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Estado de Minas MINAS 300 ANOS

Arte delicada e global � revisitada em livro no dia do Barroco

Comemora��es, hoje, do estilo consagrado como patrim�nio do estado s�o ideais para reavaliar sens�vel trabalho de (re)cria��o na pintura de missais europeus interpretados na Am�rica portuguesa


18/11/2020 04:00 - atualizado 18/11/2020 06:39

Pesquisa de Alex Bohrer, que identificou uso de repertório artístico europeu em Minas, destaca gravura de missal que retratou a Santa Ceia reinterpretada na Santa Ceia do pintor Manoel da Costa Ataíde na Igreja São Francisco de Assis, em Ouro Preto(foto: Divulgação/discurso da imagem)
Pesquisa de Alex Bohrer, que identificou uso de repert�rio art�stico europeu em Minas, destaca gravura de missal que retratou a Santa Ceia reinterpretada na Santa Ceia do pintor Manoel da Costa Ata�de na Igreja S�o Francisco de Assis, em Ouro Preto (foto: Divulga��o/discurso da imagem)
Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, – pelo menos, foi o que ensinou o cientista e pensador franc�s Antoine Lavoisier (1743-1794). Mas, na arte, talvez como na vida, a afirma��o tem outra escala: tudo se cria, tudo ganha forma e, principalmente, tudo se inventa e se reinventa com o l�pis, o pincel, o cinzel e a imagina��o. Neste ano em que se comemora o tricenten�rio da Capitania de Minas, com a organiza��o do territ�rio, e especialmente hoje, Dia do Barroco e data da morte de Ant�nio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), patrono das artes no Brasil, torna-se bem oportuno refletir e destacar ainda mais a grandeza dos artistas coloniais e as refer�ncias de seus trabalhos.

Livro rec�m-lan�ado, O discurso da imagem – Inven��o, c�pia e circularidade na arte (editora Lisbon International Press), do professor do Instituto Federal de Minas Gerais, Alex Fernandes Bohrer, serve de guia nessa jornada de (re) descobertas. Quando passar a pandemia do novo coronav�rus e os brasileiros e estrangeiros puderem viajar mais livremente para visitar o patrim�nio cultural de Minas, vale a dica para que fiquem de olhos ainda mais abertos sob os forros e as portadas esculpidas e diante das pinturas de altares das igrejas barrocas de Ouro Preto, na Regi�o Central de Minas, e das demais cidades de passado colonial.

Sabe porqu�? Muitas dessas maravilhas sobre a madeira ou alvenaria foram recriadas, pelos artistas, a partir de gravuras de missal, p�ginas de livros e de outros registros que chegavam � antiga Vila Rica, nome primitivo de Ouro Preto, e a outras localidades, nos s�culos 18 e 19.

Para contar melhor essa hist�ria fascinante, Bohrer mergulhou fundo nas pesquisas. Residente no distrito de Cachoeira do Campo, em Ouro Preto, e autor de livros e especialmente de textos sobre o Barroco mineiro e a hist�ria de Minas, o professor explica que a obra resulta da disserta��o de mestrado defendida, em 2007, sob orienta��o da professora Adalgisa Arantes Campos, e desenvolvida no programa de p�s-gradua��o em hist�ria da Faculdade de Filosofia e Ci�ncias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os estudos originam do projeto Pompa barroca e semana santa na cultura colonial mineira, coordenado por Adalgisa.

A gravura A queda do homem, do artista Christoph Weigel, inspirou a obra de Antônio Rodrigues Bello na matriz Nossa Senhora de Nazaré, no distrito de Cachoeira do Campo, em Ouro Preto, é um dos destaques nos estudos do professor Alex Bohrer(foto: Divulgação/discurso da imagem - 9/5/20)
A gravura A queda do homem, do artista Christoph Weigel, inspirou a obra de Ant�nio Rodrigues Bello na matriz Nossa Senhora de Nazar�, no distrito de Cachoeira do Campo, em Ouro Preto, � um dos destaques nos estudos do professor Alex Bohrer (foto: Divulga��o/discurso da imagem - 9/5/20)
O livro se torna muito bem-vindo neste 2020 em que o estado lembra os 300 anos da cria��o da Capitania de Minas, marco na sua organiza��o administrativa, e da Sedi��o de Vila Rica. Outro marco s�o as comemora��es dos 40 anos do t�tulo de Patrim�nio da Humanidade concedido a Ouro Preto. Trata-se de reconhecimento pioneiro no pa�s pela Organiza��o das Na��es Unidas para a Educa��o, a Ci�ncia e a Cultura.

