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Estado de Minas

Risco, lendas de fantasma e abandono: as muitas mortes do Viaduto das Almas

Estrutura que tirou 200 vidas e se tornou s�mbolo do risco rodovi�rio completa 10 anos de desativa��o sem deixar saudade, mas com muitas hist�rias de medo e sofrimento


13/09/2020 06:00 - atualizado 13/09/2020 08:25

O elevado se tornou famoso por desastres fatais, como o do ônibus da Viação Cometa, com 30 mortes. Da pista, se avista o viaduto que substituiu a velha e perigosa travessia (foto: Edésio Ferreira/EM/D.a press)
O elevado se tornou famoso por desastres fatais, como o do �nibus da Via��o Cometa, com 30 mortes. Da pista, se avista o viaduto que substituiu a velha e perigosa travessia (foto: Ed�sio Ferreira/EM/D.a press)

Uma vegeta��o dominada por �rvores altas de eucalipto de pouco em pouco abra�a a monumental estrutura de concreto armado e asfalto, embrulhando no esquecimento um dos mais sombrios marcos da hist�ria rodovi�ria brasileira. A pouco tempo de completar uma d�cada de desativa��o, no m�s que vem, o Viaduto das Almas, localizado entre Itabirito e Ouro Preto, na Regi�o Central de Minas Gerais, se degrada em silenciosa despedida, sem contudo deixar saudades – principalmente para os familiares e amigos dos cerca de 200 mortos que nunca terminaram a travessia do elevado.

 

A tens�o dos motoristas, que n�o sabiam se sobreviveriam ao entrar na pista erguida em curva sobre um abismo, deu lugar ao canto dos p�ssaros, ao sopro do vento na mata, � adrenalina dos praticantes de rapel treinando descidas em cordas e aos passeios de habitantes locais pelo esqueleto cinzento de 260 metros de extens�o e 30 de altura.

 

(foto: Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press - Set/1969)
(foto: Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press - Set/1969)
 

Considerado por muitos uma armadilha, o elevado em curva fechada sobre o Ribeir�o das Almas nasceu Viaduto Vila Rica – homenagem ao antigo nome de Ouro Preto, um dos munic�pios que a sustentam. Em 1957, o presidente Juscelino Kubitschek compareceu � sua inaugura��o, para permitir a liga��o entre Belo Horizonte e o Rio de Janeiro pela antiga BR-3, atualmente BR-040. Mas a viol�ncia dos acidentes, o pior deles a queda de um �nibus da Via��o Cometa, ainda em 1969, deixando 30 mortos, fez com que merecesse o nome de Viaduto das Almas.

 

O hist�rico de desastres e de vidas perdidas de forma brutal se sedimentou nas mem�rias de muitas pessoas que conviviam com a passagem sobre o vale do C�rrego das Almas, como o inspetor aposentado da Pol�cia Rodovi�ria Federal (PRF) Vit�rio Manzali Filho, de 75 anos. De 1968 a 2002, o policial conviveu com o viaduto e tem lembran�as terr�veis dos acidentes que l� ocorriam. “Eu era novo na pol�cia e me lembro de que o acidente da Via��o Cometa, com 30 mortos e cinco feridos grav�ssimos, tinha comovido a sociedade. Saiu em jornal e nas r�dios. Um choque esse tanto de vidas perdidas”, recorda-se.

 

Mas o policial teria um contato mais pr�ximo com a trag�dia do que aquele intermediado pela cobertura da imprensa. “Foi ent�o que tirei plant�o e, para o meu espanto, me mandaram guardar o �nibus acidentado na garagem da (Via��o) Cometa, at� que a per�cia chegasse, na manh� do dia seguinte”, conta o inspetor aposentado.

 

A vis�o do ve�culo que voou por cima do Viaduto das Almas nunca se apagou de sua mem�ria. “O a�o estava retorcido. O �nibus teve o teto esmagado. Ainda dava para ver peda�os de bagagens, retalhos de roupas, muito sangue. E, com todo respeito, partes dos passageiros ainda estavam por l�”, lembra o policial rodovi�rio federal. Essa imagem fez com que o inspetor Vit�rio Manzali respeitasse a amea�a que o viaduto representava. Tanto que quando foi designado para ser chefe do trecho, entre 1982 e 1985, decidiu tomar provid�ncias imediatamente.

