
Fundado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em 1997, o assentamento Oziel Alves, em Maragogi (AL), era considerado uma refer�ncia para a organiza��o.
Batizado em homenagem a um jovem sem-terra morto no Massacre de Eldorado dos Caraj�s, em 1996, o assentamento se formou ap�s dezenas de fam�lias ligadas ao MST ocuparem a fazenda Aquidab� e exigirem sua desapropria��o.
Em 2011, um texto no site do MST definiu o assentamento como "um exemplo em Alagoas".
Passados 11 anos, no entanto, a dire��o do assentamento abandonou o MST e hoje se diz simp�tica ao presidente Jair Bolsonaro (PL).
No in�cio de julho, 87 fam�lias do Oziel Alves receberam t�tulos provis�rios do Incra (Instituto Nacional de Coloniza��o e Reforma Agr�ria) numa cerim�nia em que moradores de outros seis assentamentos de Maragogi tamb�m foram agraciados.
"� um sonho nosso que est� sendo realizado", disse � BBC a presidente do assentamento Oziel Alves, Sandra Joaquim de Barros.
"A maioria dos assentados (em Maragogi) est� com Bolsonaro, porque a gente deve isso a ele", acrescenta.

A hist�ria do Oziel Alves encontra paralelos em outros assentamentos Brasil afora num momento em que o governo Jair Bolsonaro intensifica uma guinada na pol�tica de reforma agr�ria iniciada na gest�o Michel Temer (2016-2017).
Desde Temer, o governo federal praticamente suspendeu as desapropria��es de terras para a reforma agr�ria ao mesmo tempo em que acelerou a distribui��o de t�tulos tempor�rios a moradores de assentamentos criados nos governos anteriores.
Segundo Bolsonaro, a distribui��o de t�tulos representa uma "alforria" dos assentados em rela��o ao MST.
A partir de 2019, conforme o Incra, o governo entregou 290.965 t�tulos provis�rios e 34.037 t�tulos definitivos a moradores de assentamentos, �ndices superiores aos das gest�es Lula e Dilma.
No mesmo per�odo, no entanto, o Incra reduziu drasticamente as verbas para promover melhorias nos assentamentos, adquirir novas terras para a reforma agr�ria e financiar outras atividades da institui��o.
Como resultado, em maio, o presidente do Incra, Geraldo Melo Filho, enviou um of�cio a escrit�rios regionais determinando a suspens�o de "quaisquer atividades que envolvam deslocamentos para eventos, mesmo que entrega de t�tulos", por falta de verbas.
Para o MST, que trata a ruptura de assentamentos com o movimento como casos isolados, o governo Bolsonaro faz propaganda enganosa das titula��es.
Segundo o movimento, como o governo cortou os investimentos na melhoria dos assentamentos e em programas de agricultura familiar, muitas pessoas rec�m-tituladas n�o conseguir�o se manter no campo e acabar�o vendendo os lotes (leia mais abaixo).
Guinada � direita
Presidente do assentamento Oziel Alves, Sandra Joaquim de Barros diz � BBC que sua organiza��o deixou o MST no governo Temer.
Na �poca, sob forte influ�ncia da bancada ruralista no Congresso, o Incra se tornou hostil ao MST, que perdeu a interlocu��o com o governo. Ligado ao PT desde sua funda��o, em 1984, o MST foi bastante cr�tico ao impeachment de Dilma Rousseff e ao governo Temer.
Barros diz que seu assentamento resolveu deixar o MST porque queria mais autonomia para negociar com o Incra. O grupo decidiu ent�o dialogar diretamente com o instituto, sem o interm�dio do movimento, para tentar receber os t�tulos.

