Bastidores da restaura��o: conhe�a a ci�ncia que brilha na via-sacra de Portinari
Respeito aos originais sustentou o trabalho de quatro anos da equipe multidisciplinar que permitiu a volta da obra � Igrejinha da Pampulha. Mas n�o faltaram exames sofisticados
postado em 20/10/2019 06:00 / atualizado em 20/10/2019 07:23
Devolvida ao templo, a obra de Portinari j� pode ser apreciada desde 4 de outubro nas paredes da Igreja S�o Francisco de Assis. Processo de restauro pode virar livro. S� falta patroc�nio
(foto: Ed�sio Ferreira/EM/D.A Press)
Foram quatro anos de trabalho divididos entre pesquisas documentais e pr�tica no laborat�rio, equipe multidisciplinar dedicada, busca de exames sofisticados e muito amor pela arte e sua conserva��o. Os 14 quadros da via-sacra de autoria de C�ndido Portinari (1903-1962), retornaram � Igreja S�o Francisco de Assis, na Pampulha, em Belo Horizonte, no dia 4, data da reabertura do templo, mas o processo de restauro das obras-primas vale um livro daqueles que surpreendem, encantam, emocionam e revelam descobertas para valorizar ainda mais o conjunto moderno reconhecido como patrim�nio da humanidade.
O servi�o realizado no Centro de Conserva��o e Restaura��o de Bens Culturais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (Cecor/EBA/UFMG) transcorreu no maior sigilo e em seguran�a – e s� agora os detalhes e bastidores s�o revelados. “Entregamos � sociedade o resultado de atividades que a universidade proporciona com a uni�o de pesquisa, ensino e extens�o ligada � ci�ncia e � arte”, diz a diretora do Cecor, Bethania Veloso. Criado h� mais de 40 anos, o centro se tornou refer�ncia internacional e foi escolhido pela Arquidiocese de BH, via Memorial, para a restaura��o das telas recriando os passos da Paix�o de Cristo.
No laborat�rio localizado no c�mpus da Pampulha, Bethania reuniu parte da equipe t�cnica que coordenou e falou do projeto iniciado bem antes da retirada dos quadros da igreja. Esse, ali�s, consiste em um cap�tulo especial. Em 18 de setembro de 2017, sob escolta da Pol�cia Militar do Meio Ambiente, o acervo foi conduzido � reserva t�cnica e, desde ent�o, nunca mostrado. “A interven��o foi minimalista, sem aplica��o de produtos qu�micos e com o m�nimo poss�vel de interfer�ncia. Respeitamos os originais, a t�cnica elaborada de Portinari e mantivemos, por exemplo, as microfissuras e o borbulhamento encontrados em todas as telas, bem como a porosidade por serem da �poca da cria��o”, explica Bethania.
Em 2015, nas primeiras negocia��es com a Arquidiocese de BH, � qual a igreja est� vinculada, os especialistas do Cecor come�aram os estudos sobre a via-sacra, cientes da complexidade do trabalho e por se tratar de um bem cultural de Belo Horizonte – no ano seguinte, o conjunto moderno da Pampulha foi reconhecido pela Organiza��o das Na��es Unidas para a Educa��o, a Ci�ncia e Cultura (Unesco) como patrim�nio da humanidade. Ao ser batido o martelo sobre a restaura��o, a equipe se debru�ou sobre os diagn�sticos feitos pelas tr�s inst�ncias de tombamento dos monumentos: Instituto do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico Nacional (Iphan), Instituto Estadual do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico de Minas Gerais (Iepha-MG) e Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), via Funda��o Municipal de Cultura. De posse de seu pr�prio diagn�stico, a equipe do Cecor viu que as informa��es estavam em sintonia – “batiam”, resume a diretora.
Equipe reunida: Luiz Costa; Cl�udia Amorim; Alessandra Rosado; a diretora do Cecor,
Bethania Veloso; Rita Lages. De p�: Amanda Cordeiro, Tereza Moura e Moema Queiroz
(foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
SARRAFIADO
Na lista de degrada��o do acervo, havia manchas causadas por umidade, modula��o do suporte, descolamento da pintura e muita sujeira causada por excrementos de insetos, fato que surpreendeu a coordena��o da equipe formada por professores de conserva��o-restaura��o, alunos de gradua��o e p�s-gradua��o da �rea, e, na sequ�ncia, de profissionais da Escola de Medicina da UFMG. Curiosamente, o que poderia ser compreendido como deteriora��o se revelou caracter�stica da obra, por isso foram mantidas as microfissuras, os borbulhamentos e a porosidade. Como os quadros medindo 62cm x 62 cm tinham sido restaurados no Cecor em 1991, e toda a mem�ria estava dispon�vel, a equipe recorreu aos documentos a fim de entender melhor todo o processo e enfrentar os desafios.
No laborat�rio do Cecor, que mudou a din�mica para receber a obra de Portinari e ainda exibe resqu�cios da mobiliza��o, um equipamento port�til de raios X entrou em a��o, norteando caminhos. Depois, na Faculdade de Medicina, o aparelho de tomografia completou o servi�o, especificamente no quadro nº 9, Jesus cai pela terceira vez. Por meio das chapas de raios X, a equipe detectou o suporte usado pelo artista, o compensado sarrafiado, e n�o o do tipo naval, comum na d�cada de 1940. Nesse trabalho do Cecor, o compensado sarrafiado � mencionado pela primeira vez nos quadros da via-sacra, informa Bethania.