 

“Antes, o trecho era de Conselheiro Lafaiete a Belo Horizonte (BR-040) e de BH a Jo�o Monlevade (BR-381). Assim que fui designado para ele, a imagem que se formou na minha cabe�a foi a do Viaduto das Almas. Tinha muitos locais perigosos nessas rodovias, mas n�o posso negar que foi o viaduto que logo me preocupou. Eu me preparei para enfrentar aquilo l�. Antes de assumir, passei um m�s indo todo dia para fazer reconhecimento e tra�ar estrat�gias para tentar tornar a rodovia mais segura”, afirma o policial aposentado.

Marcas de um passado mortal

Atualmente, as marcas dos acidentes ainda sobrevivem nas muretas destro�adas e falhas ao longo da estrutura em curva. Sob a arma��o de cimento, areia, brita e a�o se adensa uma mata vigorosa, agora livre da interfer�ncia das opera��es de capina e conserva��o do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit). Mas, percorrendo o matagal ainda se encontram vest�gios n�o naturais que indicam ter sido aquele um trecho movimentado. E mortal.

 

Córrego das Almas, que acabou tendo o nome ligado à estrutura, corre entre os pilares em lenta degradação(foto: Edésio Ferreira/EM/D.a press)
C�rrego das Almas, que acabou tendo o nome ligado � estrutura, corre entre os pilares em lenta degrada��o (foto: Ed�sio Ferreira/EM/D.a press)
Peda�os de pe�as de carro e um filtro de caminh�o atirado em meio ao capim remetem a acidentes com fins tr�gicos, que deixaram seus vest�gios 30 metros abaixo da pista rodovi�ria. Por l� tamb�m se espalham restos como garrafinhas de �gua antigas, que lembram a falta de consci�ncia de alguns motoristas.

 

O C�rrego das Almas corta o fundo do vale pelos pastos e bosques, em leito de cascalho e min�rio de ferro. Um curso d'�gua manso e l�mpido, que se abre em v�rios canais, como se abra�asse as funda��es do Viaduto das Almas, testemunha da tentativa do homem de suplantar os obst�culos da natureza e do violento custo em vidas que isso resultou.

 

Ao longo do riacho, pilhas de pedras formam o mobili�rio rudimentar de v�rios acampamentos. Amontoados de rocha escura tomam a forma de assentos em volta de c�rculos de rocha chamuscada, constituindo abrigos para fogueiras, ainda com tocos de carv�o no interior. Ind�cios de que novas ocupa��es ocorrem nesse marco da hist�ria rodovi�ria brasileira.

 

 

Ruínas do que um dia foi o famoso ponto do pão com linguiça hoje dão aspecto mais fantasmagórico ao entorno do temido viaduto(foto: Edésio Ferreira/EM/D.a press)
Ru�nas do que um dia foi o famoso ponto do p�o com lingui�a hoje d�o aspecto mais fantasmag�rico ao entorno do temido viaduto (foto: Ed�sio Ferreira/EM/D.a press)

Hist�rias de fantasmas � beira do precip�cio

Na curva que antecedia o Viaduto das Almas, a mata e o abandono cuidaram de engolir o antigo Restaurante Belvedere, parada tradicional de viajantes, caminhoneiros e patrulheiros rodovi�rios. As ru�nas, que atualmente servem de pouso para andarilhos, eram um pouso de descanso antes de encarar a travessia do perigoso elevado, ou uma oportunidade de respirar aliviado ap�s cruzar a armadilha.

 

Naquele ambiente de imagin�rio fertilizado pela m� fama dos desastres e mortes, hist�rias de fantasmas eram contadas entre um gole de caf� quente e uma mordida no tradicional p�o com lingui�a que fez a fama do lugar. “Os caminhoneiros contavam muitas hist�rias de assombra��es. Todo mundo ficava impressionado porque, mesmo n�o acreditando, reconhecia o perigo do viaduto. Depois que a passagem fechou, o restaurante foi para o trecho novo, antes do novo viaduto (Marcio Martins Rocha)”, afirma o inspetor aposentado da PRF Vit�rio Manzali Filho, de 75 anos.