Com a conquista da demanda, ela afirma que a decis�o foi acertada. "Eu vivia num assentamento sem futuro, sem t�tulo, sem a certeza de que sou dona do lote", afirma.
Agora ela diz que buscar� assist�ncia t�cnica para aprimorar a produ��o agr�cola do assentamento, hoje focada no abacaxi, na banana e na mandioca.
Lemas bolsonaristas
No munic�pio do Prado, na Bahia, a dire��o de outro assentamento fundado pelo MST, o Rosa do Prado, tamb�m rompeu com o grupo e passou para a esfera bolsonarista.
A ruptura envolveu tens�es. Em setembro de 2000, ap�s conflitos na regi�o, o Minist�rio da Justi�a enviou a For�a Nacional de Seguran�a ao local, argumentando que a medida buscava a "preserva��o da ordem p�blica".
Assentados rompidos com o MST disseram ter sido amea�ados ap�s sair do grupo. J� o movimento negou as amea�as e disse que o envio da For�a Nacional buscava intimidar o MST e estimular um racha no movimento.
Menos de um m�s ap�s o envio da for�a, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a retirada das tropas argumentando que o governo da Bahia n�o havia sido consultado sobre a iniciativa, o que violou a Constitui��o.
Em evento com fazendeiros locais em novembro de 2020, o presidente do assentamento Rosa do Prado, Elivaldo da Silva Costa, o Liva, exaltou o agroneg�cio e agradeceu Bolsonaro pela distribui��o de t�tulos.
Segundo Liva, o presidente "est� trazendo a independ�ncia" para as fam�lias sem-terra.
Em fevereiro, uma reportagem do portal Brasil de Fato, ligado ao MST, mostrou que hoje muros e casas do assentamento exp�em lemas bolsonaristas, como "nossa bandeira jamais ser� vermelha" e "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos".
Bolsonaro tem estimulado a aproxima��o entre assentados e o agroneg�cio. Em discurso numa feira agropecu�ria em maio, ele afirmou que, com a titula��o, "n�s trazemos as pessoas humildes do campo que outrora integravam o MST para o nosso lado".
"Cada vez mais, eles s�o cidad�os e trabalham lado a lado com fazendeiros em suas propriedades", afirmou.
Maior assentamento sem-terra do Brasil

O pr�prio Bolsonaro tem participado de algumas cerim�nias de distribui��o de t�tulos em assentamentos. Em mar�o de 2022, ele esteve num assentamento em Ponta Por� (MS) onde sua presen�a seria impens�vel h� alguns anos.
Considerado o maior assentamento do pa�s, o Itamarati surgiu a partir de duas ocupa��es, em 2002 e 2005, em uma �rea de 54 mil hectares do fazendeiro Olacyr de Moraes (1931-2015), que era conhecido como o "rei da soja".
Os 17 mil sem-terra que se instalaram no local eram articulados por organiza��es de esquerda, como o MST, a Central �nica dos Trabalhadores (CUT) e a Federa��o dos Trabalhadores da Agricultura (Fetagri).
Hoje os grupos ainda mant�m v�nculos com parte dos moradores, mas a popula��o do assentamento e suas prefer�ncias pol�ticas se diversificaram.
A p�gina do Facebook Nova Itamarati, que agrega moradores do assentamento, indica essa mudan�a de perfil.
Um post publicado neste ano sobre Olacyr de Moraes, o antigo propriet�rio das terras do assentamento, quase s� tem coment�rios elogiosos ao fazendeiro, definido como "grande desbravador" e "her�i brasileiro" por alguns usu�rios.

Dono de uma oficina de carros dentro do Itamarati, Claudemir dos Santos diz � BBC que hoje a maioria dos moradores do assentamento � de direita.
"Quase n�o tem mais assentado raiz aqui, a maioria foi embora", ele afirma.
Segundo Claudemir, quase todos os assentados do Itamarati hoje arrendam suas terras para grandes produtores de milho e soja. Com a titula��o dos lotes, ele diz acreditar que o assentamento logo "vai voltar a ser fazenda" conforme as terras forem vendidas para um mesmo comprador.
"N�o � simples produzir aqui, precisa de m�quina, de adubo, os custos est�o cada vez mais altos. Quem � pequeno n�o sobrevive", afirma.
A mudan�a no perfil de assentados � um fen�meno verificado em v�rios outros assentamentos brasileiros e se explica, em parte, pela crescente urbaniza��o do pa�s.
Nas �ltimas d�cadas, muitos agricultores que viviam em assentamentos deixaram a zona rural em busca de trabalho nas cidades. Em muitos casos, os lotes onde eles viviam passaram para as m�os de trabalhadores urbanos, como comerciantes e advogados. Muitos dessas pessoas compraram as terras informalmente dos antigos assentados como um investimento, esperando obterem os t�tulos para depois poderem vender os lotes.
Para esse p�blico, a titula��o significa a possibilidade de vender os lotes legalmente ou de arrend�-los por valores maiores.

