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Estado de Minas 7 DE SETEMBRO

Independ�ncia do Brasil: as mulheres que lutaram e foram esquecidas pela Hist�ria

Algumas empunharam armas, outras se engajaram no ativismo pol�tico %u2014 mas todas recusaram o lugar subalterno que lhes era reservado.


07/09/2022 06:50 - atualizado 07/09/2022 07:22

Maria Quit�ria estava em casa, na fazenda Serra da Agulha, quando representantes do Conselho Interino da Prov�ncia bateram � porta de seu pai, o fazendeiro Gon�alo Alves de Almeida, para recrutar soldados. O vi�vo explicou que n�o tinha filhos com idade para servir, nem enviaria escravos para o campo de batalha. E mais: ele pr�prio estava muito velho para lutar pela Independ�ncia do Brasil. Era setembro de 1822.

Assim que os emiss�rios foram embora, sua filha pediu permiss�o para se alistar. "Mulheres fiam, tecem e bordam. N�o v�o � guerra", resmungou o pai. Maria Quit�ria n�o aceitou o 'n�o' como resposta. Correu at� a casa da irm�, que lhe emprestou o uniforme do marido. A jovem, ent�o, cortou o cabelo bem curto, vestiu a farda militar do cunhado e, sob a alcunha de 'Soldado Medeiros', foi se apresentar ao comando de Cachoeira.

O pai, ao notar o desaparecimento da filha, saiu � sua procura. Logo, a encontrou entre os oficiais da infantaria. Mesmo depois de ter seu disfarce revelado, n�o abandonou o Ex�rcito. Ela integrava o Batalh�o dos Periquitos, apelido dado ao regimento que usava uniforme com verde e amarelo nos punhos e na gola. Entre outras proezas, a mo�a-cadete capturou prisioneiros entre as tropas portuguesas durante uma batalha em Itapu�.

"No dia 1º de abril de 1823, ao lado de outras mulheres, Maria Quit�ria, com �gua quase at� o pesco�o, avan�ou em dire��o a uma barca portuguesa e impediu o desembarque dos que n�o reconheciam a Independ�ncia", descreve o jornalista Eduardo Bueno, autor de Dicion�rio da Independ�ncia — 200 Anos em 200 Verbetes. "Dom Pedro I a condecorou com a ins�gnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro".

Terminada a guerra, Maria Quit�ria voltou para casa. Meses depois, se casou com o agricultor Gabriel Pereira de Brito, com quem teve uma filha, Lu�sa Maria da Concei��o. Morreu em 1853, aos 61 anos, quase cega e sem dinheiro. Quanto ao seu pai, ele nunca a perdoou por t�-lo desobedecido.

Mulheres � frente de seu tempo

O nome de Maria Quit�ria de Jesus (1792-1853) n�o pode faltar em nenhuma antologia que se prop�e a resgatar grandes personagens femininos da Hist�ria do Brasil. Como o rec�m-lan�ado Independ�ncia do Brasil — As Mulheres que Estavam L�, organizado por Helo�sa Starling e Antonia Pellegrino.

A obra apresenta a biografia de sete aut�nticas hero�nas, como Hip�lita Jacinta Teixeira de Melo (1748-1828), B�rbara de Alencar (1760-1832), Ur�nia Van�rio (1811-1849), Maria Felipa de Oliveira (1800-1873), Maria Leopoldina (1797-1826) e Ana Lins (1764-1839), al�m de Maria Quit�ria.

"As mulheres reunidas neste livro t�m um tra�o em comum: elas assumiram protagonismo e decidiram agir politicamente em p�blico, o espa�o por excel�ncia da pol�tica, um espa�o rigorosamente proibido para uma mulher", explica a historiadora e cientista pol�tica Helo�sa Starling. "Seja no Brasil, seja na Europa, as mulheres atuavam confinadas em casa. Podiam ganhar a vida com o pr�prio trabalho ou, ent�o, sustentar maridos. Mas, de jeito nenhum, podiam reivindicar voz p�blica, visibilidade e participa��o pol�tica".