 

Em seu in�cio de carreira em uma lanchonete pr�xima ao Viaduto das Almas, a propriet�ria do Restaurante da Celinha, C�lia Maria da Silva, ouviu muitas dessas hist�rias. “Alguns caminhoneiros contavam que davam carona para uma mulher bonita, vestida de branco e que sumia depois que passavam sobre o viaduto. Falavam que era o esp�rito de uma v�tima”, lembra a empres�ria.

 

Ela conta tamb�m que andarilhos e mendigos da regi�o que usavam os v�os sob a cabeceira do viaduto para passar a noite relatavam experi�ncias assustadoras. “Eles contavam que ouviam choros compulsivos, como se fossem de esp�ritos. E tamb�m gritos de desespero no meio da noite.”

 

A pr�pria empres�ria revela j� ter tido uma experi�ncia terr�vel no viaduto. “Uma vez, fui at� l� e, n�o sei por que, me deu vontade de olhar para o fundo. Foi a� que vi um carro capotado l� embaixo. Um Palio. O motorista se atirou do alto para se matar. Chamei a pol�cia e fui embora correndo, mas nunca mais esqueci a cena”, lembra.

 

Atualmente, a empres�ria conta que o local tem sido usado para passeios de pessoas da comunidade e atividades ao ar livre, mas tamb�m para acrobacias de motociclistas. “A natureza ali � muito bonita, precisava ser preservada, para que pudesse ser mais bem aproveitada pela comunidade”, disse.

 

Célia Maria da Silva lembra lenda entre caminhoneiros: mulher de branco, de carona, sumia depois da travessia(foto: Edésio Ferreira/EM/D.a press)
C�lia Maria da Silva lembra lenda entre caminhoneiros: mulher de branco, de carona, sumia depois da travessia (foto: Ed�sio Ferreira/EM/D.a press)
 

Marco da engenharia ou armadilha rodovi�ria?

Ao ser concebida, a estrutura em curva do Viaduto das Almas era um marco da engenharia rodovi�ria, moderna e audaciosa para a �poca, segundo contam professores da �rea de transporte e tr�nsito. “Mas o viaduto j� nasceu obsoleto e levou muito tempo para ser desativado”, afirma o doutor em engenharia e especialista em transporte e tr�nsito Ant�nio Prata.

 

A geometria, o relevo e as dimens�es do elevado sobre o C�rrego das Almas fizeram dele um grande desafio para motoristas e ve�culos desde a inaugura��o, em 1957, at� a desativa��o completa, em 2010. “O raio da curva do viaduto � muito curto, e isso tirava a estabilidade de ve�culos no trajeto. A largura de 8,2 metros para pistas de dois sentidos era suficiente na d�cada de 1950, mas inadequada aos ve�culos de carga cada vez maiores e aos produtos transportados, muitas vezes largos, excedendo a carroceria”, afirma.

 

Outro problema era a rampa de entrada – a forte descida para quem transitava no sentido Rio de Janeiro/Belo Horizonte. “Com tudo isso, para ter seguran�a, o motorista deveria reduzir a velocidade e passar por ali a 60km/h. Mas isso n�o acontecia por v�rios motivos. Um deles, comportamental. Era a d�cada de 1960 e as m�sicas da Jovem Guarda refletiam o crescimento da ind�stria automobil�stica. Diziam que era para atravessar a estrada de Santos a 200 por hora, tinha essa quest�o da aventura do motorista. Outro problema eram os caminh�es, que desciam desengrenados e, ao chegar � curva fechada no meio do vale, seus condutores n�o conseguiam controlar a dire��o e despencavam ou empurravam outros para o precip�cio”, afirma o professor Ant�nio Prata.

 

Na PRF desde 1994, o porta-voz da corpora��o, inspetor Aristides Amaral J�nior, afirma que nos �ltimos anos, antes do fechamento do viaduto, a rotina de acidentes havia diminu�do. “Na d�cada de 1990 j� era mais m� fama do que acidentes graves. Realmente, era um trecho de viaduto em curva que apresentava riscos, exigia cuidados dos motoristas, mas isso os levava a dirigir com mais cautela. Melhorou com a instala��o de barreiras eletr�nicas na entrada e na sa�da nos dois sentidos. Com a instala��o do novo trecho da BR-040 e do Viaduto Marcio Martins Rocha, a condi��o de tr�fego melhorou muito, pois � duplicado e em linha reta”, afirma J�nior. J� a antiga travessia restou como uma esp�cie de monumento �s v�timas.


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