Mudan�as na lei agr�ria
A preocupa��o de que assentados n�o permane�am nas terras tituladas e as vendam � uma das principais cr�ticas do MST � pol�tica promovida por Bolsonaro.
Uma mudan�a na pol�tica agr�ria ocorrida no governo Temer permitiu que t�tulos definitivos sejam entregues antes que o assentamento esteja estruturado com estradas, escolas, redes de �gua e outras melhorias que possam viabiliz�-lo economicamente.
No governo Temer, tamb�m se encurtou o prazo para que um assentado possa vender o lote recebido.
O processo de titula��o se inicia com a assinatura pelos assentados de um t�tulo provis�rio chamado Contrato de Concess�o de Uso (CCU).
Ap�s o cumprimento de v�rios ritos burocr�ticos, o Incra finaliza o processo entregando um t�tulo definitivo ao ocupante. A modalidade de t�tulo definitivo mais comum � o T�tulo de Dom�nio (TD).
Antes do governo Temer, era necess�rio esperar dez anos a partir do recebimento do t�tulo definitivo para que um assentado pudesse vender o lote. Com a mudan�a nas regras, o prazo de dez anos come�ou a contar a partir da assinatura da CCU.
Na pr�tica, as duas modifica��es encurtaram em ao menos alguns anos a possibilidade de venda dos lotes, j� que o prazo come�a a contar mais cedo e o Incra n�o precisa mais estruturar o assentamento antes de entregar o t�tulo definitivo.
As altera��es tamb�m transformaram as entregas de t�tulos provis�rios (CCU), antes uma etapa burocr�tica e corriqueira para o Incra, em eventos pol�ticos concorridos.

No entanto, para Alexandre Concei��o, membro da dire��o nacional do MST, esses documentos provis�rios n�o garantem que os assentados receber�o t�tulos definitivos.
Ele afirma que muitos assentados t�m sido levados a acreditar que a CCU reconhece a propriedade dos lotes, mas se frustram ao descobrir que o documento n�o tem validade no cart�rio.
Segundo o Incra, dentre todos os t�tulos entregues desde o in�cio do governo Bolsonaro, s� 10,4% s�o definitivos.
Considerando-se s� esta modalidade, o governo Bolsonaro entregou uma m�dia de 8.509 t�tulos definitivos/ano, � frente das gest�es Lula (2.271/ano) e Dilma (3.505/ano), mas atr�s do governo Temer (13.872/ano).
Ainda assim, Concei��o diz que os n�meros n�o podem ser analisados isoladamente. Segundo ele, a redu��o dos investimentos em melhorias nos assentamentos far� com que muitas pessoas rec�m-tituladas sejam obrigadas a se desfazer dos lotes.
"Com o corte de investimentos e em assist�ncia t�cnica, sem internet no assentamento, o que acontece em dez meses? Ele vai vender o lote para virar entregador de pizza na cidade", diz Concei��o � BBC.
O dirigente do MST cita ainda o esvaziamento pelo governo federal de pol�ticas voltadas � agricultura familiar que beneficiam assentados, como o Programa de Aquisi��o de Alimentos (PAA).
Pelo PAA, o governo compra alimentos produzidos por agricultores familiares e depois os repassa a creches, escolas e programas assistenciais. Em 2021, Bolsonaro reservou para o programa R$ 58,9 milh�es. O valor representa um d�cimo do que foi destinado ao PAA no �pice do programa, em 2012, no governo Dilma Rousseff.

