
O empr�stimo do cora��o de Dom Pedro I ao Brasil foi poss�vel depois de uma ampla negocia��o entre a embaixada brasileira em Lisboa, a Prefeitura do Porto e a Irmandade Nossa Senhora da Lapa, que det�m o direito � propriedade da rel�quia. Havia muitas d�vidas se o transporte do �rg�o, realizado pela For�a A�rea Brasileira (FAB), poderia acarretar danos, mas o Instituto de Medicina Legal do Porto (IML) avalizou a opera��o, apesar de todos os alertas.
O cora��o do monarca, que morreu em 1834, aos 35 anos, ficar� no Brasil at� 8 de setembro. Ao longo de tr�s semanas, ser� exposto no Pal�cio do Planalto e no Itamaraty. Neste fim de semana, o cora��o foi, pela primeira vez, exibido ao p�blico em Portugal.
A presen�a do cora��o de Dom Pedro I no Brasil deveria ser um acontecimento neste bicenten�rio da independ�ncia. Mas, para a professora de Rela��es Internacionais Miriam Saraiva, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), o momento � inoportuno, devido ao acirramento das disputas pela Presid�ncia da Rep�blica e, sobretudo, pelo uso pol�tico que o presidente Jair Bolsonaro pretende fazer do 7 de Setembro.
"Infelizmente, a festa de independ�ncia foi sequestrada por uma ideologia que prega o discurso de que o hino nacional, a bandeira do pa�s e as cores verde e amarela s� pertencem aos seus adeptos", diz. "Trata-se de uma enorme distor��o, pois esses s�mbolos s�o de todos os brasileiros", ressalta.
Na avalia��o da historiadora Ana Carolina Delmas, o maior temor de especialistas � que o cora��o de Dom Pedro I tenha uso pol�tico, quando, na verdade, deveria ser visto como parte de um contexto hist�rico pouco conhecido da maior parte da popula��o, devido � p�ssima qualidade da educa��o no pa�s. Ela lembra que, quando da comemora��o dos 150 anos da independ�ncia, em 1972, durante a ditadura, mais precisamente na gest�o de Em�lio Garrastazu M�dici, houve o mesmo movimento populista em torno da vinda dos restos mortais (sem o cora��o) de Dom Pedro I e da mulher dele, a princesa Leopoldina, doados por Portugal e que est�o no Museu do Ipiranga, em S�o Paulo.
Para o pesquisador Leonardo Paz, do N�cleo de Prospec��o e Intelig�ncia Internacional da Funda��o Getulio Vargas (FGV), a apropria��o pelo atual governo dos s�mbolos nacionais � t�o clara, que segmentos, ainda que pequenos, como os saudosos da monarquia, endossam esse tipo de postura.
"Tanto o presidente Jair Bolsonaro quanto seus seguidores assumem a posi��o de que s�o os verdadeiros patriotas, o que n�o � verdade", afirma. Ele destaca que, ao contr�rio do Brasil, que age por quest�es ideol�gicas, Portugal, com seu gesto, ao emprestar o cora��o de Dom Pedro I, refor�a a l�gica de Estado, n�o de governo, que � passageiro.
Riscos enormes
A sugest�o para que o governo Bolsonaro pedisse o cora��o de Dom Pedro I emprestado a Portugal para a comemora��o dos 200 anos da independ�ncia foi feita ao presidente pela m�dica oncologista Nise Yamaguchi, defensora contumaz do uso de cloroquina no tratamento contra a covid-19. O imperador � apontando como grande defensor do liberalismo, bandeira que o Pal�cio do Planalto encampou, tendo o ministro da Economia, Paulo Guedes, como garoto-propaganda. Os quase quatro anos da atual administra��o mostraram, por�m, que de liberal o governo n�o tem nada, � intervencionista e populista.
