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Estado de Minas PERFIL

7 de setembro: Bolsonaro reproduz mito do homem branco militar que constr�i a na��o, diz historiadora

Yna� Lopes dos Santos, professora da UFF do Rio, diz que escravid�o foi um elemento central na estrutura��o do Brasil p�s-independ�ncia


07/09/2022 06:11 - atualizado 07/09/2022 07:30


A historiadora Ynaê Lopes do Santos
A historiadora Yna� Lopes dos Santos (foto: Ricardo Borges/Divulga��o)

Em um 7 de setembro marcado n�o s� pela efem�ride de 200 anos da independ�ncia brasileira mas tamb�m por uma atmosfera pol�tica pesada, em torno de eventos que eram s� protocolares em anos anteriores, os simbolismos e as narrativas hist�ricas t�m papel de destaque.

A historiadora Yna� Lopes dos Santos considera que o presidente e candidato � reelei��o Jair Bolsonaro (PL) aposta numa perspectiva ufanista, baseada na m�tica do famoso quadro Independ�ncia ou Morte, como forma de promover sua imagem nos eventos desta quarta-feira pelo Brasil.

Ela tamb�m afirma que o quadro de Pedro Am�rico n�o mostra uma dimens�o importante do Brasil que nasceu ap�s a proclama��o da independ�ncia: a op��o pol�tica por uma sociedade baseada na explora��o dos escravos.

Doutora em hist�ria social pela USP e professora de hist�ria das Am�ricas na Universidade Federal Fluminense (UFF), ela se dedica em seus trabalhos a observar a forma��o do Brasil e de outras sociedades do continente a partir da estrutura racial dos pa�ses, suas rela��es internas e o papel determinante e violento da escravid�o nesse cen�rio.

Em trecho de seu recente livro Racismo Brasileiro: Uma Hist�ria da Forma��o do Pa�s (Todavia, 2022), Santos prop�e para o racismo uma met�fora diferente da "doen�a que precisa ser expurgada".

"Seria muito mais f�cil se essa met�fora condissesse com a realidade: bastaria buscar uma cura para o racismo e pronto. Mas n�o h� p�lula m�gica, porque n�o estamos tratando de uma doen�a. Uma alegoria mais eficiente para compreender a real dimens�o do racismo seria compar�-lo ao sistema nervoso central do corpo humano. N�o bastam rem�dios. � preciso reprogramar todo o nosso c�rebro."

Ela tamb�m � autora de Hist�ria da �frica e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Al�m da Senzala: Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec, 2010).

Veja abaixo os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - O 7 de setembro aparece no imagin�rio brasileiro muito pelo que retrata o quadro Independ�ncia ou Morte de Pedro Am�rico, feito 66 anos depois da proclama��o e que mitifica os eventos daquele dia. Quais outros elementos do processo de independ�ncia n�o tiveram espa�o no imagin�rio brasileiro?

Yna� Lopes do Santos - Acho importante a gente pontuar com duas dimens�es essa hist�ria. A primeira dimens�o, que nunca � contada, diz respeito �s figuras que fizeram parte da constru��o desse mito: D. Pedro I e as elites que estavam com ele e a aposta que fizeram numa na��o que nasceu alicer�ada na escravid�o.

� muito importante colocar a op��o pol�tica que foi feita em grande medida como heran�a de um passado colonial, mas tamb�m como projeto de futuro, tendo em vista que a escravid�o j� era uma institui��o abertamente combatida pela sua imoralidade. Essa imagem do Pedro Am�rico que, de certa maneira, materializa esse mito de forma��o no Brasil retira essa escolha pol�tica feita por esses representantes da na��o.

Isso foi uma escolha. Podia ter sido feito diferente. O patrono da independ�ncia do Brasil, Jos� Bonif�cio, prop�e o fim gradual da escravid�o, uma reforma agr�ria e a incorpora��o da m�o de obra ind�gena. Nada disso � levado em considera��o. Porque voc� tem um projeto de pa�s organizado por homens que se identificam com o propriet�rio de escravos.

