
A vida de dona Augusta Pereira das Chagas � um livro aberto: h� cap�tulos com hist�rias l� do fundo do cora��o, par�grafos inteiros escritos com a letra da perseveran�a, palavras certas para o alicerce de uma fam�lia numerosa e muitas, muitas p�ginas em branco � espera dos dias que vir�o. Aos 99 anos, moradora de Sabar�, na Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte, a senhora l�cida e bem-humorada s� n�o anda muito satisfeita com o primeiro Dia das M�es que vai passar, no domingo, sem a presen�a de toda a prole, que atualmente soma nada menos que 56 integrantes: nove filhos, 25 netos e 22 bisnetos. Mas, contempor�nea da Segunda Grande Guerra, a mineira est� certa de que mais esse confronto mundial ser� superado, e j� faz planos para festejar seu centen�rio.
“Vai ser completamente diferente, mas coloco nas m�os de Deus. Encaro tudo naturalmente, pois, se Deus mandou, temos que aceitar”, diz dona Augusta, vi�va, que n�o ter� as tradi��es familiares na data dedicada �s m�es: seresta logo cedo, com os filhos tocando viol�o e cantando as m�sicas preferidas dela, o caf� da manh� farto e temperado com os beijos dos netos, e depois a mesa de almo�o bem � mineira, que se estende por horas de alegria e conversas. “Mas n�o posso me queixar: estou com sa�de. S� temos mesmo que ter f�. E rezar”, observa sobre os tempos atropelados pela pandemia do novo coronav�rus.
"O Dia das M�es vai ser completamente diferente, mas coloco nas m�os de Deus. Encaro tudo naturalmente, pois, se Deus mandou, temos que aceitar"
Nada que apague, por�m, o sorriso da esperan�a estampado no rosto. � com ele que dona Augusta avisa que pretende festejar os 100 anos, em 2 de novembro. “Vamos ver como fica, n�? Ainda tem muita �gua para passar debaixo da ponte”, filosofa. Na varanda da casa da filha ca�ula, Mirtes da Piedade Chagas e Souza, pedagoga, onde passa a quarentena, ela faz quest�o de falar do orgulho de se chamar Augusta. “Foi por causa do meu pai, Augusto Corr�a de Ara�jo. Tenho oito netos e dois bisnetos com nomes compostos, registrados com Augusto ou Augusta. Fico feliz com a homenagem.” Em seguida, como que para n�o se esquecer de mencionar ningu�m, declama a lista de filhos, pelos nomes ou apelidos: Expedito, Magno, Adjair, Totonho, Marlene, Neuza, Lucinha, Leninha e Mirtes.
Natural de Sete Lagoas, na Regi�o Central de Minas e moradora de Sabar� h� mais de cinco d�cadas, dona Augusta enaltece tr�s palavras-s�ntese da sua exist�ncia: simplicidade, honestidade e esperan�a. Depois de cit�-las, pensa um pouquinho, e resolve adicionar duas: trabalho e educa��o. “Sempre fiz quest�o de que meus filhos estudassem. Fui rigorosa. Um at� peguei pela orelha e levei para a escola, pois n�o estava querendo ir �s aulas. Hoje fico satisfeita, pois a educa��o � fundamental no pa�s”, ensina, com a experi�ncia de quem foi professora em escola da zona rural da cidade onde nasceu.

COMBATES Os tempos sinistros trazidos pelo novo coronav�rus fazem dona Augusta se lembrar de outra �poca, para ela t�o dif�cil e tensa quanto a atual, e comparar. Se na primeira o inimigo tinha nome e sobrenome – Adolf Hitler (1889-1945) –, agora est� disperso, invis�vel: o coronavirus. A refer�ncia � Segunda Guerra Mundial (1939-1945) vem completa na mem�ria, e a mineira destaca datas, lugares e situa��es que ficaram marcadas na mem�ria. Exatamente “um m�s e 25 dias ap�s o casamento”, o marido, Jos� Barnab� das Chagas, ent�o com 21 anos, foi convocado pelo Ex�rcito brasileiro para seguir com os demais pracinhas e lutar na Europa. Augusta estava gr�vida.