O uso pol�tico do cora��o de Dom Pedro I, contudo, � apenas uma das preocupa��es da historiadora Ana Carolina. "Estamos temerosos com o translado daquele �rg�o. Qualquer descuido pode provocar um desastre e p�r tudo a perder", alerta. H�, segundo ela, todo um cuidado na preserva��o da rel�quia e, dependendo da forma como o transporte se dar�, o �rg�o pode se dissolver. Como ela, outros especialistas alertam para a pressuriza��o do avi�o da FAB que transportar� o cora��o e para a temperatura � qual ele ficar� submetido durante o tempo que ser� exposto no Pal�cio do Itamaraty.
No entender da professora Miriam Saraiva, o presidente Bolsonaro est� pouco se importando com os riscos de se trazer o cora��o de Dom Pedro I para o Brasil. "O que interessa � o ganho pol�tico que ele acredita que ter�", frisa. Presidente da C�mara Municipal do Porto, Rui Moreira, que encabe�ou as negocia��es do empr�stimo da rel�quia ao Brasil, tem ressaltado que h� exageros nas afirma��es de que todo o processo est� baseado apenas em interesses pol�ticos. Para ele, trata-se de um gesto entre dois pa�ses irm�os, que mant�m rela��es profundas por s�culos.
Distanciamento diplom�tico
No governo portugu�s, o transporte do cora��o de D. Pedro I ao Brasil � tratado com reservas e muita apreens�o. O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo Soares, estar� presente nas celebra��es do 7 de Setembro no Brasil. Isso, apesar de ele ter sido destratado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), que recentemente cancelou um almo�o com o l�der portugu�s porque ele teve um encontro com o ex-presidente Luiz In�cio Lula da Silva, l�der nas pesquisas de inten��o de votos para a Presid�ncia da Rep�blica.
Para o pesquisador Leonardo Paz, as rela��es pol�ticas entre Portugal e Brasil s� tendem a melhorar caso Bolsonaro n�o seja reeleito. "O atual presidente brasileiro se afastou de v�rios pa�ses europeus, incluindo Portugal, por quest�es ideol�gicas", detalha.
Devo��o ao Porto
A doa��o do cora��o de Dom Pedro I � Irmandade Nossa Senhora da Lapa foi prevista em testamento pelo imperador pouco antes de morrer. Era desejo dele que o �rg�o ficasse na cidade que o recebeu quando retornou a Portugal, em 1831, para recuperar o trono de sua filha, Dona Maria II, que havia sido roubado pelo tio dela, Dom Miguel. Em 1832, Dom Pedro I, que havia abdicado do reinado no Brasil, adentrou o Porto liderando um grupo de liberais que lutavam contra o ent�o imperador absolutista.
Sem um ex�rcito suficiente, pois n�o teve o apoio esperado de Fran�a e Inglaterra, Dom Pedro I assinou uma alian�a com os espanh�is para combater o irm�o. Foram dois anos de guerra. Em 1834, ele conseguiu derrubar Dom Miguel e devolver o trono � filha, Dona Maria II. Portugal deixou de ser um reino absolutista para ser um reino liberal. O monarca, entretanto, j� estava bastante fragilizado, havia contra�do tuberculose. Morreu em setembro daquele ano.
Desde 1835, o cora��o do monarca est� guardado a cinco chaves na Igreja de Nossa Senhora da Lapa, num monumento localizado na capela-mor, ao lado do Evangelho. A primeira chave abre uma placa de metal. A segunda e a terceira movimentam uma rede de ferro. A quarta destranca uma urna e a quinta, uma caixa de madeira onde est� depositada um porta-joias de prata que abriga o vidro que cont�m o �rg�o. O cora��o est� conservado em uma subst�ncia de formol, que � trocada a cada 10 anos. A �ltima foi em 2015. Seis pessoas participam do procedimento.
"A torcida � para que tudo transcorra bem no per�odo em que o cora��o de Dom Pedro I estiver no Brasil", refor�a a historiadora Ana Carolina Delmas. A seguran�a da rel�quia no pa�s ser� enorme, a ponto de a vig�lia ser comandada pessoalmente pelo chefe da pol�cia do Porto, Ant�nio Leit�o da Silva. Houve, inclusive, a preocupa��o dos portugueses de constru�rem a caixa de madeira em que o �rg�o ser� transportado para o Brasil e a caixa de vidro em que ele ser� exposto.