A partir dos exames, os especialistas decidiram n�o retirar as molduras, pois ficam t�o integradas �s pinturas, algumas com pregos, que seria um risco separ�-las. Tamb�m com a tecnologia, identificaram-se as v�rias t�cnicas usadas por Portinari, entre elas t�mpera a �leo, basicamente artesanal. “Houve muitos desafios, os quais foram superados com a reuni�o de metodologias de conserva��o. Do restauro, para se ter uma ideia, derivaram uma disserta��o de mestrado e um trabalho de conclus�o de curso (TCC) da estudante de conserva��o-restaura��o Tereza Moura, que se declara feliz pela oportunidade de trabalhar na pesquisa hist�rica e depois ali�-la � pr�tica.
O quadro n�mero 9, Jesus cai pela terceira vez, foi 'periciado' e revelou material usado pelo artista como suporte
(foto: Cl�udio Nadalin/Cecor/UFMG)
Reunida no laborat�rio e com o calhama�o de informa��es no caderno em espiral, a equipe n�o tem d�vida de que o resultado do restauro deve virar um livro – “s� falta o patroc�nio”, confessa Bethania, ao lado da estudante Tereza Moura, dos professores do Cecor Luiz Souza (qu�mico), Alessandra Rosado (autora de tese de doutorado sobre Portinari) e Amanda Cordeiro; da doutora em hist�ria da arte Rita Lages, e das restauradoras Moema Queiroz e Cl�udia Amorim. Na conversa com cada um deles, a emo��o permeia as frases. Se para Cl�udia o trabalho tem muito de li��o e privil�gio, para Moema, foi duplamente especial, pois atuou, em 1991, no primeiro restauro da via-sacra.
Alessandra Rosado ressalta que a interven��o ampliou o conhecimento sobre o artista e, com orgulho, lembra que s�o “obras mineiras, de grande import�ncia para o Brasil”. Ao lado, Rita considera o trabalho “instigante e emocionante”, tanto pelo car�ter transdisciplinar quanto pela troca de informa��es entre os v�rios profissionais envolvidos. J� Amanda observa sobre a oportunidade de estar t�o pr�xima do trabalho de Portinari, e Luiz Souza afirma que os quadros ganham sentido quando de volta ao templo. No final, todos concordam que o mais relevante do trabalho � poder devolver a obra ao acervo da Igreja da Pampulha e � comunidade.
Quadro passa por exame nos laborat�rios do Cecor, onde o trabalho foi realizado (foto: Cl�udio Nadalin/Cecor/UFMG)
HIST�RIA
Na Igreja S�o Francisco de Assis, Portinari foi respons�vel, al�m da via-sacra, pelos principais obras de ornamenta��o: internamente, o painel central, em t�mpera sobre argamassa, e os demais, em azulejos, e, na parte externa, dos pain�is, tamb�m azulejos, com base na vida do santo padroeiro da natureza. Os quadros foram pintados no ateli� do artista, no Rio de Janeiro, em 1945, e chegaram a BH dois anos depois. “Este � um trabalho que ainda n�o terminou, sempre vai ter continuidade”, acredita Bethania. Os servi�os de restauro foram custeados pela Arquidiocese de BH.
FESTA DA REINAUGURA��O
Primeira igreja em estilo modernista do pa�s, a S�o Francisco de Assis, reaberta em 4 de outubro durante cerim�nia presidida pelo arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, dom Walmor Oliveira de Azevedo, estava fechada desde novembro de 2017. As obras duraram um ano e tr�s meses. Os recursos federais, no valor de R$ 1,07 milh�o, vieram do PAC das Cidades Hist�ricas, com repasse do Instituto do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico Nacional (Iphan) � Prefeitura de BH. O acompanhamento t�cnico da obra ficou a cargo da autarquia federal, respons�vel pelo tombamento de todo o conjunto moderno da Pampulha, tamb�m protegido pelo Instituto Estadual do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico (Iepha) e Conselho Deliberativo Municipal do Patrim�nio Cultural de BH. Um dos maiores desafios durante a obra, conforme os engenheiros, foi conter as infiltra��es que acometiam o interior da igreja e incidiam sobre as obras de arte. O problema j� se manifestava havia muitos anos e houve interven��es anteriores em busca de solu��es. A identifica��o exata dos pontos de infiltra��o s� p�de ser feita depois da remo��o do forro – ap�s o in�cio da obra, e apresentou pontos n�o previstos, que levaram � altera��o da proposta inicial de interven��es.
1943-1945
Constru��o da Igreja S�o Francisco de Assis, que teve projeto do arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012)
1945
Os 14 quadros da via-sacra s�o pintados no ateli� de C�ndido Portinari, no Rio de Janeiro. Dois anos depois, o acervo chega a BH
1991
Quadros s�o restaurados no Centro de Conserva��o e Restaura��o de Bens Culturais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (Cecor/EBA/UFMG)
2017
Em 18 de setembro, sob escolta da Pol�cia Militar do Meio Ambiente, os quadros s�o retirados e levados para a reserva t�cnica do Cecor, na Pampulha, em BH
2019
Em 4 de outubro, a Igreja S�o Francisco de Assis � reinaugurada, e moradores e visitantes podem ver o acervo