Coordenadora do Projeto Rep�blica, n�cleo de pesquisa, documenta��o e mem�ria do Departamento de Hist�ria da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Helo�sa acrescenta que as sete personagens do livro levaram a s�rio um projeto de Independ�ncia para o Brasil. E viveram esse projeto de diferentes maneiras, partiram de patamares sociais desiguais e atuaram de forma diversa.

Algumas empunharam armas. Outras se engajaram no ativismo pol�tico. Outras, ainda, fizeram uso da palavra escrita no debate p�blico. Mas, todas recusaram o lugar subalterno que lhes era reservado. "At� hoje, sabemos pouco ou quase nada sobre a hist�ria dessas mulheres e o modo como se posicionaram na cena p�blica brasileira durante a Independ�ncia. Seu protagonismo continua ignorado. A veda��o ao acesso da mulher ao mundo p�blico foi de tal forma enraizada na sociedade que se mant�m no centro da desigualdade de g�nero at� hoje. Para as mulheres brasileiras, a fronteira da pol�tica foi e continua sendo a mais dif�cil de transpor".

Uma mulher entre os inconfidentes

Al�m de organizar a obra, Helo�sa Starling assina o cap�tulo dedicado � mineira Hip�lita Jacinta Teixeira de Melo, a �nica mulher a participar da Conjura��o Mineira, em 1789, um dos principais movimentos separatistas do Brasil Col�nia, que abre a antologia.

Filha de um rico casal de portugueses, Hip�lita se casou tarde, por volta dos 33 anos, com o coronel Francisco de Oliveira Lopes, amigo do alferes Joaquim Jos� da Silva Xavier (1746-1792), o Tiradentes. "Pouco se sabe sobre essa mulher, mas uma coisa salta aos olhos: era destemida. Quando a not�cia da pris�o de Tiradentes chegou � fazenda da Ponta do Morro, na noite de 20 de maio de 1789, Hip�lita decidiu, sozinha, levar a revolta adiante. Tudo indica que partiu dela a ordem de dar in�cio ao levante militar", afirma Helo�sa Starling.

Hip�lita escreveu cartas para o marido e demais inconfidentes, relatando a pris�o de Tiradentes e denunciando a trai��o de Joaquim Silv�rio dos Reis (1756-1819). Pedia a todos que tomassem cuidado e lembrava a eles que estavam lutando por algo maior. "Quem n�o � capaz para as coisas, n�o se meta nelas", dizia a carta. "Mais vale morrer com honra do que viver com desonra".

Em 19 de abril de 1792, seu marido foi condenado ao ex�lio na �frica, onde morreu. Hip�lita, ent�o, teve seus bens confiscados. No entanto, argumentou que boa parte de seu patrim�nio tinha sido heran�a paterna. Ao fim de uma longa batalha, que durou at� 1795, conseguiu reaver sua fortuna.

"Ao se colocar como ex�mia negociadora e competente administradora, Hip�lita rompeu com a imagem de mulher submissa", afirma a jornalista Duda Porto de Souza, coautora de Extraordin�rias — Mulheres Que Revolucionaram o Brasil. "Por um lado, Hip�lita se mostrou implac�vel na defesa de seu patrim�nio. Por outro, se revelou generosa ao distribuir parte dele entre os mais pobres da regi�o".

As sentinelas da Ilha de Itaparica

Duas das hero�nas do livro lideraram revoltas populares: Maria Felipa de Oliveira, na Ilha de Itaparica, na Bahia, e B�rbara de Alencar, em Crato, no Cear�. "N�o se sabe ao certo se Maria Felipa de Oliveira, negra da ilha de Itaparica, era escrava, se foi alforriada ou se nasceu livre", observa a jornalista Aryane Cararo, coautora de Extraordin�rias. "Como se voluntariou para lutar contra os portugueses, a op��o mais prov�vel � a �ltima".


