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Estado de Minas

Os 90 anos de um tesouro nacional Ni�de Guidon

Livro conta a hist�ria da arque�loga que identificou pinturas rupestres no sert�o nordestino


12/03/2023 04:00

Niéde Guidon
(foto: Gustavo Moreno/CB/D.A Press)

Depois de inaugurar, aos 85 anos, em dezembro de 2018, o Museu da Natureza, o segundo por suas m�os nas imedia��es do Parque Nacional Serra da Capivara, sul do Piau�, a 500 quil�metros da capital, Teresina, a arque�loga franco-brasileira Ni�de Guidon come�ou a reclamar o seu direito ao descanso. N�o que o tenha feito quando se aposentou, dois anos depois, sobretudo pela dificuldade de mobilidade, sequela da chikungunya contra�da em 2016. Nascida em 12 de mar�o de 1933 no munic�pio de Ja�, S�o Paulo, neste domingo, ao completar 90 anos, com a bagagem de cinco d�cadas em expedi��es para escava��es da regi�o, Ni�de Guidon, presidente em�rita da Funda��o Museu do Homem Americano (Fumdham), tem o nome esculpido na pesquisa arqueol�gica brasileira. 

Foi a primeira pesquisadora a identificar e mostrar ao mundo, na d�cada de 1970, as pinturas rupestres do sul piauiense naquele que se transformaria em 1979 no Parque Nacional da Serra da Capivara, patrim�nio cultural da humanidade pela Unesco. O interesse cient�fico internacional foi imediato. Atraiu o financiamento do governo franc�s e brasileiro, do trabalho dela, foram formuladas hip�teses de pesquisa, que romperiam com dogmas da �poca, sobre o percurso e tempo da ocupa��o humana na Am�rica do Sul. Mas para al�m do debate acad�mico e das diverg�ncias que dele emergem, a atua��o de Ni�de transformaria o munic�pio piauiense de S�o Raimundo Nonato – e a regi�o de seu torno – num dos polos arqueol�gicos mais importantes do Brasil, com impacto ambiental, social e econ�mico profundo na sociedade local. 

Esse fascinante retrato de vida � narrado pela jornalista Adriana Abujamra no livro “Ni�de Guidon, uma arque�loga no sert�o”, o primeiro volume da Cole��o Brasileiras (Editora Rosa dos Tempos/Grupo Record), que tem foco em mulheres revolucion�rias das artes, ci�ncias, meio ambiente e pol�tica. Ni�de vive em S�o Raimundo Nonato, munic�pio piauiense que sedia o Parque Nacional da Serra da Capivara, um peda�o da caatinga – bioma com impressionante capacidade de ressurgir ap�s secas prolongadas, n�o encontrado em nenhum outro lugar no mundo. Nas palavras de Adriana Abujamra, essa paisagem, que abrange 70% do territ�rio do Nordeste, revela muitas hist�rias: a de nossos antepassados pr�-hist�ricos, a dos povos que se ressentem por terem sidos tirados de l� para que o parque se desenvolvesse, e a de Ni�de, sua mentora e guardi�. 

“N�o h� quem n�o admire a for�a e a resili�ncia de Ni�de, necess�rias para que tivesse �xito na funda��o dessa obra arqueol�gica no sert�o nordestino, uma sociedade tradicional, ainda na d�cada de 70 com a cultura patriarcal e do coronel muito presentes, distante e esquecida do centro do poder”, afirma Adriana Abujamra. “Ni�de chegou ao Piau� e come�ou a espalhar ra�zes no territ�rio dos sertanejos na d�cada de 1970. Ela descobriu o s�tio arqueol�gico, lutou e segue lutando para preservar os vest�gios da trajet�ria dos homens pr�-hist�ricos que viveram na regi�o, tendo as pinturas rupestres como seu legado famoso. Por seu empenho nasceu o Parque Nacional Serra da Capivara, o Museu do Homem Americano e o Museu da Natureza. O trabalho dela atraiu a primeira universidade federal para o munic�pio de S�o Raimundo Nonato, a primeira instalada numa cidade do interior nordestino. At� um aeroporto foi constru�do ali”, afirma a autora. Ni�de tamb�m criou novas refer�ncias para as mulheres,  num tempo em que o destino inescap�vel destas era o casamento por imposi��o social e forma de sobreviv�ncia. “Com o seu exemplo, no comando de expedi��es, contratando homens, desbravando as matas, Ni�de incentivou as mulheres  a se tornar independentes e inspirou dezenas de jovens � empreender a aventura arqueol�gica”, aponta Adriana Abujamra. 