"Sempre fiz quest�o de que meus filhos estudassem. Fui rigorosa. Um at� peguei pela orelha e levei para a escola. A educa��o � fundamental no pa�s"
O apoio � jovem esposa, ainda residente em Sete Lagoas, vinha do sogro e da sogra. “S� sa�a de casa com eles, e de bra�os dados”, recorda-se. Mas a vida tem surpresas, e uma delas veio durante uma prociss�o, quando viu parar, ao lado do passeio, um caminh�o cheio de soldados. “Um deles caminhou na minha dire��o, com uma barba preta, e pegou, nos meus bra�os, meu beb�, ent�o com 5 meses. Foi a� que reconheci meu marido. N�o sabia que ele chegaria naquele dia”, conta dona Augusta, com os olhos brilhantes de saudade e belas lembran�as. Aquela crian�a, hoje com 76 anos, � Expedito Jos� das Chagas, batizado em homenagem a Santo Expedito em uma promessa para que o jovem marido voltasse s�o e salvo.
Os anos se passaram e o casal foi morar em Sabar� – ele trabalhando como ferrovi�rio, ela cuidando da casa, sem perder o gosto pela costura, pelo prazer de fazer doces, pelo carinho do conv�vio familiar e pelo prazer de ser m�e. “Por isso gosto tanto da seresta no Dia das M�es”, diz a matriarca, antes de cantar duas can��es inteirinhas, com os versos marcantes: “Se eu pudesse, eu queria outra vez, mam�e, come�ar tudo, tudo de novo”. E mais: “Saudade, palavra triste, quando se perde um grande amor (...) Meu primeiro amor...”
Bordados, doces e independ�ncia
As costuras e bordados t�m parte importante na vida de dona Augusta, “que sempre foi muito ativa”, segundo a filha Mirtes. “J� teve at� pousada”, acrescenta a professora aposentada, que, ao longo da conversa, se emocionou v�rias vezes ao ouvir as hist�rias da m�e. “Ela � muito independente, tem seu dinheiro, faz suas compras, gosta de dar presentes, mas ela tem que escolher. Passou fases dif�ceis, perdeu uma filha de 14 anos e segue firme.”
"Vou me deitar �s 21h e acordo � meia-noite. A�, pego meus livros de reza e leio at� as 3h. Depois, durmo de novo e acordo �s 8h"
Ao falar nas costuras, dona Augusta faz quest�o de mostrar os panos de cozinha que acabou de bordar. E aponta, contente, a cesta com ab�bora e tr�s mam�es verdes que ganhou de presente. Mirtes explica: “Nessa quarentena, estamos fazendo muitos doces, e a mam�e adora ir para o fog�o”.
Se o combate � nova doen�a ainda desafia cientistas pelo mundo inteiro, para ficar bem durante o isolamento social dona Augusta tem a receita na ponta da l�ngua. � preciso se alimentar direito, dormir bem e se exercitar. “Vou me deitar �s 21h e acordo � meia-noite. A�, pego meus livros de reza e leio at� as 3h. Depois, durmo de novo e acordo �s 8h.” A ca�ula completa. “Mam�e anda no quintal e faz alongamento.”
"Estou com minha filha, muito bem tratada, mas ficar na casa da gente � diferente. Gosto de receber visitas, tenho minhas amigas, aprecio o conv�vio. Tudo isso vai passar"
A conversa poderia render horas, mas os rigores do isolamento imp�em regras, como o distanciamento, m�scaras e acenos de longe. “Estou com minha filha, muito bem tratada, mas ficar na casa da gente � diferente. Gosto de receber visitas, tenho minhas amigas, aprecio o conv�vio. Tudo isso vai passar. E voc�s – diz aos rep�rteres – ir�o l� para tomar com caf� comigo.” Convite feito, convite aceito. Com a certeza de que o cafezinho vir� ado�ado com esperan�a.