A gravura A queda do homem, do artista Christoph Weigel, inspirou a obra de Antônio Rodrigues Bello na matriz Nossa Senhora de Nazaré, no distrito de Cachoeira do Campo, em Ouro Preto, é um dos destaques nos estudos do professor Alex Bohrer(foto: Divulgação/discurso da imagem - 9/5/20)
A gravura A queda do homem, do artista Christoph Weigel, inspirou a obra de Ant�nio Rodrigues Bello na matriz Nossa Senhora de Nazar�, no distrito de Cachoeira do Campo, em Ouro Preto, � um dos destaques nos estudos do professor Alex Bohrer (foto: Divulga��o/discurso da imagem - 9/5/20)
Teatro sacro Segundo o tamb�m pesquisador Aziz Pedrosa, o livro traz interpreta��es essenciais ao entendimento da hist�ria da arte. “Podemos ver como as fontes iconogr�ficas eram usadas para delinear os aspectos pl�sticos necess�rios para compor o teatro sacro, recobrindo as paredes brancas e tetos dos templos com pinturas que fascinavam o visitante que entrava naquele ambiente”.

As investiga��es do professor Bohrer, acrescenta Pedrosa, traduzem o agu�ado olhar do pesquisador, que soube, de modo excepcional, decodificar a cultura art�stica luso-brasileira, explicitando suas peculiaridades, as quais estavam acobertadas pela dist�ncia temporal. “Dentro dessa perspectiva, esse livro trouxe ao nosso conhecimento caudaloso material, ainda pouco explorado, referente ao repert�rio iconogr�fico europeu nas minas de ouro da Am�rica, demonstrando a fundamental contribui��o das gravuras e missais a diversos artistas, no Brasil e em Portugal. Enfim, essa � uma obra que aprofunda reflex�es iconol�gicas sobre essa parte importante da primeira globaliza��o visual da hist�ria, tudo urdido em discurso cativante, cuidadosamente preparado."
Redescoberta

A capa de O discurso da imagem ilustra bem a pesquisa. Dividida em duas, traz a gravura de um missal em preto e branco, retratando a Ressurrei��o de Cristo, e a policromia da pintura no interior de um templo. Na contracapa, a legenda joga mais luz ao entendimento: “Um viagem art�stica entre o Velho Mundo...(para a gravura de um missal)...e as minas de ouro da Am�rica Portuguesa” (para o Cristo em policromia). Essa � a porta de entrada para o leitor conhecer as origens do Barroco, e o que se chama de Barroco Mineiro, o uso dos missais (pequeno livro com ora��es das missas), o pensamento na �poca e interpreta��es sobre a arte.

No pref�cio do livro, a professora Adalgisa atesta que O discurso da imagem constitui uma reflex�o segundo o m�todo da Hist�ria Cultural, que entra nas universidades brasileiras no fim da d�cada de 1980. “Originalmente em linguagem acad�mica, o texto assume a fei��o de ensaio para atingir um p�blico abrangente com uma encorpada ilustra��o que auxilia o percurso de suas ideias. A pesquisa � fruto de uma investiga��o aprofundada sobre acervos art�sticos, notadamente a pintura, e os gravados veiculados pelos missais e a sociedade coeva (numa mesma �poca) dos s�culos 18 e 19 do territ�rio de Minas Gerais.”

