Antropologia e a sociedade
Desde os prim�rdios, foi intensa e sofrida a luta do Homo sapiens para sobreviver e perpetuar a sua esp�cie. A inf�ncia da humanidade, em momento algum, foi paradis�aca. Pode-se defini-lo, basicamente, como Homo necessitudinis: comer, defender-se, abrigar-se, enfrentar as intemp�ries dos climas, curar-se, dormir a salvo dos predadores. No come�o, disputava agressivamente com as feras e outros grupos humanos a carca�a dos animais mortos, coletava frutos e ra�zes para sobreviver. Ao pescar e comer os peixes, finalmente, p�de deslocar-se ao longo dos rios, lagos e mares at� ter a terra inteira e impor-se �s outras esp�cies, como o maior dos predadores, a comer em todas as mesas: carn�voro de qualquer carne, vegetariano, etc. Sua saga compreende cerca de 650 mil anos desde o refulgir da reflex�o nos homin�deos primitivos; mil�nios de selvageria e barb�rie, vividos em combates, escravatura e antropofagia, a ponto de nos perguntarmos sobre a raz�o dessa dolorosa e lenta evolu��o da esp�cie. At� onde p�de ir a antropologia, o cultivo de cereais, a domestica��o de animais para corte e o surgimento de habita��es permanentes remonta h� 14 mil anos. E a “civiliza��o” ocupa apenas os �ltimos 10 mil anos.
Os homens, somos parecidos com os animais, mormente com os mam�feros, pelas semelhan�as fisiol�gicas. Nossos �rg�os, fun��es e sentidos s�o comuns, como a tetrapodia (quatro membros, dois inferiores e dois superiores). O mesmo diga-se das doen�as, da reprodu��o sexuada e dos cinco sentidos: vis�o, audi��o, gusta��o, olfato e tato. S�o similitudes essenciais a indicar, de um lado, familiaridade funcional e parentesco, e de outro, uma hist�ria natural evolutiva, como um tronco a progredir, gerando galhos e ramos, como disse o jesu�ta Teilhard de Chardin sobre a �rvore da vida.
Mas como o Homo sapiens, esse ser de necessidades, as satisfaz? Na natureza, � �bvio. H� troca de energia no seio da mat�ria. Fazendo sexo, procria. Matando e comendo plantas, ra�zes, frutas e animais, logra sobreviver. A natureza foi sendo apropriada pelo Homo necessitudinis, j� agora como Homo faber, aquele que a trabalhou e transformou � sua medida, tornando-a dispon�vel. O que nos distingue da parentela � a reflex�o cr�tica. Os mam�feros superiores pensam e sentem, mas s� o homem pensa, sente, e sabe que pensa e sente. Esse limiar as outras esp�cies n�o transpuseram, nem o far�o jamais. A evolu��o se d� de uma s� vez, n�o se repete. Vai para a frente e para o alto. � um continuum.
Catando frutos, ca�ando, pescando, plantando, domesticando animais, minerando ou transformando metais, industrializando as mat�rias-primas ou comerciando, o Homo faber arranca da natureza sustento para a sobreviv�ncia com o “suor do seu rosto”. Ao trabalhar, constr�i a si pr�prio, sobrevive. A hist�ria nada mais � do que a hist�ria do homem e de seu fazer pelos tempos adentro. Seria imposs�vel entend�-la, e as sociedades que sucessivamente engendrou, sem referi-las fundamentalmente �s rela��es de produ��o, que o modo de produzir dos homens em cada �poca e de cada lugar tornou plaus�veis. Uma sociedade de trabalho escravo – o que ocorreu at� bem pouco tempo – n�o poderia nem sequer pensar em capitalismo ou viabiliz�-lo por meio de um direito do trabalho baseado no regime de salariado.
No mundo cultural, nada sucede a n�o ser por meio do psiquismo do Homo faber. Ao organizar a sociedade, o homem n�o opera desvinculado da realidade. Quem pensa, age e constr�i o mundo cultural � o homem, n�o o homem em si, mas o homem real, o homem concreto. Cultural na sociedade �, portanto, sua pr�pria organiza��o. A capacidade de trabalhar por meio de conceitos forneceu ao homem instrumentos eficientes de se resolverem problemas pr�ticos, e transplantou a vida mental do plano sensorial para o mundo de s�mbolos, ideias e valores.
Freud, com a sua not�vel intui��o em compreender o homem como id (que busca prazer e satisfa��o a partir dos impulsos de sua estrutura biops�quica) e como ego (educado, que concilia os impulsos com as conveni�ncias comportamentais que lhe foram introjetadas pela educa��o familial, moral e religiosa, o superego), penetrou profundamente na alma humana, t�o machucada pelos quereres do corpo e pelas proibi��es sociais, morais e religiosas, iniciando a an�lise do inconsciente humano, tolhido nas malhas sociais repressoras. Um disc�pulo de Freud aprofundou esse antagonismo entre o homem natural e o homem social. Refiro-me a Marcuse e sua obra Eros e civiliza��o. Op�e o “princ�pio do prazer” (em si bom) ao “princ�pio da realidade” (em si necess�rio ao processo civilizat�rio). Civilizar � reprimir. Ora, o processo educativo, civilizat�rio do homem, como ser social, � feito a partir do qu�? Da moral, da religi�o e do direito, este a mais eficaz t�cnica de planifica��o de comportamentos humanos.