
Com o isolamento social sob ataque, num momento em que a popula��o, em quarentena h� mais de duas semanas, come�a a demonstrar sinais de fadiga e t�dio, esta ser� uma semana decisiva para o enfrentamento da pandemia da COVID-19. “Os bons resultados do isolamento social acabam minando o pr�prio isolamento social: voc� n�o v� os hospitais lotados, n�o v� as UTIs sobrecarregadas, todas aquelas situa��es que n�o ocorrem exatamente por causa do isolamento. A� as pessoas come�am a sair �s ruas, a comprar os discursos negacionistas de quem desdenha da pandemia e tudo aquilo que mais se temia come�ar� a acontecer. Alguns me perguntam: “Ser� que no Brasil ser� diferente do que aconteceu nos outros pa�ses?”. Eu respondo com outra pergunta: “Por que seria?”.
A avalia��o � do m�dico epidemiologista R�mulo Paes, pesquisador titular em pol�tica de sa�de da Fiocruz Minas, que em 2009 coordenou o enfrentamento � gripe su�na em Minas. Tamb�m pesquisador honor�rio da Universidade de Sussex (Reino Unido) e ex-diretor (2012-2017) do Centro Mundial para o Desenvolvimento Sustent�vel do PNUD da ONU, Paes alerta para a import�ncia de que, nesta semana, uma a��o coordenada busque novas articula��es, renovando a continuidade do isolamento. Caso contr�rio, � grande o risco de caminharmos para o pior dos mundos: “Vamos perder vidas em decorr�ncia da sobrecarga do sistema de sa�de e n�o vamos preservar os empregos”, considera.
Uma a��o do estado mais contundente na prote��o social – que est� aqu�m do que pode ser feito e ainda n�o oferece as condi��es para que as popula��es menos favorecidas fiquem em casa – e medidas econ�micas que realmente sinalizem para um plano estrat�gico focado em enfrentar a recess�o econ�mica esperada s�o, na avalia��o do epidemiologista, fundamentais para a continuidade do isolamento social. H� ainda, a preocupa��o em n�o deixar que a narrativa da efic�cia terap�utica da cloroquina – ainda n�o confirmada – se torne est�mulo para que as pessoas desdenhem a gravidade da COVID-19.
“H� v�rios estudos, inclusive no Brasil, buscando aferir o seu potencial. O problema � que se a rede hospitalar entrar em colapso por excesso de demanda, a maioria dos pacientes n�o ter� atendimento. As pessoas morrer�o n�o apenas da COVID-19, mas tamb�m de outras doen�as que necessitam de atendimento hospitalar imediato. A grande quest�o � como organizar a fila dos casos mais complicados (em torno de 20%) nos servi�os de m�dia e alta complexidade, coisa que o debate em torno da cloroquina busca subverter”, diz ele. Confira entrevista exclusiva de Paes ao Estado de Minas.
O que a experi�ncia internacional com a pandemia ensina ao Brasil?
H� tr�s alternativas concomitantes de enfrentamento de um v�rus no in�cio. O controle dos infectados, e para isso precisa de exames massivos, o que nunca tivemos no Brasil. O isolamento social como forma de retardar a dissemina��o e possibilitar o atendimento nos hospitais; e a prepara��o dos hospitais para a sobrecarga. O isolamento social � um processo de longo prazo. Wuhan fez isolamento por 72 dias e levou duas semanas para suspender progressivamente o isolamento ap�s a n�o detec��o de casos novos. A China fez a detec��o em dezembro. O Brasil demorou, mas quando reagiu, o fez corretamente, estabelecendo o isolamento social. Mas essa � uma medida que demanda tempo e planejamento. A pandemia tem impacto em todas as esferas. E como afeta a sa�de? A dissemina��o � t�o r�pida, � t�o grande a demanda sobre o sistema de sa�de, que o incapacita para atendimento dos outros problemas. Al�m disso, parte da for�a de trabalho dos hospitais adoece. Em B�rgamo (It�lia), foi t�o dram�tico que foram mobilizados m�dicos de outros pa�ses – al�m de chamados outros profissionais com menor treino em sa�de, como bombeiros. Assim, quando h� sobredemanda nos hospitais, muitos v�o morrer n�o apenas pela COVID 19, mas por outras doen�as que necessitariam de atendimento, que n�o estar� dispon�vel por causa da lota��o dos hospitais. Por isso come�am a morrer pessoas de apendicite, de parto, de infarto e outros males. Um estudo realizado na cidade italiana de Nembro indicou que a cada quatro mortes por COVID-19, havia mais de seis por outras causas.
Sob a perspectiva psicol�gica e de engajamento, como est� a din�mica do isolamento social no Brasil?
