Jornal Estado de Minas

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De volta ao presencial, mostra Cine BH traz América Latina como condição


Após dois anos em formato on-line, Belo Horizonte recebe novamente a CineBH, em diversos pontos da cidade. São 17 longas-metragens de 10 países da América Latina, falados em diversas línguas, não somente as oficiais das gramáticas de matrizes ibéricas (o português e o espanhol). A maior novidade da programação da 16ª Mostra CineBH é o segmento latino-americano chamado Continente. Não é um nome qualquer. Pressupõe que existe, além de uma geografia nominada América Latina, composta de 20 países entre México, na América do Norte, e o Uruguai, no Sul da América do Sul, outros laços de aproximação. 





Por que enfatizar os cinemas da América Latina, mesmo mantendo uma programação predominantemente de filmes brasileiros? Como não realizar apenas mais um evento brasileiro concentrado no cinema latino-americano? De que modo encarar essa mudança no perfil do evento como atitude de responsabilidade com audácia? Como não tratar o cinema destas bandas como um universo de vulnerabilidades a serem defendidas porque são vulneráveis? Como não deixar de esperar arte mesmo quando esta arte tem um papel político menos ou mais incisivo em seu modo de se apresentar?

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São perguntas constantes e devem permanecer sendo feitas. Lidar com os cinemas latino-americanos significa de princípio encarar uma rede de contradições, complexidades, dificuldades, persistências, filtros, conceitos, imprecisões e desconhecimentos. O próprio conceito de latino e de latinidade já seria suficiente para um extenso seminário. Estaríamos assumindo uma noção europeia de matriz romana? Não existem respostas fáceis e únicas na América Latina.

Não existe muita coisa por aqui. Nem sequer um observatório do cinema da América Latina, com dados dos diferentes países e informações reunidos em um mesmo lugar. São raras as revistas e sites específicos de cinema latino-americano. Alguns países ainda engatinham em suas organizações internas e institucionais de cinema. Estamos tão perto e tão longe, sobretudo quando se olha e se sente a partir do Brasil. Continua sendo uma missão, mais que profissão, fazer cinema em vários países.

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Somos latinos. Por quê? Há muitas especificidades no interior de cada país, multiplicidades culturais acima da noção de unidade nacional ou continental, mas essas particularidades compõem um bloco interconectado. Há familiaridade nas consequências a longo prazo dos processos colonizatórios impostos por europeus, com exploração de mão de obra escrava para efetuar a depredação dos solos pela extração de minérios e pelo cultivo de cana-de-açúcar. 





Mostra Continente porque, se o nome une, não homogeneiza. Não se trata de unidade étnica ou de território geográfico. América Latina é uma condição estruturante em sua radical heterogeneidade. A latinidade é um mix cultural, étnico e idiomático. Ser latino não é ser descendente de europeus de línguas latinas, como portugueses, espanhóis, italianos e franceses, mas integrar uma sociedade de afetações e fricções culturais. Apesar da mão pesada da colonização ibérica, os poderes nunca apagaram os desvios e resistências.

Esse mix cultural é de longa data, desde mais de 2 mil anos, e tem origem na “contaminante” expansão do latim como língua de unidade das diferenças ao longo do Império Romano, nas proximidades do marco zero cristão e em seu primeiro século, com adaptações da língua oficial às particularidades de cada língua local e de cada sotaque, assim criando um latim multifacetado, sem a rigidez do latim oficial. Portanto, se os europeus de línguas derivadas do latim não se consideram latinos, têm razão. Latinos e latinas são as sociedades baseadas nas misturas nem sempre harmônicas entre diferenças 

A noção de latino-americano que nos interessa, portanto, não é a de evocação genealógica dos colonizadores europeus, nem sequer o sentido pejorativo de cidadão de segunda classe da geopolítica, com sua colocação entre as sociedades mestiças e atrasadas. Ser latino ou latina é ser fruto de um caldeirão onde muita coisa foi misturada a gosto e a contragosto, criando uma zona de instabilidades cíclicas e um solo fértil de invenções, justamente a partir da condição de habitante de uma terra dizimada em muitas circunstâncias

No cinema latino-americano, sobretudo nas co-produções internacionais com fundos europeus, uma questão se impõe com força, embora às vezes naturalizada demais. Em nome da internacionalização da produção, do financiamento e da exibição, há risco de submissão aos padrões da Europa rica. Ou de se comportar e criar como se a internacionalização fosse uma batalha por uma senha de acesso. Uma internacionalização da América Latina não pode se dar de fora para dentro, decidida mais uma vez pela Europa. Um dos caminhos alternativos são as parcerias cinematográficas entre empresas e instituições de diferentes países da própria América Latina. 

O questionamento sobre quais os tipos de internacionalização para os filmes da América Latina é complementado pelo questionamento sobre quais os tipos de latinidade implicada nesta internacionalização. Percebe-se uma constância de personagens enredados em questões violentas por diferentes razões. Alguns circulam bem pelos festivais com a exposição às vezes espetacular das dores e dos sofrimentos. Tentamos nos desviar no processo de seleção e programação desses casos nos quais os códigos para obter a senha internacional são gritantes para lograr êxito na aceitação. 





A programação acentua em sua arquitetura desvios mais evidentes e mais discretos em relação a essas senhas de acesso às palmas dos europeus (franceses especialmente), resultado de um conjunto de diretores e diretoras em seus primeiros filmes e com menos de 40 anos na maioria dos casos. Parte dos filmes circulou por festivais importantes, outros circularam menos, vários tiveram apoios públicos nacionais, outros foram realizados à margem das instituições do Estado. 

A maioria dos filmes está sendo exibida pela primeira vez em telas brasileiras. É uma rara circunstância propícia para se olhar com outros olhos essa produção que ora confirma alguns pressupostos de se viver por estes lados e ora surpreende por lidar com as situações narrativas sem lutar para parecer um filme de seu país. Belo Horizonte tem assim um novo perfil de mostra de cinema para ser descoberto em suas sutilezas.


* Cleber Eduardo é crítico de cinema e curador da 16ª edição da mostra CineBH