(foto: Divulgação/discurso da imagem - 9/5/20)
(foto: Divulga��o/discurso da imagem - 9/5/20)
Adalgisa esclarece que a “redescoberta do Barroco Mineiro”, produto do movimento modernista, sedimentou-se por meio de uma inventaria��o prolongada dos bens art�sticos pelo Instituto do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico Nacional (Iphan). “M�rio de Andrade (1893-1945, escritor paulista) percebeu que o entendimento do Brasil n�o poderia ser dado, naquele momento particular, por meio de generaliza��es. Para tanto, inclinou-se ao exame das diversidades art�sticas e culturais, por meio de estudos monogr�ficos que gradualmente permitiram um corpo coerente de refer�ncia.”}

Compreens�o P�ginas fundamentais no livro, e de interesse n�o s� estudiosos, mas tamb�m de leigos no assunto, dizem respeito ao Barroco, t�o falado e t�o pouco entendido na sua ess�ncia. Com conhecimento de causa e sensibilidade, Bohrer explica as origens do estilo at� chegar ao famoso Barroco Mineiro. E faz uma compara��o das mais belas: “O Barroco � como um tanque cheio de peixes e cada peixe, al�m de ser parte do aqu�rio total, � um universo em si. Cada peixe � �nico e singular, todavia s� existe em contato com os outros irm�os e sobre o arcabou�o do grande tanque”.

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Dupla Celebra��o

O Dia do Barroco, comemorado anualmente em 18 de novembro, foi institu�do pela lei estadual 20.470/2012, que determina a realiza��o de atividades culturais para valorizar o patrim�nio hist�rico relativo � express�o art�stica e � obra de Ant�nio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Ele nasceu em Ouro Preto, em 1738 e morreu em 18 de novembro de 1814. Foi escultor, entalhador, arquiteto, marceneiro e perito.

Com sua pesquisa, Alex Bohrer destaca que grandes artistas, como Rafael, Rubens e Ticiano, copiavam e eram copiados(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press - 8/2/18)
Com sua pesquisa, Alex Bohrer destaca que grandes artistas, como Rafael, Rubens e Ticiano, copiavam e eram copiados (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press - 8/2/18)


Entrevista

Alex Bohrer, professor de Hist�ria da arte
“Nenhuma c�pia � isenta de criatividade”

Como o senhor iniciou a pesquisa? Observando as pinturas das igrejas, j� que mora em Cachoeira do Campo, em Ouro Preto, ou recebeu alguma indica��o na academia?
Acho que foram as duas coisas. Desde pequeno, eu via as pinturas de meu distrito com muita curiosidade, especialmente as da Igreja das Dores e as da Matriz de Nazar�. Ali�s, uma das primeiras lembran�as da minha inf�ncia � justamente estar no colo do meu pai e ele me explicar aquilo tudo. Ent�o, sim, isso tem um grande valor sentimental para mim. Depois, quando entrei na academia, tinha duas ideias na cabe�a: estudar pintura no mestrado e escultura e talha no doutorado, que foi o que, de fato, fiz. Quando minha orientadora, a professora Adalgisa, me indicou um tema vi�vel de pesquisa, que era exatamente o uso de modelos iconogr�ficos pelos artistas coloniais, n�o pensei duas vezes. E o resultado hoje � o livro.

O senhor acha que a c�pia retira o m�rito dos artistas coloniais mineiros?
N�o, de forma alguma. Na hist�ria da arte, a c�pia ou reinven��o � um m�todo comum. Como mostro no livro, personagens do porte de Rafael, Rubens e Ticiano copiavam ou eram copiados. Assim, os pintores mineiros se inserem numa esp�cie de m�todo internacional, que j� � bem conhecido. N�o podemos encarar nossa arte barroca e rococ� com os olhos de hoje. Nossos artistas foram homens de seu tempo e t�m que ser encarados como tal. N�o havia o conceito de pl�gio e direito autoral. Muito pelo contr�rio: eram encorajados a fazer isso. E faziam como m�todo de aprendizagem, inspira��o e, principalmente, para seguir uma iconografia mundial. N�o se podia fugir disso. Voc� tem que representar a Santa Ceia de determinada forma, era o que a Igreja queria e ordenava. Assim, os nossos artistas se esquivavam de poss�veis problemas. Um exemplo: Ata�de colocou uma mulher servindo iguarias na Santa Ceia da Igreja S�o Francisco de Assis de Ouro Preto. Algu�m poderia acus�-lo de n�o seguir o texto b�blico, mas ele tamb�m poderia facilmente mostrar seu missal e dizer: olha, a imagem est� aqui! E como o missal era previamente aprovado pela Igreja, se esquivava de problemas.
 
Os escultores tamb�m recorriam aos missais?