Uma outra dimens�o s�o as experi�ncias dos sujeitos que n�o faziam parte das oligarquias brasileiras, mas que participaram ativamente desse processo de independ�ncia de forma��o nacional. Os africanos escravizados, homens e mulheres negros, a participa��o ind�gena em diferentes momentos desse processo de independ�ncia.

Esse � um outro problema do quadro: ele fecha a ideia da independ�ncia do Brasil nesse 7 de Setembro, quando, na verdade, � imposs�vel compreender o processo de independ�ncia sem tom�-lo como um processo.


Quadro 'Independência ou Morte' (1888), de Pedro Américo
Quadro 'Independ�ncia ou Morte' (1888), de Pedro Am�rico (foto: Dom�nio p�blico)

BBC News Brasil - E como a escravid�o se insere no novo pa�s que se estrutura ap�s a independ�ncia?

Santos - Quando as oligarquias e D. Pedro I escrevem a nossa Constitui��o de 1824, que � um dos primeiros produtos desse processo de independ�ncia do Brasil, e organizam esse estado nascente � definido justamente quem pode votar e por que pode votar. E esse exerc�cio tem um recorte censit�rio, ele � em grande medida definido por quem � ou n�o propriet�rio de escravos.

A palavra escravid�o n�o aparece em nenhum momento na Constitui��o. Como a gente pode entender que a escravid�o est� sendo organizada dentro da Carta Constitucional? Quando a gente l� o artigo 179, que garante para o cidad�o brasileiro o direito � propriedade privada. E a escravid�o � propriedade privada.

As oligarquias sabem que a escravid�o � forma de propriedade mais disseminada no Brasil. O fato de a gente ter um tr�fico muito volumoso para o Brasil facilitava isso. Havia pessoas pobres que compravam escravos a prazo. Elas davam uma entrada e depois pagavam as outras parcelas com o dinheiro vindo do trabalho realizado pelo escravo ou escrava.

A escravid�o � isso. � uma institui��o que alicer�a o Brasil. Alicer�a a m�o de obra principal, a m�o de obra para a economia de exporta��o, alicer�a o sentimento que organiza o exerc�cio da cidadania e tamb�m define os estratos sociais do pa�s.


Traficantes brasileiros de escravos em 1800
Traficantes brasileiros de escravos em 1800 (foto: Hulton Archive)

BBC News Brasil - � subestimada a dimens�o da escravid�o como o elemento de grande for�a da economia brasileira no s�culo 19?

Santos - Quando a gente olha para esse per�odo do Brasil pr�ximo � proclama��o da independ�ncia, as d�cadas de 1810, 1820 e 1830, o pa�s n�o tem nenhum grande produto, nenhuma grande commodity de exporta��o.

O nosso a��car n�o compete com o a��car do Caribe. O caf� tinha pouqu�ssimas experi�ncias, n�o muito bem sucedidas. O algod�o tem um pequeno momento, mas nada muito significativo. O que sustenta sobretudo o Sudeste brasileiro nesse per�odo � o tr�fico transatl�ntico: comprar e vender gente negra da �frica.

Muitos de n�s aprendemos da hist�ria do Brasil a partir da perspectiva econ�mica de ciclos: o ciclo do a��car, do ouro, do caf�... Se a gente fizesse um exame com mais cuidado, veria que sem o tr�fico transatl�ntico n�o haveria nenhum desses ciclos, ao menos na forma como foram experimentados. Isso n�o � contado.

BBC News Brasil - Quais figuras que participaram dos diversos processos de independ�ncia que poderiam ser mais bem conhecidas?

Santos - Nesse per�odo da independ�ncia tem uma figura fant�stica, que � o Emiliano Mundrucu, um militar que compunha uma das mil�cias de homens negros e pardos de Pernambuco, que luta pela independ�ncia [na Confedera��o do Equador, em 1824]. � partid�rio da rep�blica e um homem negro. Na ocasi�o da independ�ncia propriamente dita, ele � obrigado a fugir do Brasil e vai para o Haiti. De l� vai para os Estados Unidos, se casa com uma mulher negra e � um dos primeiros homens a mover uma a��o p�blica contra a segrega��o racial em transportes p�blicos. Um brasileiro. Como conhecemos t�o pouco sobre isso?


