Uberl�ndia – Um mist�rio intriga o ex-governador de Minas Rondon Pacheco, de 94 anos. Na sala do seu apartamento, no Centro da cidade da Regi�o do Tri�ngulo, ele tenta descobrir, a todo custo, o nome do autor de um quadro em cores vibrantes, pendurado na parede, que retrata as montanhas e o Santu�rio do Cara�a, um dos patrim�nios culturais mais importantes das Gerais. Ele pede ajuda ao rep�rter para ver se decifra o enigma, mas nada de entender a assinatura do artista. "A tela � bonita. Foi um presente que minha mulher, Marina, ganhou e eu gostaria de saber quem � o pintor", diz o homem l�cido e de semblante tranquilo que, diante da obra, exalta o seu amor pelo estado e pelo Brasil: "Este pa�s � um continente". H� tempos avesso a entrevistas, Rondon comenta que est� "velho demais" para falar � imprensa, mas sorri discretamente ao ser lembrado que, querendo ou n�o, sua trajet�ria � parte da hist�ria nacional, ainda mais quando est� em destaque o Golpe de 1964, que dep�s o presidente Jo�o Goulart (1919-1976), levou os militares ao poder e completa 50 anos em 31 de mar�o.
O assunto n�o agrada de imediato o civil que esteve no centro do poder em momentos de alta tens�o durante o per�odo militar (1964 a 1985), entre eles a assinatura do Ato Institucional nº 5, o AI-5, em 13 de dezembro de 1968, que instalou para valer a ditadura, com o fechamento do Congresso Nacional, fim do Estado de direito e come�o do regime de exce��o. Rondon � a testemunha viva da reuni�o que definiu o destino do Brasil e foi, ao lado do vice-presidente da Rep�blica, o mineiro Pedro Aleixo (1901-1975), uma voz contr�ria ao autoritarismo exacerbado do AI-5.
Entravam em cena os chamados anos de chumbo. "N�o vou censurar um governo do qual participei", afirma Rondon, que, de mar�o de 1967 a outubro de 1969, ocupou o cargo de ministro-chefe do Gabinete Civil do presidente da Rep�blica, o marechal Artur da Costa e Silva (1899-1969). Com este depoimento de Rondon Pacheco, o Estado de Minas d� in�cio hoje a uma s�rie de reportagens que ser�o publicadas aos fins de semana relacionadas ao cinquenten�rio do epis�dio que mudou os rumos do Brasil, deixou marcas e acende de novo debates inflamados.
Como integrante do minist�rio de Costa e Silva, Rondon esteve presente � reuni�o, no Pal�cio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, que sacramentou o texto do AI-5, redigido pelo ministro da Justi�a, Lu�s Ant�nio da Gama e Silva (1913-1979). De boa mem�ria, o ex-chefe da Casa Civil se lembra bem da data e das pondera��es dele e do vice-presidente da Rep�blica, o mineiro Pedro Aleixo. "Diante da situa��o, Pedro Aleixo defendeu a tese de um recurso constitucional, que seria o estado de s�tio, bem menos traum�tico para a na��o. Eu defendi a vig�ncia de apenas um ano para o ato institucional, mas n�s dois fomos voto vencido." O estado de s�tio � instaurado como medida provis�ria de prote��o, quando h� amea�a grave na percep��o do Poder Executivo. No fim das contas, o AI-5 s� foi revogado 10 anos depois por iniciativa do presidente Ernesto Geisel (1907-1996).
APREENS�O Rondon se acomoda no sof� e, mineiramente, oferece caf� com p�o de queijo rec�m-sa�do do forno. As lembran�as est�o mais quentes e ele volta no tempo para falar dos primeiros dias do golpe, certo de que, para entender a hist�ria, � preciso compreender o momento e os homens da �poca. "O Brasil era outro e, em 1964, eu era deputado federal pela Uni�o Democr�tica Nacional (UDN) havia 14 anos. Lembro bem que a grande �nsia era pelo desenvolvimento do pa�s e de Minas." Depois de uma pausa, Rondon, que teve um mandato na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e seis federais, recorda-se das tropas da Pol�cia Militar mineiras ocupando Bras�lia (DF) ao lado das tropas federais.
