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Estado de Minas DIA DA RAINHA DAS �GUAS

Iemanj�, a divindade africana que ganhou fei��o branca no Brasil

Se a divindade � originalmente negra, por que sua representa��o mais comum em terras brasileiras � de uma mulher branca?


02/02/2022 07:35 - atualizado 02/02/2022 08:25

Cerimônia em homenagem a Iemanjá, no Rio Vermelho, em Salvador, em 02 de fevereiro de 2020
Iemanj� � uma divindade originalmente negra (foto: RAFAEL MARTINS/AFP via Getty Images)
Se a �gua � a subst�ncia fundamental para a vida, talvez n�o haja met�fora melhor para representar a m�e da humanidade.

Iemanj�, divindade cuja data � celebrada em 2 de fevereiro, � a rainha das �guas e, acreditam os que a cultuam, a figura materna que irmana todas as pessoas.

Em terras brasileiras — ou seja, nas pr�ticas religiosas trazidas por africanos na di�spora for�ada durante os s�culos de regime escravagista e tr�fico de m�o de obra compuls�ria —, o orix� feminino ganhou ainda um significado que remete � ancestralidade.

 

Afinal, se entendermos as costas brasileira e do continente africano como duas margens do mesmo imenso rio, o Oceano Atl�ntico, � Iemanj� quem promove a uni�o, por ser ela a divindade das �guas.

 

"Iemanj� � a representa��o da grande m�e da tradi��o iorub�", explica o soci�logo, antrop�logo e babalorix� Rodney William Eug�nio, doutor pela Pontif�cia Universidade Cat�lica de S�o Paulo (PUC-SP).

 

"Seu nome vem da express�o 'a m�e dos peixes' ou 'a m�e cujos filhos s�o como peixes'. � considerada a m�e de todos, a que nos prepara para a vida, nos d� a imensid�o das �guas para que possamos realizar todas as potencialidades", afirma Eug�nio. Na l�ngua original, seu nome � Yemoja.

 

Contudo, atualmente h� uma problematiza��o que se torna evidente: se a divindade � originalmente negra, por que sua representa��o mais comum em terras brasileiras � de uma mulher branca?

 

A resposta estaria na viol�ncia do processo de sincretismo, muitas vezes romantizado como algo inerente a tal "democracia racial".

Dos rios para o mar

Para os que acreditam, ela tem a propriedade de "comandar as cabe�as", reger o dom�nio da consci�ncia.

 

"Na tradi��o iorub�, dizem que a cabe�a carrega o corpo, ent�o � ela quem traz o equil�brio emocional e ps�quico", prossegue o babalorix� Eug�nio.


Imagem de Iemanjá caracterizada como branca
A representa��o mais comum de Iemanj� no Brasil � de uma mulher branca (foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr - Ag�ncia Brasil )

 

"Yemoja � a m�e de todas as �guas. Se existe �gua, existe Yemoja, se n�s existimos � porque Yemoja existe. N�o h� uma cabe�a que Yemoja n�o tocou e cuidou. e n�o h� uma cabe�a que Yemoja n�o possa tocar e cuidar", diz a estudiosa do tema Yasmin Fernandes Sales dos Santos, psic�loga e mestre em sociologia pol�tica.

 

"Iemanj� � um orix�, ou seja, uma divindade africana cultuada a partir do pante�o divino dos povos iorub�s. Embora, no Brasil, assuma t�tulos e caracter�sticas de 'rainha do mar', na �frica, � cultuada na regi�o de Abeokut�, na Nig�ria, onde seus cultos se estabeleceram inicialmente nas �guas doces do rio Yemoja, entre If� e Ibadan", contextualiza o sacerdote de umbanda David Dias, pesquisador em ci�ncia da religi�o na PUC-SP.

 

Ou seja: para os iorub�s, ela � a divindade dos rios. Essa transposi��o para os mares � resultado do movimento de di�spora quando, j� nos chamados navios negreiros, a ela continuaram recorrendo os "seus filhos".

 

Dias explica que por ser "orix� das cabe�as", ela "concede sa�de mental" e "prop�e harmonia entre o sentimento e a raz�o".

 

"Esta orix� traduz o s�mbolo feminino das mulheres dos seios fartos, � capaz de alimentar todo o mundo. � a orix� que nutre, que alimenta, gerando abund�ncia e prosperidade �s suas filhas e seus filhos", completa.

 

Eug�nio ressalta que todo orix� tem seus arqu�tipos mas o que sintetiza Iemanj� � o da "grande m�e".

 

"Todos somos filhos de Iemanj�, ela � a grande m�e do mundo, a representa��o das �guas que, pelos oceanos, unem todos os continentes", argumenta ele.


