
Trinta e cinco anos ap�s o fim da ditadura militar no Brasil (1964-1985), o futuro da democracia no pa�s est�, novamente, mergulhado em incertezas. Vozes em defesa de um novo regime de exce��o ecoam de gabinetes de Bras�lia, das redes sociais e das ruas, em meio � incapacidade das autoridades de por fim a uma crise que se agrava a cada dia. As amea�as de golpe, os ataques �s institui��es, as agress�es � imprensa, entre tantos retrocessos, alimentam reflex�es e temores, ante a mais grave crise institucional do per�odo de redemocratiza��o.
Supremo Tribunal Federal (STF) subiu de patamar nos �ltimos dias, ap�s mais uma leva de decis�es judiciais contr�rias aos interesses do Planalto. O chefe do governo amea�ou descumprir ordens da Corte e deu indica��es de que pode lan�ar m�o do artigo 142 da Constitui��o, que prev� a possibilidade de as For�as Armadas serem acionadas para garantir a lei e a ordem.
O confronto entre o presidente Jair Bolsonaro e o O presidente fez as amea�as na quinta-feira passada, um dia ap�s 17 empres�rios e blogueiros aliados serem alvo de uma opera��o de busca e apreens�o da Pol�cia Federal, realizada no �mbito do inqu�rito do Supremo que apura ataques a ministros da Corte e a difus�o de fake news. No despacho que originou a opera��o, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, cita relatos de parlamentares sobre a exist�ncia de um “Gabinete do �dio”. Essa express�o � usada por pol�ticos em refer�ncia a um grupo de assessores do Pal�cio do Planalto supostamente encarregados de espalhar not�cias falsas e comandado pelo vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ).
Excessos bilaterais
Acompanhando de perto o dia a dia da crise, o ministro Marco Aur�lio Mello, do STF, considera que a democracia n�o est� sob risco, mas que h� uma crise institucional provocada por excessos de ambas as partes. “N�o a vejo [a democracia] sob risco. Claro que estamos vivenciando uma crise institucional, mas os Poderes est�o atuando e buscando atuar de forma harm�nica e independente, embora, quanto ao primeiro predicado, o que est� no ar n�o o sinalize, n�o haveria, portanto, a harmonia, mas a democracia veio para ficar; n�o h� espa�o para retrocessos. N�o h� ataques � democracia, mas ela � exposta a excessos que, eu diria, bilaterais”, afirmou o ministro, em entrevista ao Correio.
Marco Aur�lio � um cr�tico ferrenho do chamado inqu�rito das fake news, aberto em mar�o do ano passado pelo presidente do STF, Dias Toffoli. Na sua opini�o, deve ser mantida uma dist�ncia necess�ria de investiga��es que envolvam apura��o de suposto crime contra a pr�pria Corte. O magistrado tamb�m se manifestou contra a decis�o do colega Alexandre de Moraes que suspendeu a nomea��o de Alexandre Ramagem, amigo da fam�lia Bolsonaro, como diretor-geral da Pol�cia Federal.
“A informa��o � a que eu venho sustentando em votos. Incumbe ao Poder Judici�rio a autoconten��o, ou seja, atuar estritamente no espa�o delimitado pela Constitui��o Federal, respeitando, acima de tudo, a �tica dos outros Poderes, no que atuam precipuamente. Eu sou, assim, um defensor da autoconten��o pelo Judici�rio; n�o vejo com bons olhos o que vem se verificando”, afirmou Marco Aur�lio.
O presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, por sua vez, tem uma vis�o bem mais pessimista que a do ministro do Supremo. Para ele, que teve o pai desaparecido e parentes torturados durante a ditadura militar, a democracia brasileira est� sob alto risco. “Sem qualquer d�vida, a democracia est� vivendo a sua batalha mais relevante em d�cadas. E eu luto todos os dias para n�o vir a ser uma v�tima de uma ditadura — o meu pai foi — ou n�o vir a ser um exilado, que tamb�m � uma v�tima dessa ditadura, eu e minha fam�lia. Eu n�o tenho d�vida nenhuma, o presidente � um homem coerente, profundamente ignorante, mas um homem que n�o � burro, inteligente na sua forma de vis�o pol�tica, se n�o n�o teria virado presidente da Rep�blica. Agora, a ignor�ncia n�o se confunde com burrice; o presidente � extremamente coerente com a defesa hist�rica das ditaduras, da tortura, das solu��es autorit�rias”, disse o presidente da OAB.
