
Saulo � um nome inventado, neste texto para um homem real, morador do interior mineiro, pai de dois filhos, trabalhador aut�nomo, sempre com uma pasta na m�o. Ele diz que � feliz, mas desde a semana passada come�ou a se sentir asfixiado, um n� na garganta estranho, muito mais apertado do que o da gravata que usava diariamente, antes de entrar em isolamento domiciliar.
A todo instante, se perguntava, zanzando de um lado para outro: "Quando vai terminar essa pandemia, essa pan-dem�ncia, quando terei de novo as r�deas da minha vida?". O nervosismo foi se irradiando pelos quartos, pela sala e pelo quintal, chegando a extremos."Tenho que dar um fim a isso. N�o posso mais viver nessa situa��o, deve haver uma sa�da al�m da porta."
Os pensamentos se tornaram cada vez mais escuros, sombrios, emba�ando a lucidez. Saulo puxou assunto com a mulher, confessou n�o suportar mais ficar dentro de casa, "engaiolado". Ela, companheira de mais de 20 anos, pediu calma. Era mais do que necess�rio seguir a determina��o das autoridades sanit�rias, ficar em casa o m�ximo poss�vel, s� sair em extrema necessidade. "E n�o se esque�a da m�scara na hora de ir ao supermercado, viu?"
A filha adolescente concordou com a m�e, e falou, com suavidade, que o vendaval do novo coronav�rus passaria. Mas Saulo teimava, queria de volta a liberdade. � assim que pensava e pronto.
Tomou um caf�, mordeu o p�o de queijo rec�m-sa�do do forno. Saiu para o quintal. Pegou o regador, aguou as samambaias, fez um cafun� no cachorro, ouviu o canto dos p�ssaros. "Que beleza! Que maravilha! Bom escutar esse som logo cedo."
Mas, de repente, como se estivesse na estrada de Damasco tal qual Saulo de Tarso, depois Paulo, o mineiro se sentiu iluminado. Foi tomado por asas da imagina��o que batiam fortes �s costas e por uma clareza de ideias que abria a cabe�a. "Ser� isso mesmo que devo fazer? Dar um fim a esse sofrimento? Terminar com essa press�o, abrir as grades para o mundo?"
Rodou o quintal, colheu um ovo no ninho da galinha carij�, olhou para o c�u sem nuvens. Depois seguiu para o viveiro com seus 46 passarinhos, curiosamente um para cada ano da sua vida. Viveiro... viver... Estavam l� o curi� que foi do falecido pai, os canarinhos, o bicudo e outros da fauna brasileira comprados de forma clandestina. Cada p�ssaro contava um pouco da hist�ria pessoal e familiar.
Sem pensar duas vezes, Saulo abriu a porta do viveiro e deixou que as aves sa�ssem do seu cativeiro, do seu isolamento, dos anos de quarentena. Por um segundo, imaginou-se l� dentro, num poleiro, privado do direito de voar, aprisionado.
De in�cio, algumas aves ficaram indecisas. Depois, voaram para o p� de amora. Um canarinho precisou de ajuda. E Saulo o lan�ou com ternura em dire��o � bananeira. Como mora distante do centro urbano, sem casas perto, ficou seguro quanto � alimenta��o e �gua para os p�ssaros.
Aos poucos, o homem percebeu que o n� na garganta desapertava. Ficou mais leve, de um jeito que havia muito tempo desconhecia. Sorriu para a natureza e para o viveiro agora vazio. E disse baixinho: "Coitados desses passarinhos. Se eu estava me sentindo mal, imagino eles".
Respirou fundo na manh� do dia em que completava 46 anos, tirou o cachorro da coleira, colocou a m�scara cir�rgica e saiu para dar uma volta r�pida, s� para espairecer. Viu ali que come�ava um novo tempo, talvez at� mais tranquilo, apenas com uma pontinha de saudade.
Recado ao leitor: Quando ouvi essa hist�ria, na voz do seu protagonista, pensei em fazer uma mat�ria, mas ele ficou com receio por ter criado os p�ssaros de forma ilegal. N�o quer mais mexer com isso, s� pensa mesmo em ficar calmo na quarentena. Em casa.