Ilustração de Iemanjá negra de autoria de Priscila da Cunha
O embranquecimento de Iemanj� � visto, por estudiosos atuais, como resultado de uma constru��o racista do s�culo 20 (foto: Priscila da Cunha)

"Ela traz tamb�m essa no��o fundamental de ancestralidade."

 

"A mensagem de Iemanj� para a humanidade � de uni�o, de respeito, de igualdade. Todos lembrando que somos filhos dela, somos irm�os", resume o babalorix�.

 

"Na festa de Iemanj� est�o todos, n�o s� os adeptos do candombl�. S�o pessoas de v�rias origens, v�rias cren�as e ela aben�oa a todos sem nenhuma distin��o."

No Brasil

Os estudiosos ouvidos pela reportagem acreditam que a divindade ganhou import�ncia no Brasil justamente por conta do processo de escraviza��o.

 

Por ter ela esse papel materno e, consequentemente, fazer de todo uma s� fam�lia, ela foi fundamental para refazer os la�os dos escravos separados de seus parentes durante o processo de migra��o violenta e for�ada.

"Em torno dela as fam�lias se organizam", diz Eug�nio.

 

"Para as religi�es de matriz africana, ela foi a possibilidade de refazer, reinventar a fam�lia, que no processo de escraviza��o havia sido esfacelada. Em termos simb�licos, Iemanj� representou o compromisso de recriar a fam�lia, promover a uni�o na di�spora."

 

Para o historiador Guilherme Watanabe, pai de santo do terreiro Urubat�o da Guia, em S�o Paulo e membro fundador do Coletivo Navalha, no Brasil o culto a Iemanj� foi a resposta "ao rompimento dos la�os familiares e afetivos" causados pelo regime escravocrata.

 

"Com o sequestro das fam�lias africanas, h� epis�dios de mortes de familiares ainda nos navios negreiros e a separa��o deles no desembarque, quando eram encaminhados para locais diferentes de trabalho", pontua.

 

"Ser filho ou filha de orix� era uma forma de estarem ligados � sua origem ancestral, uma forma de recapitular o passado, reestruturar os la�os."


Celebração a Iemanjá em praia do Rio de Janeiro, no início dos anos 1970
Celebra��o a Iemanj� em praia do Rio de Janeiro, no in�cio dos anos 1970 (foto: Arquivo Nacional)

 

No Brasil, a devo��o a ela "extrapola as religi�es de matriz africana", ressalta Eug�nio.

 

"Todos os brasileiros de um jeito ou de outro s�o devotos dela. Ela � a grande m�e do povo brasileiro, faz parte do imagin�rio. Est� profundamente arraigada em nossa forma��o."

 

"H� quem diga que Iemanj� � uma santa cat�lica, muita gente confunde e acha isso. Isso � um tra�o de acultura��o que faz parte da forma��o do povo brasileiro. Vamos juntando elementos", prossegue Eug�nio.

Representa��o

"Ela � uma senhora de ancas largas, que pariu toda a humanidade e todos os orix�s. Com seus seios fartos amamentou toda a humanidade", diz Eug�nio.

 

"Dizem que os rios s�o como o leite de Iemanj� escorrendo em dire��o ao oceano. Se temos uma m�e em comum tamb�m temos elos, os mesmos direitos."

 

Na quest�o da representa��o reside o principal problema da maneira como Iemanj� acabou sendo incorporada ao imagin�rio brasileiro.

 

Porque, originalmente uma divindade africana, � natural que suas primeiras e originais representa��es fossem de uma m�e negra.

 

E seu embranquecimento � visto, por estudiosos atuais, como resultado de uma constru��o racista do s�culo 20, que buscou tornar suas fei��es mais "europeias".

 

Nesse sentido, uma viol�ncia cultural.

 

"A figura de Iemanj� que est� no imagin�rio coletivo � aquela imagem da mulher branca de cabelos longos com sua t�nica azul, se confundindo um pouco com as �guas do mar", pontua Eug�nio.

 

"Foi um processo de acultura��o que levou � difus�o dessa imagem. Tem a ver com sincretismo, com a acultura��o.

 

Para o babalorix�, "isso tem de ser respeitado".


Ilustração de Iemanjá negra de autoria de Priscila da Cunha 1
(foto: Priscila da Cunha)

"Povos diferentes, quando convivem, ou eles sincretizam ou eles se matam. Ent�o � importante respeitar, embora essas coisas tenham sido impostas: um povo � submetido � viol�ncia de abarcar uma outra cultura e ent�o acaba assimilando essa cultura".