Jair Bolsonaro com crianças em carro durante manifestação em Brasília no 7 de setembro de 2021
Jair Bolsonaro com crian�as em carro durante manifesta��o em Bras�lia no 7 de setembro de 2021 (foto: Reuters)

BBC News Brasil - O presidente Jair Bolsonaro est� dando grande �nfase aos eventos deste 7 de setembro de 2022 dentro de sua campanha de reelei��o. O que ele tenta evocar da hist�ria da independ�ncia e associar com sua figura?

Santos - Bolsonaro � a reprodu��o das elites brasileiras que criaram o mito do 7 de setembro e que compactuaram com a manuten��o da escravid�o naquele momento e depois compactuaram com a manuten��o de um racismo sist�mico no Brasil. Ele j� deixou bem evidente que vai apostar numa perspectiva ufanista a partir do quadro de Pedro Am�rico.

Ele aposta na manuten��o dessa perspectiva bem conservadora da hist�ria do Brasil, desse mito de um pa�s que nasce a partir de um militar que desembainha sua espada � beira de um rio. Do homem branco, militar, que constr�i uma na��o.

BBC News Brasil - Voc� v� paralelos entre a figura de D. Pedro I e de Bolsonaro?

Santos - N�o muito. Acho que existe essa identifica��o com o homem branco militar meio tosc�o, mas D. Pedro era mais sofisticado. Talvez com o poder moderador [instrumento com que o imperador podia intervir em caso de conflito entre poderes e que se sobrepunha aos demais] que D. Pedro se outorgou.

BBC News Brasil - Durante a corrida presidencial,Ciro Gomes foi criticado por falar "imagine explicar isso na favela" ao elogiar uma plateia de empres�rios no Rio. Lula, em entrevista ao podcast de Mano Brown, disse que "h� uma evolu��o pol�tica dos negros" com a consci�ncia de que "n�o basta ficar achando que � v�tima". H� rela��o dessas frases com a hist�ria do racismo no Brasil?

Santos - S�o homens brancos falando. O Ciro Gomes � um senhor de engenho, talvez at� competente, bem preparado, mas a perspectiva � de um senhor de engenho que, quando muito, reconhece a sabedoria popular, mas nunca a coloca em p� de igualdade. Ele n�o tem um olhar horizontal para a popula��o brasileira e a acho que ele n�o tem nenhum problema em dizer isso.

O Lula � um homem branco que ainda precisa... talvez um dos mais sens�veis a essa quest�o racial, mas ainda falta uma percep��o. Tanto � que foi no governo dele que grandes conquistas foram feitas porque ele abriu o di�logo de uma maneira mais direta com o movimento negro, mas falta uma consci�ncia mais adensada.

BBC News Brasil - Qual � o significado da efem�ride de 200 anos de independ�ncia brasileira pela sua perspectiva?

Santos - � uma esp�cie de convite para revisitar a hist�ria do Brasil. Eu sou contr�ria � perspectiva de que a nossa independ�ncia foi menor ou que foi uma n�o-independ�ncia ou uma independ�ncia entre aspas. Quando a gente faz isso, esvazia as escolhas pol�ticas que foram feitas e a gente naturaliza as coisas como "ah, escravid�o existiu porque sempre teve". N�o, teve porque quiseram que tivesse. Naquele momento j� existiam cr�ticas sobre a escravid�o bem contundentes.

Eu vejo essa efem�ride como um momento para a gente olhar de maneira cr�tica para a forma como a hist�ria brasileira vem sendo contada, para as escolhas de protagonistas e para a cria��o do repert�rio. O Brasil � fruto das escolhas feitas por suas elites. A gente naturaliza essas escolhas como se houvesse s� um caminho. A hist�ria � um campo de disputa. Sempre. A gente est� vendo isso hoje.

Essa disputa que a gente experimenta hoje foram experimentadas no passado. Acontece que tem quem ganhe e tem quem perde. A gente tem que aprender tamb�m com quem perdeu a disputa pelo projeto pol�tico, porque outros Brasis estavam sendo pensados. Eu quero saber que Brasis eram esses.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62815411

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