Sim, eles usavam gravuras. H� algumas pesquisas antigas que mostram isso. Na minha tese, tamb�m demonstrei como gravuras foram usadas para se fazer a talha de nossas igrejas. E, na atualidade, estudos t�m afirmado enfaticamente que esculturas e imagens de vulto podiam realmente ser inspiradas em gravados. Isso explica, em parte, por que tantas imagens, em diferentes lugares do globo, se parecem morfologicamente, mesmo os artistas estando separados pela dist�ncia espacial ou temporal. Ent�o, a gravura, seja de missais, b�blias ou hagiografias (estudo de biografias) de santos, servia sim aos escultores. 

Ant�nio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, tamb�m usou esse recurso?
Sim, usou. Temos estudos mostrando isso. Um caso bem vis�vel s�o os Profetas de Congonhas, claramente baseados em tradi��es visuais que eram mostradas nos gravados. Outro exemplo bem pertinente � seu busto de mulher no Chafariz do Alto da Cruz em Ouro Preto. Ele � quase id�ntico a alguns bustos que aparecem na Igreja Matriz de Cachoeira do Campo, mais antigos, e onde seu pai trabalhou. Esse caso, bem estudado por Ivo Porto de Menezes, mostra que provavelmente Aleijadinho tinha acesso ao acervo de desenhos e gravuras de seu pai. Sim, sabemos que os artistas montavam esses acervos, que eu chamo de ‘pasta’. No caso da escultura e, especialmente, do Aleijadinho, � �bvio que ele desfrutava de certa liberdade de cria��o, de movimentos, de posicionamento do personagem etc. Afinal, era um g�nio. Mas, mesmo os g�nios estavam sob a �gide da vigilante Igreja e, por isso, usavam seus livros.

Em outras col�nias portuguesas, na �ndia (Goa) e China (Macau), os artistas tamb�m se valiam dos missais para criar?
Sim, o uso de gravuras era alastrado. E n�o somente nas col�nias portuguesas, mas em todas regi�es. Um exemplo: recentemente fiz uma viagem ao M�xico e fiquei encabulado de encontrar ‘minhas’ gravuras copiadas em igrejas e museus! A explica��o? Estavam usando os mesmos livros que nossos artistas, que, escritos em latim, eram universais (o latim era a l�ngua internacional na �poca, ainda que fosse usado s� por uma classe mais culta). Isso produziu um fen�meno curioso, que eu chamo de a ‘primeira planetariza��o visual da hist�ria’. A circula��o em massa de livros e desenhos fez com que pessoas de todos os lugares vissem imagens dos outros continentes. E isso n�o ocorria somente com livros sacros no Novo Mundo. A Europa agora podia ver como eram elefantes, camelos, uma bananeira, uma palmeira, um abacaxi, etc. O efeito visual disso foi enorme. At� mesmo um rinoceronte, desenhado pelo famoso artista alem�o Albrecht D�rer, foi parar, copiado, num teto da Col�mbia! Ou seja, mesmo quem n�o podia comprar um livro, podia admirar representa��es em tetos e telas.

O senhor diz que arte � di�logo. Podemos, ent�o, dizer que a arte colonial mineira “dialogou”, e n�o copiou, com os europeus?
Exatamente! Nenhuma c�pia � isenta de criatividade, mesmo uma fotografia. Imagine: as gravuras chegavam aqui em preto e branco e diminutas. Tinham que ser escolhidas, quadriculadas, redesenhadas em escala, colocadas nos tetos, coloridas, etc. Isso permitia, por exemplo, que artistas como Ata�de substitu�ssem personagens europeus por pessoas mesti�as. E isso, por si s�, � um fen�meno de extrema import�ncia! Outra coisa que faziam, e que descobrimos, era recortar gravuras (com tesouras mesmo) e ir montando novos cen�rios a partir dos originais. Em suma, eles eram pessoas de sua �poca e, para n�o cometermos anacronismos e injusti�as, temos que aprender a pensar como um artista do s�culo 18. Uma forma de se tentar isso �, justamente, entender como os processos criativos, pautados na c�pia e reinven��o constante das formas, produziram o que chamamos no livro de ‘ciranda criativa’. E que incr�vel ciranda essa, pois nos legou algumas das obras de arte mais importantes da hist�ria da humanidade!





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