 

Outros pesquisadores do assunto t�m uma postura mais cr�tica frente a essa transforma��o.

 

Watanabe ressalta que a ideia de sincretismo "apaga os processos hist�ricos que deram origem a esse am�lgama de divindades."

 

Mas reconhece que o sincretismo existe inclusive com tradi��es ind�genas.

"Muitas vezes Iemanj� � confundida com Jana�na, que seria a divindade da cultura dos povos origin�rios do Brasil, uma sereia", exemplifica.

 

Evidentemente que o processo mais dominador e muitas vezes violento dessa mistura se deu mediante o choque desigual com a religiosidade trazida pelos europeus.

 

"Entender que o processo violento de sincretismo foi �til para que muita sabedorias ancestrais vindas na di�spora sobrevivessem at� hoje � fundamental", afirma Santos.

 

"Mas � fundamental tamb�m entender que, diante de tantos outros processos de mudan�a, n�s, sobretudo mais novos, n�o precisamos do sincretismos como os nossos mais velhos precisaram num outro tempo para dar continuidade ao culto."

 

Durante o per�odo da escravid�o, para conseguirem manter seus cultos, era comum que os africanos e seus descendentes precisassem recorrer a figuras do catolicismo.

 

"Eles eram proibidos por seus senhores brancos e tamb�m pelos religiosos cat�licos de manterem suas cren�as e ent�o uma forma que encontraram para continuar foi disfar�ando suas divindades de santos cat�licos", contextualiza a jornalista Bell Kranz, autora do livro 21 Nossas Senhoras que Inspiram o Brasil.

 

Em suas pesquisas ela encontrou associa��es de Iemanj� com diversas denomina��es de Nossa Senhora.

 

"Especialmente Nossa Senhora da Concei��o, Nossa Senhora dos Navegantes, Nossa Senhora da Gl�ria, Nossa Senhora das Dores e Nossa Senhora das Candeias", pontua ela.

 

N�o � por coincid�ncia, ali�s, que o 2 de fevereiro � tanto dia de Iemanj� como de Nossa Senhora das Candeias — tamb�m chamada de Nossa Senhora da Luz.


Homenagens a Iemanjá no Rio Vermelho, em Salvador, em 02 de fevereiro de 2020
Homenagens a Iemanj� no Rio Vermelho, em Salvador (foto: RAFAEL MARTINS/AFP via Getty Images)

O arqu�tipo semelhante tamb�m ajudou nessa situa��o. Para os crist�os, afinal, a figura de Nossa Senhora � a m�e de Jesus.

 

Especialmente para os cat�licos, ela tamb�m � reconhecida como m�e da humanidade, m�e de todos, senhora da fam�lia.

 

E se voc� j� usou branco numa festa de Rev�illon, conscientemente ou n�o, tamb�m participou desse processo de sincretismo.

 

Esse fen�meno cultural est� intimamente ligado ao trabalho realizado para popularizar a Iemanj� em terras brasileiras, realizado pelo pai de santo Tancredo da Silva Pinto (1904-1979), o Tata Tancredo, no Rio de Janeiro.

 

"Conhecido como o 'papa da umbanda', ele foi quem criou a cultura de celebrar Iemanj� no �ltimo dia do ano, quando reunia milh�es de religiosos, inspirando brasileiros, independentemente de cren�a ou religi�o, a vestirem roupas brancas mesmo sem conhecer o motivo", conta Dias.

 

"Muitos vestem branco na virada do ano pensando que � para pedir paz, muitos v�o at� a praia jogar rosas brancas… S�o rituais macumbeiros, e muitos que t�m um pezinho na igreja evang�lica ou no catolicismo est�o l� realizando esse tipo de ritual. Tudo isso vem da populariza��o das macumbas", comenta Watanabe.

 

"Com o processo de sincretismo e apagamento dos cultos de matriz africana no Brasil, os orix�s, sobretudo Yemoja, que acabou por ficar muito popular no pa�s, sofreram altera��es e processos simbi�ticos com as caracter�sticas dos santos cat�licos", complementa a psic�loga Santos.

 

"Mas vale lembrar que orix� n�o � santo e que Yeoja n�o � Nossa Senhora."

Branqueamento de Iemanj�

H� alguns registros que demonstram uma europeiza��o das caracter�sticas de Iemanj� j� no s�culo 19, muitas vezes a aproximando de representa��es de Nossa Senhora.

 

Mas a imagem que acabou se sobrepondo �s outras representa��es e dominando o inconsciente coletivo remonta aos anos 1950.

