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Estado de Minas PENSAR

Joca Reiners Terron: narrativa perturbadora em 'Onde pastam os minotauros'

Novo livro do autor de 'Noite dentro da noite' faz reflex�o sobre desigualdade social mesclando realidade e mitologia na rotina de crueldade de um abatedouro


25/08/2023 04:00 - atualizado 25/08/2023 00:20
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boi com alvo
(foto: Arte/EM)

 
Depois dos apocal�pticos “A morte e o meteoro” (2019) e “O riso dos ratos” (2021), o cuiabano Joca Reiners Terron, um dos melhores escritores brasileiros da atualidade – porque ningu�m termina de ler um livro dele “impunemente” – retorna com mais uma obra inquietante sobre o desastre civilizat�rio com “Onde pastam os minotauros” (editora Todavia), desta vez com inspira��o num instigante elemento fant�stico, o Minotauro grego. A narrativa �gil, com cap�tulos curtos, apresenta a rotina dos tr�s protagonistas – Crente, C�o e Lucy – num abatedouro de bois halal cercado por planta��o de soja em lugar imagin�rio no interior do Mato Grosso. A vida conturbada dos tr�s leva o leitor a reflex�es diversas, desde a matan�a exacerbada de animais para o consumo humano igualmente exagerado, trag�dias da pandemia, o insol�vel conflito �tnico religioso no Oriente M�dio trazido para o Brasil e, finalmente, a complexidade da condi��o humana no planeta.

Eles t�m muitos motivos para odiar o trabalho, principalmente, depois que o abatedouro � vendido para mu�ulmanos e passa a adotar novas regras no abate dos animais. Conforme a tradi��o mu�ulmana, o abatedor tem de ser mu�ulmano, por isso, Ahmed – que sofre porque sua fam�lia foi dizimada por israelenses – assume essa fun��o de degolar o gado, para desgosto dos demais funcion�rios, que ficam relegados a segundo plano. C�o � um manejador que tem compaix�o pelos bois, ent�o, cabe a ele trat�-los bem e conduzi-los cegamente para a morte. Isso porque um manejador cruel, obviamente, enfrentar� resist�ncia dos animais. C�o, entretanto, percebe que � manipulado pelos donos do abatedouro, que visam nada mais do que o lucro, e se rebela contra isso passando para o tr�fico de drogas, do qual tamb�m ir� se arrepender.

Lucy Fuerza, a namorada do C�o, � a secret�ria que odeia os dois patr�es, que se preparam para receber o grupo de inspetores religiosos que atestar�o a qualidade da carne para exporta��o. E Crente vive o drama de ter perdido a mulher para a pandemia e ver a filha tamb�m doente � beira da morte num hospital, com a culpa de t�-las contaminado. Enquanto os protagonistas destilam �dio e buscam vingan�a em meio � abund�ncia de carne dentro do matadouro, do lado de fora, uma horda de miser�veis fica � espera de um m�sero osso para matar a fome. Terron faz o contraponto entre o excesso de carne do lado de dentro e a escassez do lado de fora, num corte expl�cito do drama da desigualdade social.

Mas o que � inquietante mesmo em “Onde pastam os minotauros” � a crueldade na degola de bois dependurados. � dif�cil um leitor que come carne ficar indiferente ao longo da narrativa. N�o seria surpresa se interromper esse card�pio pelo menos enquanto l� o livro, embora Terron n�o creia nessa possibilidade. “N�o acredito que uma obra de fic��o possa ter efeito t�o concreto. Eu n�o tinha em mente qualquer aspecto moral que porventura o livro possa trazer, ao menos n�o no sentido que uma f�bula de Esopo tem, delineada e inflex�vel. Talvez a hist�ria do C�o, do Crente e de Lucy Fuerza apenas queira incutir algumas perguntas na cabe�a do leitor, provavelmente sem respostas. Mas n�o sou alheio � ideia de que o �ltimo anseio moral da literatura � mudar o mundo”, disse ele em entrevista ao Pensar.


MINOTAUROS


A fa�anha de Terron em “Onde pastam os minotauros”, entretanto, vai al�m de dramas pessoais. Numa guinada fant�stica, o autor conduz a narrativa para o outro lado, o ponto de vista dos bois perplexos com a crueldade humana. O leitor mais antenado vai se lembrar do poema “Um boi v� os homens”, do livro “Claro enigma” (1951), de Carlos Drummond de Andrade – declamado pelo pr�prio Terron em v�deo dispon�vel no YouTube. E mais do que isso ainda, faz do abatedouro um labirinto e vice-versa. No del�rio do C�o para compreender os bois, surgem as criaturas metade humana, metade touro, os minotauros, habitando o abatedouro-labirinto, um paradoxo que Terron jogo no colo do leitor para reflex�o. “Ningu�m nunca ouviu essa hist�ria do nosso ponto de vista. Em todos os lados, nas cidades e no campo, nos supermercados e nas planta��es, exceto os santos, as crian�as e os idiotas, como esse que nos guia atrav�s do curral circular, e portanto est�o mais dispostos �quilo que dizemos, porque o conhecimento real que eles t�m de sua pr�pria mis�ria deixa o nosso abate quase intoler�vel, n�o existe quem nos ou�a. O touro pensa que o matadouro � o labirinto e o homem � o minotauro. Assim, ao touro, s� lhe cabe o papel de homem. Ningu�m nunca ouviu essa hist�ria. A hist�ria do minotauro do ponto de vista dos bois. N�s n�o fazemos nada al�m de comer o que nos d�o e tramar nossa vingan�a”.

Em meio � crueldade e � alucina��o, Terron desenvolve, ent�o, um thriller instigante e fant�stico para um desfecho imprevis�vel que caminha para o confronto entre os abatedores, os donos do abatedouro-labirinto e, � claro, os bois confinados e sedentos de liberdade.

