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Estado de Minas

A matriarca do sert�o

Historiadoras revelam a verdadeira face de Maria da Cruz, que se tornou uma lenda no Norte de Minas ao comandar sedi��o contra impostos. Presa pela coroa Portuguesa, se livrou de degredo na �frica


postado em 01/12/2012 00:12 / atualizado em 01/12/2012 07:57

Livro mostra o poder da sertanista, misteriosa mulher que liderou sangrenta rebelião em Minas(foto: Divulgação/Autêntica)
Livro mostra o poder da sertanista, misteriosa mulher que liderou sangrenta rebeli�o em Minas (foto: Divulga��o/Aut�ntica)
No sert�o brasileiro do s�culo 18, as leis eram escritas com pistolas, bacamartes e espingardas. Mandavam os grandes propriet�rios de terra, que mantinham bandos armados e pareciam ignorar o fato de serem vassalos do rei de Portugal. Ladr�es e criminosos de toda sorte cometiam delitos sem qualquer puni��o. Nesse ambiente viril, no rude Norte de Minas, ergueu-se Maria da Cruz. Dona de patrim�nio invej�vel, ela foi a �nica mulher entre os l�deres de uma rebeli�o que atacava o governo e rejeitava a cobran�a de um imposto. Um novo livro revela detalhes sobre a personagem, cuja misteriosa biografia continua a intrigar os historiadores.


Maria da Cruz Porto Carreiro sobreviveu ao tempo como uma figura amb�gua. Por um lado, alguns memorialistas a descrevem como uma pessoa cruel, que recebeu a alcunha de Maria da Cruz da Perversidade. Maltratava seus escravos e, para n�o remunerar servi�ais, chegava a mat�-los e mandar que fossem jogados no rio. Por outro lado, a imagem que se tornou mais conhecida foi aquela tra�ada por Diogo de Vasconcellos. Na obra Hist�ria m�dia das Minas Gerais, publicada em 1918, a mulher aparece como inteligente e muito generosa. “Era ela quem sustentava os enfermos e os inv�lidos” e quem educava os pequenos, “pagando os mestres de leitura, de m�sica e de of�cios”, narra Vasconcellos.

N�o � nenhuma dessas duas personagens a que surge no rec�m-lan�ado livro D. Maria da Cruz e a sedi��o de 1736 (Aut�ntica Editora), escrito pelas historiadoras Angela Vianna Botelho e Carla Anastasia. Com base em exaustiva pesquisa em arquivos no Brasil e em Portugal, onde encontraram documentos in�ditos, como o codicilo de Maria, as autoras conseguiram responder a algumas das in�meras interroga��es que cercam a protagonista. Tamb�m chegaram mais perto de descobrir qual o papel exercido por ela na sanguinolenta revolta desencadeada naquele ano, uma das mais importantes ocorridas em Minas durante o per�odo colonial e talvez a mais violenta de todas. A obra defende a tese de que, embora inicialmente manobrado pelos senhores rurais, o levante acabou virando um vale-tudo de objetivos imprecisos.

PODEROSA
A nebulosa Maria da Cruz fazia parte do grupo dos ricos e poderosos. Em data desconhecida, ela nasceu �s margens do Rio S�o Francisco, na Vila do Penedo, atual cidade de Penedo, na ent�o comarca de Alagoas, pertencente ao bispado de Pernambuco. Assim como a maior parte das mulheres do seu tempo, Maria nunca aprendeu a ler ou escrever, segundo declarou em seu testamento, publicado na �ntegra pela primeira vez. A descoberta das historiadoras contradiz a vers�o de Vasconcellos, segundo o qual ela era culta e havia sido educada por irm�s carmelitas. “N�o achamos nenhum documento que sustente essa descri��o, que ele pode ter colhido de algum relato oral”, diz Angela.

Cat�lica, a mulher se casou na igreja com o paulistano Salvador Cardoso de Oliveira, tamb�m de fam�lia abastada. Os caminhos entre Bahia e Minas aos poucos eram ocupados por ro�as, fazendas de gado e arraiais. No final do s�culo 17, em uma partilha de terra para sertanistas, Salvador demarcou o quinh�o que lhe havia cabido, �s margens do S�o Francisco, no S�tio das Pedras, que atualmente se localiza no munic�pio de Pedra de Maria da Cruz, no Norte de Minas, a 600 quil�metros de Belo Horizonte. O casal, que morava nesse s�tio, deixou prole numerosa: quatro var�es e duas mo�as, Maria e Catarina. Dois filhos, Matias e Pedro, tamb�m viraram grandes propriet�rios de terras. Outros dois seguiram carreira eclesi�stica, ordenados cl�rigos seculares na Bahia.

Antes dos acontecimentos de 1736, a trajet�ria de Maria da Cruz aparece nas entrelinhas de documentos oficiais ligados, quase sempre, aos homens de sua fam�lia ou � pr�pria sedi��o. Depois de Salvador morrer, em 1734, a vi�va, seguindo as leis do reino, passou a gerir todo o patrim�nio do falecido. Sabe-se que no s�tio construiu-se “opulenta fazenda”, que tinha engenhos e pastos, e abrigava viajantes. Nas Pedras, o casal ergueu a Capela de Nossa Senhora da Concei��o, com altares devotados a Santo Cristo e a Santa Rita. Nas vizinhan�as do lugar, n�o havia “criminosos que se punisse” e viajantes eram constantemente assaltados e mortos com crueldade, segundo documento oficial de autor desconhecido.

