Maria Eni Paes Sales Costa, que ficou vi�va poucas horas antes de dizer “sim” numa capela de Jaboticatubas, na Grande BH, foi acolhida de forma integral pelos pais e irm�os. A f� infinita salvou do sofrimento a dona de casa Margarida Maria Barreto Pereira ap�s o acidente com o filho Leonardo, que retornava a Belo Horizonte do r�veillon em B�zios (RJ). E Maria Rosa Gertrudes, moradora do Bairro Bra�nas, na Regi�o da Pampulha, na capital, entendeu que a “palavra de Deus” � o ant�doto para o momento mais dif�cil e os anos que se seguem � morte da m�e.
O vestido da noiva

A Capela de Nossa Senhora do Ros�rio j� estava quase toda enfeitada, as comidas sendo preparadas e o entra e sai de gente era grande na casa dos pais da noiva, em Jaboticatubas, na Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte. Mas nada neste mundo tirava o sossego da noiva de 23 anos, que se casaria no religioso �s 21h com Rodrigo C�sar Montressor, jovem que gostava de fazer trilhas de moto nas estradas da Serra do Cip�. “Muita coisa se apagou na minha mem�ria, e, para ser sincera, nem lembro, agora, o dia e o m�s em que tudo ocorreu”, diz com serenidade Maria Eni Paes Sales Costa, hoje com 49 anos e dona de um s�tio e restaurante na zona rural do munic�pio.
Na casa da m�e, dona Cec�lia, em Jaboticatubas, Maria Eni recorda que a pior das not�cias chegou por volta das 15h: “T�nhamos nos casado no civil, tr�s dias antes, e Rodrigo foi de moto � casa dos pais, na localidade de Taboquinha, na Serra do Cip�. Mas estava demorando muito a voltar, nunca mais chegava. At� que uma vizinha veio aqui e perguntou se eu sabia o que tinha acontecido, pois o movimento era grande na cidade”.
Ao ouvir da vizinha que Rodrigo tinha morrido num acidente de moto, a noiva pediu aos pais, de imediato, que distribu�ssem as comidas da festa. “Fiquei sem ch�o, desesperada. Meu sonho era me casar na Capela do Ros�rio. A noite do casamento se transformou em vel�rio. Rodrigo machucou tanto o rosto que o caix�o precisou ser lacrado. Do�a muito em mim, do�a a alma, algo que s� a gente entende”, afirma Maria Eni, que, passadas mais de duas d�cadas e com a vida refeita, n�o deixa de se emocionar. “O vestido de noiva foi doado � par�quia e o dinheiro da venda usado em obras sociais.”
PESSOA MELHOR Os primeiros meses n�o foram f�ceis, o sol n�o tinha mais brilho, o dia era apenas escurid�o. “Ficava a maior parte do tempo no quarto, pensava que n�o havia no mundo algu�m mais triste do que eu. E vinha a pergunta: Por que comigo?”, diz Maria Eni, que herdou o nome Maria da av� paterna italiana e Eni (Enny, em alem�o) da av� materna, nascida na Alemanha. Com o correr dos dias, viu que tinha dois caminhos: ficar chorando ou virar a p�gina. E foi ent�o, com o nascimento do sobrinho e afilhado Eduardo, um m�s depois da trag�dia, que viu o mundo voltar a sorrir. “Eu me apeguei demais ao Eduardo. Meus irm�os Patr�cia, Giza e Viviane foram fundamentais desde ent�o”, diz a fazendeira.
Devota de Nossa Senhora da Piedade e Nossa Senhora do Perp�tuo Socorro, Maria Eni virou a p�gina e est� certa de que se tornou uma pessoa melhor. De in�cio, conseguiu a anula��o do casamento civil e voltou a trabalhar. Mais tarde, casou-se novamente e se separou; teve o filho Bernardo, de 11 anos, de um relacionamento; e em maio de 2016 se casou com tudo o que tinha direito com Roberto. “Ele � minha luz, um homem caridoso, que trabalha com a terra. Acho que vamos ficar juntos e velhinhos. � para o resto da vida. Fam�lia � tudo na vida”, afirma, abra�ada � m�e Cec�lia e ao filho �nico, Bernardo.
Respingos de afeto