Foram muito percal�os, de dificuldades pol�ticas �s de financiamento – num pa�s em que a pesquisa n�o � prioridade. E mesmo depois de Ni�de ter constru�do esse impressionante imp�rio arqueol�gico no sul do Piau�, os desafios por sua manuten��o se multiplicam. O parque, museus e institui��es de pesquisa, que se desdobraram das escava��es pioneiras, sob o comando f�rreo de sua fundadora, sofrem amea�as que v�o de fatores naturais de degrada��o, como intemperismo – processos mec�nicos, qu�micos e biol�gicos – aos interesses locais contrariados pela nova voca��o da regi�o. A �ltima das brigas encampadas por Ni�de, herdada por Marcia Chame, diretora cient�fica da Funda��o do Homem Americano (Fumdham), e outros pesquisadores do Piau�, � contra a autoriza��o do Icmbio para que fosse instalada uma fazenda na regi�o do corredor ecol�gico, situado entre o Parque Nacional Serra da Capivara e o da Serra das Confus�es. O corredor permite o tr�nsito dos animais entre as duas �reas, especialmente durante a seca e � fundamental para a preserva��o da biodiversidade. 

Quem estar� disposto � briga cotidiana para a manuten��o desse legado, �, no outono da vida, a grande preocupa��o de Ni�de Guidon. “Com o tempo, o patrim�nio hist�rico da humanidade vai desaparecer, vai tudo desaparecer”, afirma ela a Adriana Abujamra. “Agora n�o est� mais nas minhas m�os”, completa, imersa numa inevit�vel reflex�o sobre o seu caminho de vida: ter� tudo sido em v�o?

As primeiras descobertas

Graduada em Hist�ria Natural pela Universidade de S�o Paulo (1959), Ni�de Guidon especializou-se em Arqueologia Pr�-Hist�rica na Universidade Paris-Sorbonne (1962). Ouviu falar pela primeira vez na possibilidade de s�tios arqueol�gicos no Piau� em 1963: ao organizar uma exposi��o sobre arte rupestre no Museu do Ipiranga, em S�o Paulo, o prefeito de Petrolina (PE), a chamou e lhe disse: “Olha, l� perto de Petrolina, no Piau�, tem desses desenhos”. Ao final daquele mesmo ano, dirigindo o pr�prio carro, Ni�de tentou alcan�ar a localidade no sul do Piau�, regi�o esquecida do resto do pa�s, com infraestrutura extremamente prec�ria. Uma forte chuva, contudo, havia derrubado uma ponte do rio S�o Francisco, o que a impediu de prosseguir. Retornou a S�o Paulo, e, no ano seguinte, na conjuntura do golpe militar, sob amea�a de ser presa sob falsas acusa��es, exilou-se na Fran�a.  

Em Paris, Ni�de seguiu os estudos de doutorado e, em 1973, era, no Centre National de La Recherche Scientifique (CNRS) pesquisadora assistente de Annete Emperaire, expoente da arqueologia francesa. Annete buscava os vest�gios do homem mais antigo das Am�ricas, j� havia estado na Patag�nia e, no Brasil, o seu maior interesse estava na regi�o de Lagoa Santa, onde se acreditava haver resqu�cios mais antigos de ocupa��o humana. Vendo a oportunidade de retornar ao Piau� em busca de novos s�tios arqueol�gicos, Ni�de preparou a viagem de Annete a Minas Gerais, mas seguiu para o Nordeste. Ali, para a sua surpresa, al�m de incont�veis manifesta��es de arte pr�-hist�rica, deparou-se com os ind�cios de presen�a humana muito mais antigos do que jamais esperaria encontrar. Ni�de retornou � Fran�a com fotos das pinturas rupestres e argumentos para que, a exemplo do que faz no Egito, Gr�cia e em outros s�tios arqueol�gicos do mundo, a Fran�a constitu�sse uma miss�o arqueol�gica permanente no Piau�. 

As descobertas de Ni�de, a sua articula��o acad�mica e pol�tica, levaram � cria��o do Parque Nacional Serra da Capivara, em 1979, uma �rea de aproximadamente 130 mil hectares, que se esparrama pelos munic�pios piauienses de S�o Raimundo Nonato, Jo�o Costa, Brejo do Piau� e Coronel Jos� Dias. Administrado pela Funda��o Museu do Homem Americano (Fundham), entidade sem fins lucrativos, tamb�m de iniciativa de Ni�ge, acolhe mais de 1,2 mil registros pr�-hist�ricos, com pinturas rupestres datadas entre 4 mil e, talvez, at� 50 mil anos (h� controv�rsias no meio cient�fico em rela��o ao tempo de presen�a humana na regi�o), o que torna um dos maiores s�tios arqueol�gicos das Am�ricas. 