Concei��o tamb�m critica a op��o preferencial do governo pela entrega de t�tulos definitivos do tipo T�tulo de Dom�nio (TD).
Nessa modalidade, para obter o t�tulo, o assentado deve pagar entre 10% e 50% do valor da terra nua conforme os pre�os de mercado na regi�o. Cumprido o prazo de dez anos ap�s o in�cio do processo (a assinatura do CCU), � poss�vel vender o lote.
O MST defende outra modalidade de t�tulo, a Concess�o de Direito Real de Uso (CDRU). Diferentemente do TD, a CDRU � gratuita. Ela permite que o lote seja repassado a filhos e herdeiros, mas n�o vendido para terceiros. Se um benefici�rio quiser deixar o assentamento, outra fam�lia � alocada no espa�o.
Para o MST, essa modalidade evita a concentra��o de terras e a especula��o imobili�ria.
"A terra conquistada na reforma agr�ria � para produzir alimentos saud�veis, ela n�o pode ser vendida", diz Concei��o.
J� o Incra afirma em nota � BBC que o CDRU se aplica a "assentamentos ambientalmente diferenciados, a exemplo de projetos agroextrativistas, de desenvolvimento sustent�vel e assentamento florestal".
"N�o se aplica, portanto, a todo assentamento da reforma agr�ria", diz o �rg�o.
MST e classe m�dia
Questionado pela BBC se o MST estaria perdendo for�a entre assentados da reforma agr�ria, o dirigente do MST diz que n�o.
Segundo ele, as rupturas se devem a "uma ou outra lideran�a que foram cooptadas para desmoralizar o MST".
Mesmo no caso dos assentamentos Oziel Alves, Rosa do Prado e Itamarati, onde assentados bolsonaristas t�m se projetado, ele afirma que o movimento continua presente e articula as demais fam�lias.
"N�o estamos perdendo espa�o, a sociedade brasileira nos apoia", diz Concei��o. Segundo ele, caso Bolsonaro perca a elei��o de 2022 para Lula, os assentamentos rompidos voltar�o integralmente para o movimento.
O dirigente do MST cita ainda o grande n�mero de moradores de cidades que t�m comprado bon�s e camisetas do movimento. Nos �ltimos anos, as pe�as entraram nos guarda-roupas de muitos artistas e jovens urbanos de esquerda.
Concei��o menciona ainda iniciativas bem sucedidas entre membros que deixaram de ser sem-terra ao se assentarem e se organizarem em cooperativas, mas seguem ligados ao movimento.

A f�brica de uma dessas cooperativas, voltada � produ��o de latic�nios, foi inaugurada em junho em Andradina (SP) com a presen�a de Fernando Haddad (PT), candidato ao governo paulista, e Geraldo Alckmin (PSB), candidato a vice-presidente da chapa encabe�ada por Lula da Silva (PT).
O MST diz estar vinculado a 160 cooperativas e 120 agroind�strias no Brasil. Em julho, sete dessas cooperativas fizeram uma oferta p�blica no mercado financeiro e captaram R$ 17,5 milh�es para financiar suas opera��es.
O movimento diz ainda manter la�os com cerca de 400 mil fam�lias que j� foram assentadas e produzem alimentos no Brasil. Agricultores assentados ligados ao MST est�o entre os principais difusores no Brasil de t�cnicas agr�colas agroecol�gicas, que dispensam agrot�xicos e fertilizantes qu�micos. Cestas de alimentos produzidas pelo grupo s�o vendidas a moradores de grandes cidades e doadas em v�rias iniciativas filantr�picas do movimento.
Estaria ent�o o MST deixando de ser um movimento sem-terra e se tornando cada vez mais uma organiza��o de agricultores e cooperativas?
Para Alexandre Concei��o, as duas facetas da organiza��o n�o s�o antag�nicas.
Ele afirma que hoje ainda h� 120 mil fam�lias ligadas ao movimento acampadas � espera de serem assentadas. Concei��o afirma que uma das prioridades do movimento � for�ar o governo a retomar a cria��o de assentamentos — quer Lula ven�a, quer Bolsonaro continue no cargo.
Para Concei��o, o sucesso do movimento entre parte da classe m�dia urbana ampliar� a press�o para que os acampados sejam assentados e tamb�m possam produzir alimentos — algo de que o Brasil precisa para poder combater os �ndices crescentes de fome, segundo ele.
"A reforma agr�ria n�o ser� s� uma tarefa dos camponeses, mas da classe m�dia, de cientistas, professores, da sociedade como um todo", afirma.
- O texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62087120
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