Autora do recurso que deu origem ao julgamento do "marco temporal" das terras ind�genas no Supremo Tribunal Federal (STF), a Funda��o Nacional do �ndio (Funai) mudou de lado na pol�mica. Quando apresentou o recurso, em 2017, a Funai pregava a demarca��o da terra do povo Xokleng, em Santa Catarina. Hoje, sob Jair Bolsonaro, j� se manifestou a favor da tese defendida pelos produtores rurais.
O caso � considerado um dos mais importantes da hist�ria da Corte no que diz respeito �s terras ind�genas e, a partir desta quarta-feira, dia 1�, os ministros do Supremo v�o se debru�ar sobre o assunto, na tentativa de diminuir os conflitos. O crit�rio do marco temporal prev� que s� podem ser consideradas terras ind�genas aquelas j� ocupadas por eles no dia 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constitui��o.
Ao longo da semana passada, mais de 6 mil ind�genas acamparam na Pra�a dos Tr�s Poderes, em Bras�lia, para acompanhar o julgamento do caso no Supremo. O que for decidido ali pode provocar impacto nos processos de demarca��o de 303 terras ind�genas, em todo o Pa�s. Somente no Supremo a an�lise afetar� ao menos 82 processos similares, que est�o paralisados � espera de uma decis�o.
O julgamento � sobre um recurso especial apresentado pela Funai contra uma decis�o do Tribunal Regional Federal da 4.� Regi�o (TRF-4), sediado em Porto Alegre (RS). A outra parte do processo � representada pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA). No recurso original, a Funai contestou decis�o do TRF-4 que deu ganho de causa ao IMA contra os Xokleng. Eles retornaram a um territ�rio que hoje envolve uma reserva ambiental.
Em janeiro de 2017, a Funai argumentava que os Xokleng tinham direito imprescrit�vel � terra, ainda que tivessem ficado fora do local por um tempo. Hoje, no entanto, houve uma guinada de posicionamento do �rg�o. Em maio do ano passado, atendendo a um pedido do ministro do STF Edson Fachin, relator do caso, a Funai pediu que seu pr�prio recurso fosse rejeitado.
O Supremo tamb�m discutir� a validade de um parecer editado pela Advocacia-Geral da Uni�o (AGU), em julho de 2017, que obrigou todos os �rg�os do governo federal a seguir o entendimento do marco temporal, restringindo as demarca��es de terras ind�genas.
Para Renato Ribeiro de Almeida, advogado e doutor em Direito do Estado pela Universidade de S�o Paulo (USP), a mudan�a de posi��o da Funai tem mais import�ncia pol�tica do que jur�dica, uma vez que o julgamento diz respeito � tese do marco temporal. "O julgamento do STF n�o versa sobre uma quest�o de fato, mas sobre uma quest�o de direito. Ent�o, o que importa � a tese jur�dica, e n�o os fatos em si. A discuss�o � sobre se deve-se aplicar o marco temporal da Constitui��o de 1988 �s terras ind�genas ou n�o; e n�o sobre a quest�o espec�fica dos ind�genas de Santa Catarina", disse Almeida ao Estad�o.
Mesmo que a Funai tenha mudado de posi��o, os dois lados da controv�rsia estar�o representados no julgamento do STF: ao todo, 39 entidades foram admitidas como partes interessadas. O grupo inclui desde entidades ligadas aos ind�genas at� sindicatos de produtores rurais, al�m de governos estaduais.
'Seguran�a jur�dica'
O atual presidente da Funai, o delegado da Pol�cia Federal Marcelo Xavier, foi ouvido em audi�ncia na C�mara, no come�o deste m�s, e reafirmou o apoio � tese do marco temporal como forma de promover a seguran�a jur�dica nas disputas por terras no Pa�s.
Xavier disse que o �rg�o est� aguardando o julgamento no Supremo para dar sequ�ncia aos processos de demarca��o. Desde o in�cio da gest�o do presidente Jair Bolsonaro, o governo n�o concluiu o processo de demarca��o de nenhuma terra ind�gena.
Entidades representativas de ind�genas alegam que o reconhecimento do marco temporal impedir� a concretiza��o de um direito protegido pela Constitui��o. J� os representantes do agroneg�cio e dos produtores rurais argumentam que a derrubada da tese prejudicaria a economia do setor e criaria inseguran�a jur�dica, uma vez que a Uni�o n�o teria mais um crit�rio objetivo para decidir o que � ou n�o terra ind�gena.
