�tica M�dica Populacional (Inagemp), para mapear o hist�rico dos familiares e submet�-los a exames de DNA. Em Minas, o a entidade est� promovendo debates e audi�ncias p�blicas com apoio de parlamentares. Na quarta-feira, ser� realizada audi�ncia p�blica na C�mara Municipal de Betim, para discutir o assunto.

Apesar de sobrenome e idade diferentes, Tereza e Faf� sempre foram amigas insepar�veis dentro da institui��o. A mais nova cuidava da mais velha, que apresenta leve retardo mental. “Cheguei aqui com um dia de vida, ainda com o coto do cord�o umbilical. Disseram que minha m�e tinha falecido durante o meu parto e que, 15 dias depois, meu pai tamb�m teria morrido”, diz Tereza que, intimamente, nunca aceitou a vers�o contada pelas freiras. Queria ter uma fam�lia, conforme imaginou na reda��o com o tema “Minha fam�lia”, premiada como a melhor da sala na 4ª s�rie. H� quatro anos, Tereza decidiu tirar a prova. Pagou, do pr�prio bolso, o teste de DNA que comprovou a suspeita de que ela e Faf� eram irm�s por parte de pai.
Traumas
Nem mesmo os campos de concentra��o nazistas cometeram a crueldade de isolar as crian�as de suas origens. No Brasil, os filhos foram separados dos pais em creches e educand�rios at� 1986, apesar da descoberta da cura da lepra na d�cada de 1940. As interna��es continuaram por quase 50 anos, sem necessidade. “H� relatos de pessoas contando que, quando crian�as, rezavam todas as noites para contrair a doen�a. Para elas, essa seria a �nica forma de voltar para casa”, explica Thiago Flores, presidente em Minas do Movimento de Reintegra��o das Pessoas Atingidas pela Hansen�ase (Mohan) e estudante de psicologia da PUC Minas. Em trabalho final de curso, ele identifica traumas profundos nos filhos de ex-pacientes, como tra�os de depress�o, dificuldades de aprendizagem e fobia social.
“Minha �nica revolta � terem me separado do meu pai e da minha m�e. Queria ter ficado do lado deles, mesmo que estivessem doentes”, desabafa Ant�nio Marco de Souza Helino, de 38 anos, que atualmente trabalha como jardineiro e sacrist�o na igreja matriz da ex-col�nia de Tr�s Cora��es. “Eu sempre recebia a visita da madrinha Maria das Dores. Na inoc�ncia de crian�a, achava que ela era minha m�e. At� que um dia, l� pelos 13 anos, chegou um grupo de quatro senhoras para nos visitar. Eles colocaram as quatro juntas e perguntaram qual delas eu achava que seria a minha m�e. Apontei a Das Dores e s� ent�o fiquei sabendo que ela realmente n�o era minha m�e. Fiquei triste”, revela.
Toninho n�o culpa a m�e verdadeira por ter se dedicado mais a visitar os filhos que nasceram do outro lado da col�nia, frutos de outra rela��o. Criado no educand�rio Oleg�rio Maciel, em Varginha, sente mais m�goa por ter sido impedido de frequentar a escola normal, em fun��o do preconceito. Era tachado de “filho de leprosos, filho de dedinhos, filho de p� torto”. Hoje, dedica-se com todas as for�as a cuidar da pr�pria fam�lia – a mulher e a filha de 9 anos, estudante da 5ª s�rie. “O que n�o tive para mim quero dar a ela: carinho e uma boa faculdade”, diz. “No orfanato, nunca pude sentir o colo de minha m�e. Calor, era s� de pano”, lamenta.
Desespero, fuga e castigo
“No dia da visita, minha irm� conseguiu contrabandear o retrato da nossa m�e por baixo da cerca. Tenho a foto guardada at� hoje. S� assim lembro do rosto da minha m�e, Maria Piedade da Silva, Maria Piedade da Silva”, revela Dad�, repetindo diversas vezes “Maria Piedade da Silva”, como se fosse esquecer o nome da pr�pria m�e, a quem mal conheceu. Aos 5 anos, Dad� organizou uma fuga em massa da pupileira. Incitou um grupo de pequenos a pularem o muro e irem a p� at� a col�nia. N�o foram muito longe. “S� queria ir para casa”, diz. A tentativa lhe valeu uma surra e a inscri��o de “muito rebelde e agressiva” na ficha de registro da institui��o, � qual teve acesso meio s�culo depois, ao voltar ao orfanato onde passou parte da inf�ncia.
No quartinho dos fundos do orfanato, hoje transformado em creche municipal, est�o armazenadas caixas com milhares de fichas de ex-internos. Cada uma delas vai servir como prova na hora de reivindicar o pagamento de indeniza��o aos filhos separados pelo governo. Seus pais, ex-internos de hospitais-col�nia de hansenianos isolados compulsoriamente at� 1986, j� est�o recebendo pens�o federal vital�cia, no valor de R$ 884 mensais. “O Brasil tem uma d�vida para com essas pessoas. Muitas n�o conseguiram se reintegrar depois em sociedade e seguir vida normal”, alerta Artur Cust�dio, presidente nacional do Mohan, que este ano lan�ou a bandeira dos filhos separados pelo isolamento compuls�rio.
Em nome do sofrimento de Ant�nia Barroso, moradora da Col�nia Santa Izabel, mais de 6 mil ex-internos de hospitais-col�nia submetidos ao isolamento compuls�rio j� receberam cerca de R$ 200 milh�es do INSS, desde a edi��o da Medida Provis�ria 373, de 2007. Aos 77 anos, Ant�nia Barroso � a personagem da hist�ria da “mo�a que estava gr�vida e a pol�cia sanit�ria a tirou de casa e a levou para o lepros�rio. O marido se suicidou, e a filha, quando nasceu, foi retirada dela imediatamente e colocada num dispens�rio, orfanato cont�guo ao sanat�rio. As m�es s� podiam ver os filhos pelos vidros, sem ter contato. A filha desapareceu, e ela s� a reencontrou 35 anos depois”. Por meio desse relato, o secret�rio da Presid�ncia da Rep�blica de Lula, Gilberto Carvalho, ainda no cargo, convenceu o ex-presidente a receber uma comitiva de 150 hansenianos, que chegou de surpresa a Bras�lia, sem marcar hor�rio na agenda.
Tocado por depoimentos como os de Ant�nia, Lula deu prazo de 20 dias para que sua equipe preparasse medida provis�ria em benef�cio dos ex-internos das col�nias de hansenianos. Em 40 dias, os primeiros ex-pacientes passavam a receber a pens�o federal. “Tirei retrato com o Lula. Ele me abra�ou tr�s vezes”, confessa Ant�nia, que se internou em 1960 e, em 1962, j� estava curada da doen�a, restando apenas dois dedos atrofiados na m�o direita, al�m do semblante cansado. “Sofri tanto que at� esqueci”, conclui.
Doen�a tem cura h� 70 anos
Considerada a mais antiga doen�a da humanidade, a hansen�ase � caracterizada pela presen�a de feridas no corpo do enfermo, que podem provocar deformidades f�sicas na fase aguda. � transmitida pela respira��o, por meio de contato �ntimo e prolongado com o portador do bacilo de Hansen. A doen�a tem cura desde 1940. No Brasil, o tratamento da poliiquimioterapia (PQT) � simples e oferecido gratuitamente nos postos de sa�de. A doen�a j� deixa de ser transmitida na primeira dose do medicamento, que mata 90% dos bacilos, mas o tratamento n�o pode ser interrompido. Dura, em m�dia, seis meses.