De acordo com o mesmo relat�rio, a fam�lia de Maria da Cruz tinha pr�tica nada crist�s. A matriarca comprava por pre�os baixos, para lucrar com a revenda, “a maior parte dos ouros” que eram furtados “dos direito reais”. Antes de rezar uma missa, um dos filhos cl�rigos teria a�oitado “com as suas pr�prias m�os” a mulher de um escravo dom�stico. Outro filho, “por usar de uma mulher casada”, foi perseguido pelo marido tra�do, que acabou morrendo, “dizem que de veneno” dado pela pr�pria mulher. O documento narra ainda que escravos pertencentes a Pedro teriam assassinado um comboeiro, que, para enterr�-lo, foi preciso “ajuntarem-se os peda�os de seu corpo”.

Levante agita o Vale do S�o Francisco

A principal motiva��o da sedi��o de 1736 foi uma medida impopular da Coroa portuguesa. At� ent�o, os mineradores pagavam o quinto – imposto que consistia na quinta parte do ouro encontrado. Por n�o ser �rea mineradora, o sert�o sempre havia sido isento do quinto. Os sertanejos recolhiam apenas os d�zimos (10% sobre a produ��o da terra) e as contagens, pagas nas passagens, as alf�ndegas da �poca. O governo decidiu mudar esse sistema de tributa��o. O sertanejos tamb�m passariam a recolher uma certa quantidade de ouro. A taxa��o “incidia de forma mais contundente sobre os pobres do que sobre os ricos, j� que os escravos pagavam a mesma quantia”, independentemente dos resultados da extra��o do ouro, explicam as historiadoras.

O primeiro motim eclodiu em mar�o de 1736, no Arraial de Capela das Almas. O segundo movimento iniciou-se em princ�pios de maio no s�tio de Montes Claros, junto ao Rio Verde. Em julho, os amotinados entraram no Arraial de S�o Rom�o em um total de cerca de 900 homens, uns a p�, outros a cavalo, com “mais de 500 arcos e flechas”, isso �, mais de 500 �ndios cativos prontos para a briga. O vale-tudo come�ou em uma segunda fase do conflito, segundo as historiadoras. Houve muitas disputas armadas e atos de vandalismo. Mulheres foram estupradas, fazendas incendiadas e seus propriet�rios assassinados. “O movimento tem duas faces: a dos potentados, que depois saem do movimento e fica o povo, formado por mesti�os, mamelucos, escravos, vaqueiros, pescadores, gente sem profiss�o. Eles simplesmente resolvem instalar um governo do povo”, explica Carla.

Os tumultos foram controlados ainda em 1736. Maria da Cruz foi presa, primeiro na cadeia de Vila Rica, depois, como as autoridades temessem que fugisse, por ser influente e poderosa, foi transferida para uma carceragem no Rio de Janeiro. O que se conseguiu provar foi que a mulher teria dado a ordem para “quando havia de ir o primeiro levante”, ou seja, para o in�cio da revolta. Condenada a pagar 100 mil r�is e a seis anos de desterro na �frica, ela teve sua pena comutada em 1739. De volta � casa das Pedras, provavelmente assumiu a ger�ncia de seus bens e da fazenda. Morreu em 23 de junho de 1760. Se seus dois filhos padres atenderam suas determina��es, seu corpo amortalhado foi sepultado na mesma l�pide de seu marido.

Um r�quiem tardio foi criado por Diogo de Vasconcellos: “Na hist�ria de Minas, h� mulheres que se imortalizaram, fosse pela sua beleza ou por seus talentos, fosse tamb�m por mart�rio sacrossanto. Mas diga-nos agora se alguma foi, mais do que esta, digna de mem�ria em nossos fastos. O tranquilo esquecimento, a causa melhor da morte, apagou seu nome conservado apenas no velho e obscuro arraial, � beira do grande rio”.

Foi essa mulher pintada pelo historiador – cuja “t�mpera varonil n�o lhe tirava a natural do�ura, e as maneiras de seu trato, real�adas pela posi��o, atra�am-lhe o afeto dos parentes e o respeito de todos” – que atraiu a historiadora Angela.Na pesquisa, foram consultados os acervos da Torre do Tombo e do Arquivo Hist�rico Ultramarino, em Portugal, e de diversas institui��es brasileiras, como o Arquivo P�blico Mineiro. As historiadoras n�o encontraram a hero�na descrita por Vasconcellos, que chegou a dizer que Maria era “alta, complei��o robusta, cabelo branqueando, olhos negros”. “N�o achei uma �nica linha comprovando essas caracter�sticas. Mesmo assim, ela continua me fascinando. Era forte, lutava pelos interesses dela e de sua fam�lia”, diz. Angela. Ela espera que, um dia, a personalidade de Maria da Cruz seja desvendada.

Linha do tempo
– 1735: A coroa portuguesa cria novo imposto para os sertanejos, o que causa descontentamento popular
– 1736: Eclode a sedi��o, com conflitos armados, assassinatos, estupros e atos de vandalismo, como o inc�ndio de fazendas
– 1736: Maria da Cruz � presa e condenada a desterro na �frica, por ter dado a ordem para o in�cio da revolta
– 1739: Maria dita seu testamento, onde afirma que n�o sabia ler nem escrever, contradizendo vers�o de historiador
– 1756: Ela dita seu codicilo, em que reitera o testamento. O documento, in�dito, foi descoberto pelas autoras do livro rec�m-lan�ado
– 1760: Morre e � sepultada, provavelmente, na mesma l�pide do marido

 


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