Na porta da cozinha, Maria Rosa Gertrudes, de 62 anos, segura, com carinho, a �nica lembran�a f�sica que guardou da m�e, al�m da carteira de identidade e da certid�o de nascimento. Com os olhos brilhando, ela mostra a blusa de linho branco com bolas verdes e aponta um detalhe importante na costura: “Veja a bainha em p� de pinto que ela fez.” Logo depois, cobrindo parte do rosto com a pe�a, Maria Rosa d� um sorriso discreto e diz sentir no tecido o cheirinho de dona Catarina. “A blusa est� pendurada no meu arm�rio h� 26 anos. Nunca lavei. Tem as marcas do guardado”, observa a dona de casa moradora do Bairro Bra�nas, na Regi�o da Pampulha, em Belo Horizonte.
Casada com o aut�nomo Jos� – “aqui em casa somos Maria e Jos�” –, a m�e de quatro filhos e av� cinco vezes estende a blusa sobre a mesa da varanda e faz quest�o de mostrar outro detalhe. “Essas manchinhas amarelas s�o da laranja que mam�e chupou quando est�vamos no carro a caminho do hospital. Ela fez uma cirurgia de cora��o, p�s ponte safena, teve hemorragia...” O sil�ncio do fim da frase � cortado pelas brincadeiras da cadelinha Morena e da gata Juju, que se enroscam, como velhas amigas no ch�o da varanda e distraem a aten��o da dona da casa. A m�e Catarina, natural de Tocantins, na Zona da Mata mineira, morreu em 10 de maio de 1991, um domingo. Era dia das m�es.
Maria Rosa recorda que a m�e tinha olhos verdes, o mesmo tom das bolas da blusa que tantas recorda��es trazem. “Foi uma perda horr�vel. Para mim, acabou o dia das m�es. Mesmo sendo uma data m�vel, pois � comemorado no segundo domingo de maio, acabou a gra�a. Na casa, nunca mais houve almo�o comemorativo, muito menos presente para homenagear Maria Rosa. “Quando algum filho inventava de comprar algo para mim, eu j� falava que de jeito nenhum. Ficou tudo muito triste”, revela. Como resposta, Maria Rosa come�ou a falar para os filhos que todo dia � dia as m�es. E n�o se tocou mais no assunto.
LI��ES At� hoje Maria Rosa se enternece ao falar do jeito doce da m�e e sabe ser imposs�vel esquecer ou superar tal perda. Mas, evang�lica, encontrou for�as na palavra de Deus, “pois sozinho a gente n�o d� conta, n�o” e na li��o insuper�vel de que “amor de m�e � maravilhoso, eterno”. Em resumo, “fica registrado para sempre”.
No ch�o da varanda, Juju e Morena continuam a fazer a festa e a gatinha se destaca mais, exibindo o focinho com uma mancha escura. Num minuto, est� no colo de Maria Rosa e em seguida d� um salto, se alojando no meio dos vasos de plantas. Maria Rosa dobra a blusa da m�e com o cuidado costumeiro e confessa que nunca mais chorou. “Mas quando morre a m�e de algu�m, n�o tem como n�o ficar comovida”, diz baixinho, quase em segredo, com o tom de voz que transmite uma grande saudade.
Noite de vig�lia

A virada do ano, de 1999 para 2000, criou um clima de festa sem igual e tamb�m de expectativa: era uma mudan�a de tempo muito especial, embora acompanhada do temor de que os computadores do mundo inteiro entrassem em pane com o tal “bug do mil�nio”. Nada demais aconteceu nos aeroportos, nas empresas ou nos hospitais e a vida seguiu normalmente. Para celebrar a data, Leonardo Barreto Pereira, de 23 anos, viajou para B�zios (RJ) com dois amigos, um deles dirigindo o carro. Na viagem de volta, em 4 de janeiro, perto de Barbacena e sob chuva forte, o ve�culo bateu de frente com um �nibus. Dois morreram no local e Leonardo foi conduzido ao Hospital de Pronto-Socorro Jo�o XXIII, em Belo Horizonte. Tinha morte cerebral.
Moradora do Bairro Anchieta, na Regi�o Centro-Sul de Belo Horizonte, e m�e de seis filhos, a dona de casa Margarida Maria Barreto Pereira aguardava com alegria a chegada de Leonardo e a formatura do outro filho, Andr�, que conclu�a o curso de medicina. “Eu estava exatamente entregando os convites, quando recebi a not�cia, pelo telefone, do acidente. “Cada um tem sua hist�ria. Na mesma semana, participamos da missa de formatura do Andr� e da de s�timo dia de Leonardo”, recorda-se.
Para suportar a perda do quinto filho, Margarida Maria, vi�va, hoje com 74 anos, se amparou na f� e nas ora��es. “Tenho comigo a for�a de Deus”, resume. T�o logo soube do ocorrido, ela foi para o hospital e passou a noite, em vig�lia, rezando ao lado do filho, que estava em coma. “Fiquei ali sozinha, at� as 8h, pedindo a Deus que salvasse a alma do meu filho. Em um momento, ele chegou a estremecer todo”, conta a dona de casa com uma tranquilidade que impressiona e comove ao mesmo tempo. “Meu marido sofreu demais e dizia que eu tinha muita calma. Mas tenho � f� demais”, afirma.
B�N��OS Na varanda do apartamento, olhando as bicicletas dos 12 netos – “eles s�o b�n��os de Deus” – Margarida Maria diz que desconhecia ter tanta for�a. J� na sala, ela mostra, num canto, a imagem de Nossa Senhora de F�tima, um presente recebido na primeira comunh�o e testemunha de muitas hist�rias em mais de seis d�cadas. “Participo de grupo de ora��es, vou todos os dias � igreja, enfim, estou sempre presente nas atividades da Par�quia de S�o Mateus”, observa Margarida Maria, segurando um porta-retratos com a foto de Leonardo, na qual ele carrega a sobrinha e afilhada Beatriz, que tem agora 17 anos.
Uma das grandes emo��es nesses �ltimos anos foi a visita � Serra da Piedade, em Caet�, na Grande BH, onde est� a imagem da padroeira de Minas. “Subi a serra debaixo de uma chuva danada. Encharquei. Mas quando estava diante da imagem de Nossa Senhora da Piedade, fiquei encantada. E me vi no lugar dela. Comecei, ent�o, a pensar em quantas mulheres sofreram com a perda de um filho.”