Os bons resultados do isolamento social acabam minando o pr�prio isolamento social: voc� n�o v� hospitais lotados, n�o v� UTIs sobrecarregadas, todas as situa��es que n�o ocorrem exatamente por causa do isolamento. A�, as pessoas come�am a sair �s ruas, a comprar os discursos negacionistas de quem desdenha a pandemia e tudo que mais se temia come�ar� a acontecer. Algumas pessoas me perguntam: “Ser� que no Brasil ser� diferente do que aconteceu nos outros pa�ses?”. Eu respondo: “Por que seria?”. No in�cio do isolamento social, havia muita motiva��o. Esse primeiro momento vem em conjunto com solidariedade, boa vontade, vontade de fazer o que todos est�o fazendo no mundo. Depois de um tempo, as pessoas come�am a mostrar cansa�o, fadiga, t�dio, v�o exaurindo a sua capacidade de lidar com a restri��o. No Brasil, as controv�rsias pol�ticas e diverg�ncias desde o primeiro momento tornam a mobiliza��o mais dif�cil. Estamos caminhando para o pior dos mundos: sem ades�o ao isolamento social, vamos perder vidas em decorr�ncia da sobrecarga do sistema de sa�de e n�o vamos preservar os empregos.
Que estrat�gias o senhor acredita podem ser adotadas para evitar desmobiliza��o do isolamento social?
S�o v�rias dimens�es envolvidas. � um problema global. Vamos ter economias que v�o encolher. As pessoas que t�m pequeno neg�cio t�m de ter alternativa. Mas para isso s�o necess�rias pol�ticas econ�micas adequadas. E governo precisa mudar a mentalidade, parar de ficar regateando diante dessa trag�dia. O Congresso melhorou a proposta do benef�cio emergencial proposto pelo governo de R$ 200 para R$ 600. Mas, pela mensura��o do IBGE na PNAD Cont�nua, as pessoas do mercado informal recebem mais de R$ 1.400 por m�s. Isso significa que as pessoas v�o buscar essa diferen�a com alternativas que as exponham � infec��o. O refor�o � prote��o social est� muito aqu�m do que o pa�s pode fazer. Este � um ponto. Tamb�m o pacote econ�mico para o enfrentamento da crise � t�mido. S�o necess�rias medidas de impacto. Estados e munic�pios tentam fazer os seus pacotes. Mas falta no �mbito federal um conjunto de medidas para nos proteger da crise e nos indicar um caminho que nos ajude na recupera��o econ�mica. Neste momento, o Brasil pode mobilizar munic�pios para o isolamento social e, enquanto isso, trabalhar na rede hospitalar de maior complexidade. Imagine BH, se n�o tiver isolamento social intenso para reduzir o ritmo da dissemina��o da doen�a, o que vai acontecer? Os grandes centros urbanos v�o ter de absorver demanda do interior. Vai haver sobrecarga e pessoas v�o morrer. E quem mora na capital, apesar de fazer o isolamento, vai sentir.
Alguns segmentos do empresariado e mesmo aut�nomos, ainda sem acesso a um benef�cio e sem ter como se manter, pressionam pela retomada das atividades.
H� n�tida press�o sobre o setor sa�de para que “liberem” os trabalhadores para voltar ao trabalho. N�o adianta pedir ao v�rus que pegue leve com a for�a de trabalho. Ele faz o que � da sua natureza fazer. O pa�s precisa mobilizar o que tem de melhor, porque o que tem de pior vem de gra�a. O que temos de melhor? Aten��o prim�ria capilarizada do SUS e do setor privado. Temos tamb�m compet�ncia na �rea de vigil�ncia epidemiol�gica, organizada, consolidada. Para localizar as pessoas e promover pol�ticas de prote��o social, temos duas plataformas: o Bolsa-Fam�lia, ligada ao Minist�rio da Cidadania; e a outra � o INSS, que tem a plataforma que paga o Benef�cio de Presta��o Continuada (BPC). Ambas funcionam bem, j� foram usadas para outros tipos de transfer�ncia, que n�o o Bolsa-Fam�lia. Outra coisa que o Brasil tem � a descentraliza��o das pol�ticas p�blicas, o que permite que munic�pios tenham autonomia na resolu��o de problemas. Isso � algo positivo, pois como o Brasil � muito individualista, o fato de ter autonomia no n�vel municipal confere mais rapidez �s decis�es.
''A cloroquina est� sendo anunciada como se fosse bala m�gica, p�lula do dia seguinte. Com isso, o debate n�o se processa em torno de sua efic�cia terap�utica, cujo conhecimento � escasso''
E quais s�o as dificuldades para o enfrentamento da pandemia?