OBRAS PARA REFLEX�O


Joca Reiners Terron se destaca como um dos principais escritores contempor�neos pela diversidade de temas, estilo, linguagem e ousadia de suas obras, desde os primeiros livros, “Hotel Hell” (contos) e “N�o h� nada l�”, este um curioso del�rio liter�rio que entrela�a a vida de personalidades famosas. Em “Noite dentro da noite”, o escritor mescla metalinguagem, polifonia e atemporalidade na vida de um menino que perde a mem�ria durante uma brincadeira na escola. Nesta obra, o contexto de amn�sia leva o protagonista j� adulto a uma viagem ao horror do nazismo e tamb�m � ditadura militar brasileira nos anos 1970. A complexa trama, al�m desses fatos hist�ricos, inclui at� elementos m�sticos e uma flor-vampiro. 

Outra obra curiosa � “A tristeza extraordin�ria do leopardo-das-neves”, narrativa policial e fant�stica envolvendo um zool�gico. De novo, Terron apresenta o tema da identidade, a “criatura” sem nome, portadora de doen�a rara e v�tima de preconceito e viol�ncia. M�ritos tamb�m para “Do fundo do po�o se v� a lua” venceu o pr�mio Machado de Assis da Biblioteca Nacional com a hist�ria de dois g�meos id�nticos separados ap�s a morte do pai e que trilham destinos diferentes. Com uma trama lastreada em S�o Paulo e no Cairo, Terron aborda o dif�cil tema da transexualidade dos protagonistas William e Wilson/Cle�patra, cuja mudan�a radical de vida surge da fantasia cinematogr�fica da rainha eg�pcia interpretada pela atriz Elizabeth Taylor, com uma narrativa literalmente fant�stica.

Antes de “Onde pastam os dinossauros”, Terron escreveu “A morte e o meteoro” e o “O riso dos ratos”. O primeiro � uma ousada aventura liter�ria que parte da Amaz�nia destru�da e tem como protagonista um indigenista com a miss�o de levar os �ltimos remanescentes ind�genas para o M�xico, mas os seus interesses s�o obscuros em meio a segredos ancestrais e insetos alucin�genos.

Em “O riso dos ratos”, o escritor conta a hist�ria de um homem com doen�a terminal que tenta vingar o estupro da filha num mundo em que a popula��o foi dizimada por uma febre. As cidades est�o em ru�nas, invadidas pela vegeta��o, sujeira e esgoto e os sobreviventes s�o escravizados por uma mil�cia religiosa e obrigados a se alimentar de cachorros, ratazanas e outros animais famintos capturados. E as mulheres s�o confinadas como rebanhos para reprodu��o sexual. Uma porrada no est�mago do leitor desavisado. (Leia entrevista com Joca Reiners Terron na p�gina 4)
 

“ONDE PASTAM OS MINOTAUROS”

  • Joca Reiners Terron
  • Editora Todavia
  • 184 p�ginas
  • R$ 69,90 (impresso)
  • R$ 49,90 (e-book)
 
 

TRECHO DO LIVRO

 
“O C�o tinha pedido demiss�o do matadouro e come�ado a traficar crack. Descobrira algo sobre si mesmo: que era usado pelos patr�es. Sua piedade pelos animais fez dele o melhor manejador da regi�o: o gado o seguia como ao flautista de Hamelin, ele que dizia isso, seguia-o at� o despenhadeiro. O Crente n�o sabia bem quem era o tal flautista nem para que banda ficava Hamelin, se perto de Amambai ou de Aquidauana, mas conseguia entender o que o C�o queria dizer. Os touros t�m uma mem�ria inabal�vel, n�o se esquecem de uma m�goa. S�o incont�veis os manejadores que maltratam o gado nos currais de engorda e depois n�o servem para os currais de matan�a, pois ao v�-los os animais recuam ou empacam no brete, a caminho do abate, precisando levar choques el�tricos para sa�rem do lugar. O estresse da situa��o deixa o processo perigoso e endurece a carne, que acaba sendo descartada pelos fiscais mu�ulmanos. Se o manejador � violento no pasto ou no curral de engorda, n�o serve para o matadouro. Os manejadores de matan�a precisam ser suaves e silenciosos, como o C�o. O gado o acompanha cegamente para a morte.

Quando a piedade do C�o passou a ser usada para servir ao abate industrial de animais, quando ele adquiriu consci�ncia de que seu carinho pelo gado s� servia para esse apaziguamento de fundo econ�mico, que seu amor pelos bichos amaciava a carne deles, aumentando o valor do quilo, decidiu arranjar outro modo de sobreviv�ncia: passou a vender a droga, primeiro aos funcion�rios do frigor�fico, depois aos fodidos do distrito. Logo, com o suic�dio de um cliente, um velho serrador de porco aposentado, descobriu que vender crack equivalia � mesma troca suja entre vida e morte, talvez apenas menos dolorosa. Talvez era boa porque apaziguava a fome. Um dia o C�o disse ao Crente que os bois estavam fadados a n�o conhecer a morte natural. Eram abatidos, at� mesmo uma vaca leiteira que cumpriu seu ciclo produtivo, no meio da vida. Sabemos quantos anos um cachorro e um gato vivem, mas n�o um touro. N�o quis atrair mais ningu�m para a morte, e no final, ao ser preso por tr�fico numa burrada, num vacilo que at� parecia ter sido por querer, o Crente chegou a suspeitar que a pris�o tinha sido um al�vio para ele. Ao ser solto quatro anos depois, o C�o j� n�o parecia ser a mesma pessoa.”
 


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