"O ambiente em mar�o e abril de 1964 foi de grande apreens�o. Era um momento delicado, conturbado. Houve a revolu��o, a deposi��o do governo… mas o sonho era o desenvolvimento do Brasil. E esse foi o maior legado dos militares", afirma o ex-governador, que prefere n�o tocar em temas espinhosos como a tortura nos por�es da ditadura.
Mais um gole de caf� e o ex-governador conta que o presidente Humberto de Alencar Castello Branco (1897-1967) foi escolhido em vota��o secreta e era considerado bem preparado para a miss�o que come�ou em 15 de abril de 1964. Sobre Costa e Silva, ent�o ministro da Guerra (o nome depois mudou para Ex�rcito e hoje � o Minist�rio da Defesa), Rondon traz na ponta da l�ngua uma passagem curiosa denotando o clima de instabilidade. Costa e Silva fez uma viagem ao exterior e, ao embarcar, lhe perguntaram se deixaria o cargo. Sem titubear, declarou: "N�o. Vou e volto ministro."
"No governo Costa e Silva, fui chamado para ser o ministro extraordin�rio chefe da Casa Civil", diz Rondon Pacheco, com �nfase na palavra "extraordin�rio". A explica��o � que, naquela �poca, "seria incompat�vel um deputado federal trabalhar na intimidade da Casa Civil e exercer o mandato". A tarefa n�o foi dif�cil. "Sempre soube da responsabilidade do meu cargo e ocupei as posi��es mais distintas no governo militar. A Casa Civil foi uma experi�ncia extraordin�ria para o meu trabalho na pol�tica nacional."
Com efeito, em 1970, ao se tornar presidente da Alian�a Renovadora Nacional (Arena), da qual havia sido secret�rio-geral quatro anos antes, Rondon recebeu do presidente Em�lio Garrastazu M�dici (1905-1985) a incumb�ncia de articular o processo sucess�rio nos estados, que ocorreria por meio de elei��es indiretas. "Ele me pediu que fosse a todos os estados, menos dois: Rio Grande do Sul, estado natal dele, no qual ele mesmo coordenaria, e Minas Gerais, para onde fui escolhido governador", diz com ar de boas lembran�as. "Viajei muito, meses, pois este pa�s � um continente", frisa sempre Rondon a respeito das dimens�es do pa�s. "Para os militares, seria dif�cil fazer este trabalho, pois eu conhecia a din�mica interna do Legislativo."
AMIGOS E POL�TICA Casado h� 66 anos com dona Marina, Rondon Pacheco teve tr�s filhos, estando vivas Vera e Maria Vit�ria. Num livro, ele mostra a foto do filho, S�rgio de Freitas Pacheco, morto aos 23 anos, em 1968, num acidente de carro, e seus olhos se iluminam de saudade. No mesmo tom de emo��o, cita amigos do peito, mineiros, advogados e udenistas como ele: Milton Campos (1900-1972), que governou Minas Gerais de 1947 a 1951, e Pedro Aleixo. Os nomes s�o a senha para Rondon falar sobre o Manifesto dos Mineiros, divulgado em 24 de outubro de 1943, como um brado a favor da democracia e contra o Estado Novo, regime autorit�rio comandado por Get�lio Vargas (1882-1954) de 1937 a 1945. "Eu era muito novo, tinha 23 anos, e n�o pude assin�-lo. S� assinou quem j� era homem realizado. O resultado foi a perda de emprego e persegui��o para muita gente."