 

Conforme explica o sacerdote umbandista e pesquisador Dias, tudo come�ou quando uma carioca chamada Dalla Paes Leme afirmou ter tido uma vis�o de Iemanj� e encomendou a pintura de um quadro com essa representa��o.

 

"Curiosamente e, em pouco tempo, criam-se movimentos de promo��o do quadro da nova imagem, al�m de selos postais, eventos, romarias resultantes de um movimento chamado pelo jornal 'Luta Democr�tica' de 'yemanjismo'", relata Dias.

 

O pesquisador lembra que ela era "uma aristocrata e publicit�ria" e acabou fomentando uma tradu��o de "est�tica branca para a divindade por meio de uma peregrina��o" do quadro aos terreiros de umbanda da �poca.


Celebração a Iemanjá em praia do Rio de Janeiro, no início dos anos 1970 1
Para os que acreditam, Iemanj� tem a propriedade de 'comandar as cabe�as', reger o dom�nio da consci�ncia (foto: Arquivo Nacional)

Segundo Dias, essa tradicional imagem "pode ser considerada o marco do embranquecimento e acultura��o da orix�".

 

"N�o por acaso, a fisionomia da 'nova Iemanj�' se d� mediante � sequela que o fen�meno do sincretismo deixa enquanto processo de apagamento e convers�o cultural", prossegue.

 

"A orix�, traduzida pela est�tica crist�, traz agora o mesmo estere�tipo das virgens santas, perdendo completamente seus tra�os africanos. A partir de ent�o, exclui-se os grandes seios que alimentam o mundo, cobre-se seu corpo, retiram-se as no��es daquela que � m�e dos filhos peixes em detrimento da santa virgem que jamais dan�ou ao toque dos atabaques de umbanda", comenta o sacerdote.

 

Para Watanabe, a Iemanj� representada como "a tal da mo�a branca com vestido azul" � um legado de grupos umbandistas conhecidos como "umbanda branca".

 

"� das imagens que mais circulam, muitos t�m uma dessas em suas casas", reconhece.

 

"Acredito que se trate de uma tentativa descarada de apropria��o de uma divindade africana e apagamento de toda uma hist�ria e de uma cultura que s�o negras", argumenta Watanabe.

 

"Criticamos muito essa imagem. Todos os orix�s s�o negros porque t�m uma cultura de origem, um territ�rio de origem e esse territ�rio � a regi�o de l�ngua iorub�, em grande parte sintetizado na atual Nig�ria."

 

Ele afirma que muitos apregoam que "orix� n�o tem cor porque � energia".

 

"Mas isso � uma disforia criada a partir dessas umbandas que foram invadidas por conhecimentos alien�genas, estranhos a elas. Esses esoterismos, essa tentativa da umbanda de se vincular a narrativa do mito da democracia racial, essa tomada da umbanda pelos grupos brancos que corroboram para o embranquecimento da mesma, isso tudo deu origem a essa imagem de Iemanj� branca", defende.

 

Watanabe define o fen�meno como uma "viol�ncia aos povos negros, a cultura negra".

 

"A imagem deve ser substitu�da, de fato. N�o pode seguir circulando da forma como circula. Simbolicamente � um aviltamento da cultura negra", critica.

Santos concorda e ressalta que a "descaracteriza��o e o esvaziamento racista" feito com a orix� � um problema.

 

"Essa Yemoja branca, com cabelos lisos, longos, magra, recatada, mansa e do lar que �, na verdade, uma imagem europeia crist�, n�o d� conta de quem Yemoja � e de quem ela pode vir a ser, porque Yemoja � isso: possibilidade", diz.

Dias acrescenta que o "processo de sincretismos" sempre � visto "como um fen�meno de domina��o".

 

"Independente das rela��es e das trocas por ele produzidas, sempre haver� uma cultura de domina��o sobreposta a uma cultura dominante. A inven��o da imagem de Iemanj� traduz um Brasil que vivemos hoje em que, feito as redes sociais, adiciona filtros para tornar as imagens 'mais aceitas e palat�veis' pela sociedade que teima em manter o seu pseudo-status antirracista", argumenta ele.

 

"Todavia, h� algo de curioso em tudo isso: n�o se encontram tradu��es de divindades de outras culturas t�o facilmente quanto as africanas. Nunca se viu uma imagem de Sidarta Gautama, o Buda, enquanto um homem negro, de dreadlocks e brincos nas orelhas. N�o se colocam mantos e retiram-se as ins�gnias hindus de Shiva. Por outro lado, quando se questiona a identidade t�o quanto a cor da pele de Cristo, o clero se levanta em defesa de uma tradi��o inventada para apagar a exist�ncia de um povo."

 

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