M�rcia Maria Cruz

Um ba� de madeira, pintado de amarelo, na Rua Cristina, no Bairro Santo Ant�nio, na Regi�o Centro-Sul de Belo Horizonte, guarda parte da mem�ria do carnaval recente de Belo Horizonte. Tecidos transparentes, coroas de reisados do congado, penas amarelas, uma saia feita de guarda-chuva, colares e fitas de todas as cores s�o as portas para o universo particular de Augusto Carvalho Borges, o Guto, de 33 anos. Ao receber o Estado de Minas, ele topou abrir o ba�, desde que fosse ressaltado o car�ter espont�neo, de luta e coletivo da folia que come�ou a se delinear em 2009. A camisa rosa do Tarifa Zero contrasta com os cabelos descoloridos, que comp�em com o bigode o rosto que foi visto, nos quatro dias de carnaval, em toda a cidade - da Rua Leopoldina, de onde sai o bloco Mam� na Vaca, no Bairro Santo Ant�nio, �s ruas ainda n�o urbanizadas das ocupa��es Esperan�a e Vit�ria, por onde passou o bloco Filhos de Tcha Tcha.
Seja pelas fantasias que usou , seja por ser uma figura acolhedora nos blocos que deram in�cio � retomada do carnaval, Guto Borges atrai aten��o e os flashes. O desejo de misturar e inventar o leva para as ruas e o transforma em refer�ncia na constru��o coletiva de um dos carnavais mais politizados do Brasil. E � de sua personalidade e atua��o profissional o desejo de misturar. De fam�lia de classe m�dia, ele interage com a periferia tendo como anfitri�es seus alunos do projeto Caput, termo grego que significa cabe�a. E n�o � mera coincid�ncia que os cabelos de Guto sejam vistos como s�mbolo da troca a que ele se prop�e com a cidade: da cor de muitos jovens de comunidades, o loiro � a marca de irrever�ncia e descontra��o.
Primeiro regente de muitos dos blocos, com Chaya Vasquez, ele foi um dos primeiros a resgatar as marchinhas que estavam na mem�ria de quem brincou em outros tempos, mas que estavam longe da l�ngua de boa parte da juventude belo-horizontina, j� acostumada a viajar no per�odo. Ele tamb�m costumava viajar, mas, em 2008, passou o carnaval na quadra do bloco caricato Inocentes, em Santa Tereza. Ouviu o chamado dos tambores.
� imposs�vel n�o notar Guto na multid�o, mas individualismo � uma palavra que n�o existe em seu dicion�rio. H� sete carnavais, ele se junta a uma turma de amigos para pesquisar letras, fazer arranjos para baterias, reger ou tocar em um dos blocos que triplicaram a quantidade de p�blico este ano. A primeira turma se reuniu em 2009 para criar o Tico Tico Serra Copo, que se mant�m fiel � ideia de ser itinerante e, a cada ano, estar em um lugar da cidade. Este ano, ele saiu no Bairro S�o Geraldo, na Regi�o Leste. “Foi tudo muito por acaso. Morava em uma casa na Rua Ramalhete. Na sexta-feira, eu e alguns amigos conversamos para fazer o bloco no domingo”, lembra. Eram 40 pessoas. No mesmo ano, descobriu que outros amigos estavam tamb�m se articulando para o Bloco do Peixoto.
Em 2010, Guto mudou-se para o Santo Ant�nio e, por sugest�o do tio, que � seu hom�nimo, fez uma brincadeira com a vaca da Rua Leopoldina. “J� cheguei causando”, lembra. Os primeiros anos n�o foram f�ceis. Guto lembra que, muitas vezes, as manifesta��es de ruas eram reprimidas. “Na �poca, havia uma determina��o de que os bairros que abrigassem o carnaval seriam multados.” Como historiador, Guto recorda que a cidade j� teve um carnaval forte, mas, a partir da d�cada de 1980, come�ou a arrefecer at� por falta de estrutura dos servi�os p�blicos. Ele lembra que era comum dar f�rias para servidores, como policiais e garis, em fevereiro.
Todo ano, ele come�a a folia com a abertura do ba�. Este ano, foi em12 de janeiro, quando ocorreu a primeira Praia da Esta��o, um movimento que defende a ocupa��o dos espa�os p�blicos. “� quando come�am os ensaios e o pessoal da bateria se reencontra. Vai todo mundo. O pessoal da periferia desce, os moradores de rua. � um m�s muito intenso”, diz. Depois n�o parou mais. No pr�-carnaval, saiu no Mam� na Vaca, nos blocos Tarifa Zero, Comum Luiz Estrela, participou do lan�amento de um vinil com marchinhas de carnaval. Tamb�m foi convidado para participar do bloco Cuequinhas do Papai, na Avenida Brasil. “S�o mulheres que lembram as Bacantes de Niquelina, jovens rebeldes que, em carnavais passados, cortavam os cabelos e sa�am com as cuecas dos pais, muitos deles militares”, lembra.
Da integra��o com as foli�s de outros carnavais, ganhou de presente uma cueca toda bordada com comprimidos para colocar no cabelo - pe�a que j� integra o ba�. A maratona se intensificou na quarta-feira que antecedeu o carnaval, quando foi um dos milhares de foli�es do Chama o S�ndico. Na quinta, saiu no bloco da Bicicletinha. Na sexta, planejava ir ao Tchanzinho Zona Norte, mas um pis�o que recebeu no p� o deixou de molho. No s�bado, foi um dos regentes da bateria do Ent�o, Brilha!, que sai da Rua Guaicurus e se encontra com a Praia da Esta��o, na pra�a de mesmo nome. No domingo de manh�, foi uma das vozes do Pena de Pav�o de Krishna, quando milhares de pessoas entoaram um dos mais tradicionais cantos do carnaval de BH: “� Bel�, afox� todo mundo andando a p�. No carnaval, te conheci. Transcendental, te segui”. � tarde, foi um dos Filhos de Tcha Tcha nas ocupa��es Esperan�a e Vit�ria. Os t�nis tomados pelo barro das ruas de terra que ficaram enlameadas com a chuva tamb�m s�o pe�as do ba�. Na ter�a-feira de carnaval, saiu no Peixoto e � noite integrou a bateria da Escola de Samba Cidade Jardim. Na quarta de cinzas, no Manjeric�o, come�ou a fechar o ciclo que est� para se encerrar, quando enfim as fantasias voltam para o ba� amarelo.