Ao longo das d�cadas de trabalhos, mais de meio milh�o de pe�as de interesse arqueol�gico e paleontol�gico foram escavadas no parque, terras da unidade de conserva��o e em �reas vizinhas, por pesquisadores da funda��o e de universidades e institui��es parceiras. A intensa atividade de pesquisa arqueol�gica trouxe um dos campus da Universidade Federal do Vale S�o Francisco para S�o Raimundo Nonato, a mesma cidade onde vive Ni�ge. Ali, sob a inspira��o do trabalho dela, j� se formaram in�meras antrop�logas e antrop�logos, muitos dos quais filhos de “mateiros”, aqueles moradores locais que ajudaram a pesquisadora em expedi��es de campo, na explora��o das matas do parque.

H� ossadas humanas, fragmentos de pedra lascada, cer�micas e f�sseis de megafauna, pregui�as-gigantes, mastodontes e ancestrais dos atuais tatus. Para a exibi��o desse precioso acervo, Ni�de articulou a cria��o Museu do Homem Americano, que funciona em um pr�dio vizinho � sede da funda��o. Neste, est�o os achados relacionados exclusivamente � presen�a humana na regi�o durante a pr�-hist�ria, sendo o cr�nio de uma pessoa denominada Zuzu – n�o � conclusiva a pesquisa em rela��o ao g�nero –  que ali viveu h� cerca de 10 mil anos. Zuzu � uma das descobertas arqueol�gicas mais importantes da serra da Capivara e est� exposta, j� � entrada principal do Museu do Homem Americano, que mant�m exibi��o permanente sobre a evolu��o dos homin�deos, assim como das teorias de povoamento da Am�rica e vida do Homo sapiens na regi�o durante o Pleistoceno e o Holoceno. Como os 600 metros quadrados do museu se tornaram pequenos diante do crescimento dos acervos locais, Ni�de e seus colegas da Fumdham lutaram para viabilizar o Museu da Natureza – situado em terras vizinhas ao parque, no munic�pio de Coronel Jos� Dias –, focado na hist�ria geol�gica, clim�tica e dos animais, sobretudo os do passado remoto, daquele trecho do semi�rido nordestino. 

Uma hip�tese arrojada

“O legado de Ni�de Guidon j� seria admir�vel se, em meio a investiga��es que nunca cessaram, n�o lan�asse hip�tese arrojada, ainda recebida com controv�rsia, de que os primeiros povos das Am�ricas habitavam a regi�o muito antes do que o consenso cient�fico admite atualmente, vindos da �frica por meio de barcos que atravessaram o Atl�ntico”, afirma Joselia Aguiar, bi�grafa de Jorge Amado, curadora da Flip de 2017, que � a organizadora da cole��o. “Independentemente da comprova��o do seu argumento, Ni�de mostra, com sua trajet�ria, que o fazer cient�fico n�o � desprovido de luta pol�tica”, acrescenta, ao prefaciar o livro de uma mulher que assim se definiu: “Ni�de Guidon, arque�loga e ponto”. 

Capa do livro 'Niéde Guidon, uma arqueóloga no sertão'

“Ni�de Guidon, uma arque�loga no sert�o”
• Adriana Abujamra
• Editora Rosa dos Ventos
• 256 p�ginas
• R$ 54,90

Cronologia

>> 1933 - Em 12 de mar�o, nasce Ni�ge Guidon, em Ja� (SP), filha de pai franc�s e m�e Brasileira

>> 1959 - Graduada em Hist�ria Natural pela Universidade de S�o Paulo

>> 1962 - Especializa-se em Arqueologia Pr�-Hist�rica na Universidade Paris-Sorbonne 

>> 1963 - Escuta pela primeira vez, de um prefeito de Petrolina (PE), relatos sobre  pinturas rupestres no Piau�

>> 1964 - Exila-se na Fran�a

>> 1970 - Volta ao Brasil para acompanhar a antrop�loga Vilma Chiara numa pesquisa sobre o povo ind�gena krah�, no Tocantins. Ao final da viagem, vai at� o Piau� em busca dos s�tios arqueol�gicos. Faz o registro dos achados.

>> 1973 - Patrocinada pelo governo franc�s, lidera uma miss�o arqueol�gica ao Piau�.

>> 1975 - Defende tese de doutorado na Universidade Paris-Sobornne, “ Les peintures rupestres de Varzea Grande, Piau�, Br�sil”, sob a orienta��o de Andr� Leroi-Gourhan. 

>> 1979 - A atua��o de Ni�de possibilita a cria��o do Parque Nacional da Serra da Capivara

>> 1986 - Cria��o da Funda��o Museu do Homem Americano (Fumdham), institui��o civil, sem fins lucrativos, a partir de uma coopera��o entre cientistas brasileiros e franceses para a exibi��o do acervo arqueol�gico encontrado no Parque Nacional da Serra da Capivara

>> 2018 - Inaugura o Museu da Natureza 

>> 2020 - Aposenta-se


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