Na avalia��o de Julio Jos� Araujo Junior, procurador da Rep�blica e doutorando em direito p�blico pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a Funai restringiu o conceito de terra ind�gena. "O curioso � que � um c�rculo vicioso. O mesmo Estado que deixa de demarcar � o que vai dizer que aqueles casos pendentes n�o s�o terras ind�genas", afirmou o procurador da Rep�blica.
A Funai foi criada em 1967, ainda durante a ditadura militar (1964-1985), em substitui��o ao antigo Servi�o de Prote��o ao �ndio (SPI). Formalmente, tem a miss�o de proteger e atender os ind�genas, buscando seu desenvolvimento. O Estad�o procurou a Funai, mas n�o obteve resposta.
Bancada Ruralista
Enquanto o Supremo Tribunal Federal discute a tese do marco temporal para demarca��o de terras ind�genas, a Frente Parlamentar Agropecu�ria (FPA), dona de uma das maiores bancadas de parlamentares no Congresso, tenta fazer valer o instrumento por meio de projeto de lei. Trata-se do PL 490, de 2007, que j� foi tema de conversas reservadas entre a bancada ruralista e o presidente da C�mara, Arthur Lira (Progressistas-AL), que se comprometeu em dar prioridade � sua vota��o pelo plen�rio da Casa.
O texto, basicamente, imp�e a mesma tese do marco temporal, al�m de abrir a possibilidade de explora��o de projetos do agroneg�cio, minera��o e empreendimentos de infraestrutura em terras ind�genas.
"Continuaremos com a tramita��o do Projeto de Lei 490, que j� tem sua admissibilidade aprovada na Comiss�o de Constitui��o, Justi�a e Cidadania da C�mara dos Deputados, por entender que � o Congresso Nacional o Poder com a atribui��o e legitimidade para legislar, conforme prev� a Constitui��o Federal", declarou a FPA � reportagem.
"Entendemos que o direito de propriedade n�o pode ser preterido em detrimento da demarca��o de terras ind�genas. O produtor rural deve ser ressarcido quando houve desapropria��o da terra pela qual pagou. O direito de um n�o pode retirar o direito do outro."
No dia 22 de junho, ind�genas e policiais entraram em confronto em frente ao Congresso devido � aprova��o do PL pela CCJ. Desde a semana passada, cerca de 6 mil ind�genas est�o acampados na Pra�a dos Tr�s Poderes em protesto contra a tese do marco temporal.
Pelo entendimento do marco temporal, que � defendido por ruralistas, uma terra ind�gena s� poderia ser demarcada se for comprovado que os �ndios estavam sobre a terra requerida na data da promulga��o da Constitui��o, ou seja, no dia 5 de outubro de 1988. Quem estivesse fora da �rea nesta data ou chegasse depois deste dia, n�o teria direito a pedir sua demarca��o.
Atualmente, o Brasil tem 421 terras ind�genas devidamente homologadas, que somam 106,6 milh�es de hectares e onde vivem cerca de 466 mil ind�genas. H�, por�m, outras 303 terras ind�genas que ainda n�o conseguiram obter a homologa��o presidencial, ou seja, que est�o em alguma fase do processo de demarca��o, sem que este tenha sido conclu�do. Essas terras somam 11 milh�es de hectares, onde vivem cerca de 197 mil ind�genas. Os dados se baseiam em publica��es feitas no Di�rio Oficial da Uni�o e que s�o monitoradas pelo Instituto Socioambiental (ISA).
O presidente Jair Bolsonaro voltou a criticar, ontem, o STF e sobre a discuss�o e afirmou n�o ser atribui��o da Corte mudar a Constitui��o. Para ele, uma decis�o contr�ria "mataria o campo e sufocaria as cidades".
Em entrevista � R�dio Rede Fonte de Comunica��o, o presidente voltou a defender que, se o "marco temporal" for rejeitado, o Brasil ter� uma decis�o judicial que permitir� a demarca��o de uma �rea do tamanho da Regi�o Sul. "Vai afetar em cheio o agroneg�cio", disse, pontuando que ser� necess�ria a constru��o de novas rodovias para que o escoamento de alimentos n�o fique prejudicado.
A apoiadores, o presidente disse ontem que o reconhecimento legal das �reas de tradicionais "acabou" com o Estado de Roraima.
O STF retoma amanh� o julgamento do marco temporal, mas sem previs�o de encerramento. Setores ligados aos ruralistas pressionam para que a Suprema Corte entenda que ind�genas s� podem ter direito sobre terras que j� estavam ocupadas at� a promulga��o da Constitui��o, em 1988. As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo.
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