
"A proposta (do governo para o Fundeb) fazia com que as pessoas tivessem de escolher entre um projeto de renda b�sica e um projeto de educa��o p�blica forte"
Interrup��es, piadas jocosas, ofensas, amea�as, cr�ticas dirigidas � apar�ncia, mensagens pornogr�ficas, campanhas de difama��o pela internet com sexualiza��o da imagem... Essas s�o algumas das manifesta��es dirigidas a mulheres que conquistam representa��o na pol�tica, o que faz desse um dos espa�os mais violentos contra vozes que se levantam pela igualdade de g�nero. O relato � da astrof�sica, cientista pol�tica e deputada federal T�bata Amaral (PDT-SP). “Quantas vezes fui interrompida na C�mara? Quantas vezes disseram que n�o tinha capacidade, que eu era burra, que n�o deveria estar ali? Quantas vezes j� insinuaram que eu era teleguiada por um homem, que eu n�o tinha capacidade para tomar as minhas decis�es? O pr�prio presidente da Rep�blica e os seus apoiadores j� publicaram v�deos sexualizando imagens minhas. Essa viol�ncia toda n�o para por a�”, afirma a parlamentar, considerando que tamb�m dentro dos partidos grassa a discrimina��o.
“O machismo n�o � monop�lio nem da esquerda nem da direita, infelizmente est� por todo lado”, observa a T�bata, que acaba de lan�ar o livro Nosso lugar: O caminho que me levou � luta por mais mulheres na pol�tica (Companhia das Letras). Desde a inf�ncia pobre na periferia de S�o Paulo at� a Universidade Harvard, a campanha eleitoral de 2018 para a C�mara dos Deputados – em que conquistou 264 mil votos, apesar de desacreditada dentro de seu pr�prio partido – s�o passagens abordadas no livro. Em entrevista ao Estado de Minas, a deputada fala sobre participa��o feminina na vida p�blica e outros assuntos, como a recente aprova��o do Fundo de Manuten��o e Desenvolvimento da Educa��o B�sica e de Valoriza��o dos Profissionais da Educa��o (Fundeb).
O Fundeb foi aprovado pelos deputados apesar da postura do governo Bolsonaro, que s� entrou na discuss�o na reta final, e depois comemorou a vota��o como se fosse vit�ria dele. Politicamente, como foram os esfor�os para a aprova��o?
Come�amos essa discuss�o h� um ano e meio, em audi�ncias, conversas e debates, trazendo a sociedade. O governo nunca participou. Nas �ltimas tr�s ou quatro semanas, nos reunimos com integrantes do governo, mas com uma dificuldade muito grande, porque eles n�o conheciam a mat�ria, n�o d�o a entender que priorizam a pauta da educa��o. No s�bado, o governo apresentou uma proposta que n�o combina com um pa�s que tem um problema t�o grande na educa��o, que � o �nico caminho para que ele se desenvolva e seja mais inclusivo. Apresentaram uma proposta que deixaria 820 munic�pios, inclusive muitos de Minas Gerais, sem nenhum recurso do Fundeb, que retirava recurso da educa��o p�blica para a assist�ncia social. Era proposta que se mostrou inconstitucional e, no fim das contas, fazia com que as pessoas tivessem de escolher entre um projeto de renda b�sica e um projeto de educa��o p�blica forte. N�s resistimos, a popula��o participou e foi muito bonito ver, porque o governo logo se deu conta de que n�o teria os votos para aprovar a sua proposta. Conquistamos a duras penas o Fundeb permanente, maior, mais redistributivo, e pela primeira vez com o foco n�o s� na equidade de financiamento, mas tamb�m na qualidade da educa��o, que � o que mais importa.
O campo da educa��o parece ter sido eleito pelo governo para uma “guerra ideol�gica”. O que � poss�vel esperar para o ensino p�blico nos pr�ximos anos?