Agora o ex-governador se levanta e anda pela sala. As lembran�as se tornam ainda mais candentes, quando ele dirige o pensamento para o Gin�sio Mineiro, em Uberl�ndia, onde estudou e foi orador da turma de formatura, e � Faculdade de Direito da antiga Universidade de Minas Gerais, hoje Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte. "Fui presidente do Centro Acad�mico Afonso Pena", revela com orgulho. Da janela do apartamento, ele avista a cidade – "nasci na Avenida Afonso Pena e sou de uma fam�lia de 12 irm�os" – e vira novamente os olhos para o quadro do Cara�a. "Gosto muito de Minas e, na minha gest�o, foi criado o Instituto Estadual do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico (Iepha) para proteger os nossos acervos. Gra�as a Deus, tive a felicidade de governar o estado, atrair investimentos, receber apoio do povo, promover e intensificar o desenvolvimento industrial, permitir uma melhoria coletiva e prestigiar o trabalho da pessoa humana. Afinal, s� tirar min�rio n�o d�."
Novamente, Rondon abre um livro e mostra a foto de 1973, quando da assinatura do ato de instala��o da Fiat Autom�veis, na qual aparece tamb�m o empres�rio italiano Gianni Agnelli (1921-2003), principal acionista da montadora. "O Brasil de hoje est� pleno de desenvolvimento e busca a integra��o internacional. A semente vem l� de tr�s e foi bem plantada." Sobre os tempos de viol�ncia de agora, acha que � um problema de pol�cia, mas que desafia os governantes de todo o mundo. "N�o � uma quest�o s� nossa", acredita.
Com o rosto corado e sem sinais de cansa�o, j� que na v�spera levantara �s 5h para ir � fazenda no munic�pio de Ipia�u, a 200 quil�metros, e voltara � noite, Rondon se diz um homem resistente e que teve, desde cedo, voca��o natural para a pol�tica. Ent�o, s� resta perguntar: O que � necess�rio para governar?: "Tranquilidade na ordem". Questionado sobre o que isso significa exatamente na pr�tica, ele repete de maneira pausada: "Tranquilidade na ordem. Esse deveria ser o lema de todos os governos".
Os atos institucionais foram instrumentos jur�dicos criados no governo militar, embora redigidos por assessores civis, para normatizar os atos autorit�rios, mesmo se sobrepondo � Constitui��o. No caso espec�fico do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, no governo Costa e Silva, que violava a Constitui��o de 1967, era dado poder absoluto ao presidente da Rep�blica.
"Costa e Silva n�o conseguiu manter um governo est�vel, apesar de suas promessas iniciais de normaliza��o. Havia protestos, passeatas, atentados a bomba, enfim, radicaliza��o da esquerda e direita. Ele perdeu o apoio de parte dos grupos que sustentavam a ditadura e o AI-5 veio como resposta", diz o professor de hist�ria da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Rodrigo Patto de S� Motta, um dos organizadores da colet�nea de artigos A ditadura que mudou o Brasil e autor do livro As universidades e o regime militar, a ser lan�ado em 19 de mar�o.
Um dos fatores que levaram ao recrudescimento estava na decis�o da C�mara, que se negara a conceder licen�a para que o deputado M�rcio Moreira Alves fosse processado por um discurso no qual questionava at� quando o Ex�rcito abrigaria torturadores, al�m de pedir aos brasileiros que boicotassem as festividades do 7 de Setembro.
Antes do AI-5, conta o professor Patto, o Brasil era um "Estado autorit�rio que mantinha em vigor certas institui��es liberais". Havia elei��es para parlamentares, o Congresso Nacional estava em atividade e os direitos constitucionais garantidos, como o habeas corpus, nos casos de crimes pol�ticos, contra a seguran�a nacional, a ordem econ�mica e social e a economia popular. "A partir de 13 de dezembro de 1968, tudo mudou. O AI-5 permitia ao Executivo suspender os direitos pol�ticos de qualquer cidad�o, os mandatos dos parlamentares podiam ser cassados e funcion�rios p�blicos, demitidos. "A viol�ncia pol�tica de um Estado autorit�rio fez aumentar a resist�ncia armada", afirma o professor Patto, que coordenar�, de 18 a 20 de mar�o, na Fafich/UFMG, no c�mpus da Pampulha, em BH, o semin�rio 1964-2014: um olhar cr�tico, para n�o esquecer."
GOLPE DE 1964 - 50 ANOS