“Eu sou um ser humano extremamente moderado. Mas eu digo que este � o limite que n�o podemos tolerar. Isso n�o � parte da liberdade democr�tica, ou seja, defender o fim da pr�pria democracia. O presidente tem usado o seu cargo para isso. Eu digo que, talvez n�s, que tenhamos sido v�timas diretas da ditadura, eu tive um pai desaparecido, tios exilados, tia torturada brutalmente durante dois anos, eu que vivi essa fase como poucos viveram, talvez sintamos mais na pele o medo do futuro, da vit�ria desses generais de pijama que defendem golpe, da vit�ria dessa vis�o atrasada em rela��o ao resto do mundo”, acrescentou Felipe Santa Cruz. “Nunca pensei que na nossa gera��o n�s fossemos viver um quadro desse. Estamos de novo lutando pela democracia, e ainda estamos no meio dessa loucura toda, pedindo que o governo trate cientificamente de uma doen�a, � um quadro quase surreal”, lamentou o presidente da OAB, a respeito da pandemia do novo coronav�rus.
For�as Armadas
Para Gilson Dipp, ex-corregedor nacional de Justi�a e ex-integrante da Comiss�o Nacional da Verdade, que investigou os crimes cometidos durante a ditadura militar, a democracia brasileira est� em crise. Ele citou, al�m dos ataques do presidente da Rep�blica �s institui��es, as reiteradas declara��es de seus filhos em favor de um golpe militar. Por�m, o jurista observa que Bolsonaro n�o tem o respaldo das For�as Armadas.
“Sempre que h� ataques desse calibre, desse descalabro, dessa insanidade, por parte do presidente da Rep�blica e pela sua prole, n�s sempre entendemos que a democracia est�, digamos, em crise. No entanto, eu tenho para mim que n�s temos um presidente destemperado, acuado, isolado, sem qualquer discernimento da realidade. Num momento de pandemia, a gente poderia colocar todos os esfor�os colocados para a sa�de p�blica, para a emerg�ncia sanit�ria. E o presidente faz esse tipo de diatribe, que, a meu modo de ver, n�o tem nenhum respaldo por parte das For�as Armadas”, disse o ex-ministro do STJ.
“Claro que as For�as Armadas n�o querem desautorizar publicamente o presidente, mas ele vem sendo desautorizado paulatinamente. Nunca se teve nenhuma amea�a � democracia por parte das For�as Armadas, apesar dos altos e baixos do general Augusto Heleno [ministro do Gabinete de Seguran�a Institucional]. As For�as Armadas n�o v�o entrar mais em uma aventura como em 1964, de jeito nenhum. Elas t�m a respeitabilidade da sociedade; eu acompanhei por muito tempo essa evolu��o, at� porque estive na Comiss�o Nacional da Verdade; acho que o presidente blefa com as For�as Armadas”, acrescentou Gilson Dipp.
Na vis�o de Cezar Britto, ex-presidente do Conselho Federal da OAB, a democracia no pa�s est� em alerta permanente. “O sinal amarelo est� aceso, porque todas as democracias que s�o substitu�das por regimes autorit�rios s�o destru�das de forma paulatina, com agress�es a v�rios setores e atividades. E o Brasil est� nessa fase de agress�o permanente, cont�nua, inconstitucional e perigosa. O alerta sempre acende quando se ataca a liberdade de express�o, querendo calar o direito de a popula��o ser bem informada, quando se minimiza os direitos fundamentais, os direitos dos �ndios, os direitos das comunidades quilombolas, os direitos dos artistas, os direitos dos trabalhadores, v�rios tipos de direitos fundamentais, relativizando a pr�pria Constitui��o”, afirmou Britto.
“Da mesma forma, devemos estar em alerta quando se ataca diretamente a Constitui��o, transformando-a em instrumento desnecess�rio e desimportante para o pa�s. E quando se come�a a demonizar, desmoralizar, deslegitimar as institui��es, os Poderes, como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. E a� o somat�rio de tudo isso � muito mais do que um cabo e soldado. � uma prepara��o constante, concreta, j� externada em movimentos de rua, com a participa��o de autoridades, inclusive, do presidente da Rep�blica em que se declara que se quer a volta do AI-5 com interven��o militar”, declarou o jurista.
Ao frisar que a Constitui��o Federal n�o leg�tima uma interven��o militar, ele lembrou da frase hist�rica proferida pelo deputado Ulysses Guimar�es (MDB) quando da promulga��o da Carta de 1988: “A Constitui��o tem nojo de ditadura”.