O governo olha para o Minist�rio da Educa��o e v� uma oportunidade, um palanque para a sua guerra cultural, para a sua guerra ideol�gica: enxerga uma ideologia da qual discorda e quer colocar a ideologia dele no lugar. Eu e muitas pessoas vemos na educa��o a �nica oportunidade para que nosso pa�s seja mais desenvolvido, justo e �tico. Essa transforma��o n�o vai se dar com o MEC ditando ideologias ou atacando determinados grupos. Vai se dar se o MEC de fato sentar na cadeira um coordenador de pol�ticas educacionais que diga: “‘Vou auxiliar as redes municipais e estaduais”. E pode fazer isso principalmente provendo recursos para melhorar os �ndices de alfabetiza��o, melhorar a forma��o e a valoriza��o dos professores, resolver os problemas de infraestrutura que temos – como escolas que n�o t�m acesso � �gua ou � internet. Isso vai muito al�m de uma discord�ncia ideol�gica. � uma discord�ncia de princ�pio, � injusto, � errado. Em quais momentos tenho esperan�a? Quando a gente v� a mobiliza��o da sociedade, que no ano passado conseguiu reverter a maioria dos cortes na educa��o. Quando vemos este ano na vota��o do Fundeb.
Muitas mulheres sofrem e denunciam discrimina��o de g�nero em suas trajet�rias profissionais. Como tem sido a sua trajet�ria na C�mara dos Deputados?
Infelizmente, a pol�tica � um dos lugares mais violentos para as mulheres. E digo isso como pessoa que se formou tamb�m em astrof�sica, um ambiente predominantemente masculino. Mas na pol�tica h� tentativa constante de calar as mulheres. Isso se manifesta em piadas, interrup��es, ofensas, ataques, amea�as. Se compararmos a forma como um deputado e uma deputada s�o criticados, � evidente que a forma de criticar a deputada vai mencionar a apar�ncia, a roupa, seu tom de voz, sua vida pessoal. Quando as pessoas se sentem no direito de ofender e agredir dessa forma, outros se sentem autorizados a literalmente amea�ar e enviar mensagens pornogr�ficas. A forma que encontrei de responder a isso � lutando para haver mais mulheres na pol�tica. Temos um movimento, Vamos Juntas, suprapartid�rio, e apoiamos nestas elei��es 51 candidatas nas cinco regi�es do pa�s, de todo o espectro pol�tico, mulheres brancas, negras, com defici�ncia, mulheres trans. S�o elas que me d�o esperan�a. Mas elas est�o sofrendo coisas t�o absurdas: amea�as, ataques, mensagens pornogr�ficas. Isso no Brasil inteiro. Acredito que a cada ano vamos conquistar mais o espa�o da pol�tica, mas essa conquista n�o vir� por in�rcia. N�o vir� sem muita luta e muita resist�ncia do outro lado.
Apesar das pol�ticas de cotas desde a d�cada de 1990, ainda assim temos a pr�tica de candidaturas laranjas e o boicote dentro dos partidos para desviar recursos das candidaturas femininas. Como superar essa primeira barreira?
O machismo n�o � monop�lio nem da esquerda nem da direita, infelizmente est� por todo o lado; mas quantos partidos n�o burlaram essa regra? A explos�o que vimos de suplentes de senador mulheres, candidatas a vice, candidatas que obtiveram financiamento s� para as dobradinhas, que eram com homens. Ent�o, � importante a mobiliza��o da bancada feminina neste momento, para que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) d� uma regulamenta��o para isso, um direcionamento. Muitas das nossas conquistas hist�ricas, infelizmente, primeiro avan�aram no Judici�rio e s� depois no Parlamento. Quando falamos no Parlamento, h� dois tipos de projetos apresentados, mas enfrentamos resist�ncia para pautar: um deles coloca cotas no Parlamento, � a medida mais eficaz, mais r�pida e que tem evid�ncia mais robusta quando olhamos para outros pa�ses. Outro � um projeto de reforma partid�ria, que pede mais transpar�ncia, mais democracia interna e �tica dentro dos partidos pol�ticos. A luta � grande, mas este ano acho que conseguiremos fazer mais mulheres vereadoras e prefeitas. Temos hoje s� cerca de 10% de representa��o feminina entre vereadoras e prefeitas, ent�o temos espa�o muito amplo a ser conquistado.
A senhora � frequentemente retratada como uma integrante da bancada Lemann na C�mara dos Deputados. Qual � a sua rela��o com Jorge Paulo Lemann?