O Brasil tem d�ficits hist�ricos em rela��o aos atendimentos de alta complexidade e de financiamento da sa�de: h� um processo de sucateamento dos hospitais p�blicos e escolas universit�rias. Al�m disso, perdemos muito da industrializa��o dos produtos na �rea da sa�de do Brasil. Isso aconteceu em v�rios lugares no mundo e com muita for�a no Brasil. Somam-se a esses problemas antigos os novos problemas. Um processo de narrativas de deslegitima��o do SUS e do setor p�blico, o questionamento e esfor�os para a desqualifica��o da pr�pria ci�ncia. Esses s�o os d�ficits que caem em nossa cabe�a. Al�m de tudo isso, h� um problema de coordena��o decorrente de dificuldades pol�ticas, que no Brasil tem ra�zes. Todo esse processo que levou � deslegitima��o da pol�tica e dos pol�ticos, permitiu o crescimento de desconfian�a exacerbada em rela��o a institui��es como o Parlamento, o Judici�rio, os partidos pol�ticos. H� pessoas que continuam agindo para deslegitim�-los, e, ao fazer isso, enfraquecemos os principais instrumentos regulat�rios de uma sociedade organizada. Quando vem um desastre desse tamanho, todas essas quest�es se revelam desagregadoras. � preciso que o governo federal se entenda em a��o coordenada entre os seus pr�prios �rg�os, com o Legislativo e o Judici�rio para que construam atua��o convergente, em uni�o com estados e munic�pios. Por causa dessas dificuldades, temos perdido oportunidades de mobilizar o que de melhor temos.
Muito se tem falado na cloroquina. Como est� a evolu��o da pesquisa para o tratamento da COVID-19?
A cloroquina est� sendo anunciada como se fosse bala m�gica, uma p�lula do dia seguinte, em caso de algu�m sair para o trabalho e adoecer em decorr�ncia dessa exposi��o. Com isso, o debate em torno do medicamento n�o se processa em torno de sua efic�cia terap�utica, cujo conhecimento ainda � escasso. A droga � uma entre outras que t�m sido usadas para o tratamento da doen�a. H� v�rios estudos, inclusive no Brasil, buscando aferir o seu potencial. O problema � que se a rede hospitalar entrar em colapso por excesso de demanda, a maioria dos pacientes nem vai ter atendimento. As pessoas morrer�o n�o apenas de COVID-19, mas tamb�m por outras doen�as que necessitam de atendimento hospitalar imediato. A grande quest�o � como organizar a fila dos casos mais complicados (em torno de 20%) nos servi�os de m�dia e alta complexidade, coisa que o debate em torno da cloroquina busca subverter.
Em v�rios pa�ses, como Reino Unido, EUA e pr�pria It�lia, os governantes demoraram a adotar medidas de isolamento social. Por que a demora?
No Reino Unido, o governo de Boris Johnson come�ou hesitante, com a teoria da imunidade de rebanho, ou seja, deixa que todos peguem a doen�a e da� a imunidade. Mas houve resposta social ignorando o governo, que precisou se reposicionar. S�o posturas que v�o um pouco na dire��o da nega��o da ci�ncia, e certa convic��o muito pessoal, de que todos est�o errados, e seria histeria coletiva. Isso no fundo � uma atitude dissociativa: a realidade bate na cara e a nega��o continua. Al�m disso, a pol�tica contempor�nea passou a ter certo elemento individualista, desafiador, em que se desafiam c�nones para ganhar certo prest�gio social com isso. Ocorre que colocar um youtuber provocador em evid�ncia n�o combina com um dirigente de na��o. Aqueles que dirigem na��es podem provocar trag�dias com essa postura. Tem consequ�ncias muito graves. Passamos, nesta semana, por um momento crucial em que � preciso buscar novas articula��es, renovar as energias, maximizar as mensagens que s�o adequadas ao isolamento social, necess�rio neste momento. H� uma escolha a ser feita. Podemos sair desta crise em melhor situa��o do que estamos. Mas podemos tamb�m sair muito pior do que estamos. As pessoas est�o no geral buscando fazer a sua parte. Nunca tivemos tanta informa��o sobre uma doen�a como esta, em t�o pouco tempo. Apesar de n�o sabermos o fundamental. Isso � interessante, pois vai deslocar a concep��o de como o mundo funciona e se queremos buscar a sa�da pela produ��o de conhecimento e de tecnologia. O que de pior pode acontecer � n�o aproveitarmos essa crise para enfrentar problemas estruturais – investimento na sa�de, desenvolvimento de novas compet�ncias e o setor comercial para lidar com a sa�de –, reaprendera a ter confian�a nas institui��es.