N�o apenas em rela��o ao Jorge Paulo Lemann. Dependendo da posi��o no espectro ideol�gico, v�o dizer que sou financiada por fulano ou sicrano. Quando apoiadores do governo Bolsonaro querem me criticar e dizer que n�o estou aqui de uma forma leg�tima, dizem que sou financiada por George Soros, pelo comunismo, pelo globalismo que eu sequer sei o que significa exatamente. O que as pessoas querem dizer � que n�o � leg�timo eu estar neste lugar, que algu�m me colocou aqui. Jorge Paulo Lemann � um empres�rio, que tem uma atua��o muito bonita por meio da Funda��o Lemann, em prol da educa��o p�blica. Ele � ex-aluno de minha faculdade, um dos fundadores da Funda��o Estudar, que me deu ajuda de custo quanto eu estudava em Harvard, mas uma ajuda que foi devolvida assim que consegui um emprego, quando voltei ao Brasil. E nenhuma dessas coisas me desabona. Tenho muito orgulho de ter conseguido essa bolsa da Funda��o Estudar e tenho orgulho de ter podido devolver a minha bolsa na �ntegra, pois tenho certeza de que isso vai ajudar outros estudantes. E a pr�pria funda��o tem essa cultura de retribui��o. Ent�o, tem de se esfor�ar muito para dizer que (sou influenciada) porque uma pessoa criou uma funda��o, que me ajudou durante a faculdade, mesmo que eu tenha devolvido o dinheiro, mesmo que tenha recebido uma bolsa 100% de Harvard, trabalhado durante todo o per�odo da faculdade, em posi��es administrativas e como bab�, para me formar. Nunca recebi uma liga��o de um empres�rio ou pessoa poderosa, para dizer como eu deveria votar. Este � um dos muitos absurdos que enfrento.
Eleita pelo PDT, a senhora recorreu � Justi�a com pedido de desfilia��o da legenda. Quando deixar a legenda, em qual partido no espectro ideol�gico pretende se filiar?
O meu partido se posicionou a favor de reforma da Previd�ncia durante a campanha, apresentou uma proposta de reforma da Previd�ncia que tinha um impacto maior do que aquela que votamos. Mas n�o conseguiu criar um consenso entre os deputados e, por uma decis�o pol�tico-eleitoral, decidiu que seria contra a proposta que era votada. Votei de acordo com o que tinha dito que votaria, e de forma coerente com algu�m que participou de todo o processo para melhorar o texto o m�ximo poss�vel. Depois disso, o partido come�ou uma persegui��o absurda contra mim e n�o contra os demais deputados que tamb�m haviam votado. Eu entrei com processo de desfilia��o na Justi�a faz um ano, ainda aguardo resultado. Eu me considero progressista, quem me acompanha n�o tem a menor d�vida em rela��o a qu�o objetivos s�o os meus posicionamentos. Mas n�o estou conversando com nenhum partido, pois n�o � o momento.
Num eventual cen�rio em que estejam concorrendo em 2022 Jair Bolsonaro � reelei��o, Ciro Gomes, pelo PDT, um candidato do PT, a chapa Mandetta e Moro, Jo�o Doria pelo PSDB, Fl�vio Dino, pelo PCdoB, al�m da candidatura esperada do Psol, quem apoiaria para a Presid�ncia da Rep�blica?
A minha vis�o de mundo � extremamente conflitante com uma vis�o autorit�ria, antidemocr�tica, e espero fazer parte de uma constru��o que n�o leve � reelei��o de Bolsonaro. N�o tive a menor d�vida entre Bolsonaro e Haddad em 2018: soube que o meu voto seria no Haddad, porque me posiciono pela democracia, pelos direitos humanos, pela educa��o. Ent�o, tenho certeza de que ser�o essas vis�es que ir�o guiar o meu voto. Mas acredito que essa � uma das coisas que mais atrapalham a nossa pol�tica. Estamos a dois anos das elei��es, o que n�o faltam s�o problemas para resolver, aprofundados pela crise sanit�ria, e as pessoas gastam energia falando sobre uma quest�o que est� t�o distante. O que sei � que os princ�pios que me guiaram at� aqui s�o os mesmos que v�o me guiar nos pr�ximos anos.