Representação de Maria Felipa
Maria Felipa combateu marinheiros portugueses e incendiou navios (foto: Filomena Modesto/Arquivo P�blico do Estado Bahia)

Maria Felipa era marisqueira (vendedora de frutos do mar) e liderou as Vedetas da Praia. Armadas de facas, arp�es e peixeiras, emboscavam os soldados da Coroa que mal atracavam nas imedia��es da Ilha de Itaparica. �s vezes, surravam os portugueses com galhos de cansan��o, arbusto espinhoso que provoca �lcera e coceira. Outras, ateavam fogo em suas embarca��es com tochas feitas de palha de coco e chumbo.

"Embora suas habilidades como guerreira sejam cantadas em prosa e verso, � necess�rio destacar seus predicados como comerciante e navegadora numa guerra em que as quest�es ligadas ao abastecimento de comida foram determinantes para os portugueses abandonarem a derradeira batalha de 2 de julho de 1823, em Salvador, escapando pelo mar. Eles n�o tinham mais o que comer", revela a escritora Cidinha da Silva. "Segundo registros hist�ricos, morreram mais soldados vitimados pela fome e por doen�as do que por balas".

Viol�ncia pol�tica de g�nero

Filha de m�e ind�gena e pai portugu�s, B�rbara de Alencar tinha 57 anos quando, em maio de 1817, conduziu a multid�o da cidade de Crato, a 508 km de Fortaleza, at� a C�mara Municipal. Acompanhada de seus filhos, familiares e outros combatentes, todos homens, retirou a bandeira da Coroa Portuguesa e hasteou outra, branca, s�mbolo dos republicanos, em seu lugar. N�o satisfeita, ainda destituiu seus membros e nomeou novos representantes que aboliram impostos, soltaram presos e confiscaram armas e bens dos portugueses.

Acusada de trai��o, rebeldia e resist�ncia � pris�o, B�rbara foi mandada para a Fortaleza de Nossa Senhora da Assun��o, na capital cearense. De l�, foi transferida para pris�es no Recife e em Salvador. Foi solta, quatro anos depois, em 17 de novembro de 1821, gra�as a um decreto de Dom Jo�o 6º que anistiou presos pol�ticos.

"B�rbara de Alencar sabia que poderia ser punida com pena de morte. No entanto, suas convic��es eram maiores que seus medos. Ousada e corajosa, � considerada a primeira presa pol�tica brasileira. E, por mais brutal que tenha sido o c�rcere, ela n�o se intimidou. Continuou fiel aos seus ideais revolucion�rios. Tanto que, anos depois, participou tamb�m da Confedera��o do Equador", destaca a roteirista Antonia Pellegrino.

Al�m de ser a primeira mulher presa por suas convic��es pol�ticas, B�rbara de Alencar entrou para a Hist�ria tamb�m como a primeira v�tima de viol�ncia pol�tica de g�nero no Brasil. Ao ser presa, foi acusada de amasia (concubinato) por causa de sua amizade com o vig�rio-geral do Crato, Padre Miguel Carlos da Silva Saldanha, e perdeu todos os seus bens. Dizia-se at� que Jos� Martiniano, o ca�ula de seus cinco filhos, seria dele. "A acusa��o de amasia tinha por objetivo difamar a �nica mulher que participou da Revolu��o de 1817 para que ela n�o servisse de exemplo para nenhuma outra que tivesse aspira��o pol�tica", afirma a roteirista.

Maria Felipa morreu em 4 de janeiro de 1873, em local desconhecido, aos 73 anos. E B�rbara de Alencar em 28 de agosto de 1832, na fazenda Alecrim, no Piau�, aos 72. Seu corpo foi sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Ros�rio, no distrito de Itagu�, pr�ximo � sede do munic�pio de Campos Sales, no Cear�. Uma curiosidade: o escritor Jos� de Alencar (1829-1877) era filho de Jos� Martiniano e neto de B�rbara de Alencar.

Uma aut�ntica chefe de Estado

Dos sete perfis apresentados em Independ�ncia do Brasil — As Mulheres que Estavam L�, o mais famoso deles � o da Maria Leopoldina da �ustria. Nascida em 22 de janeiro de 1797, seu nome completo era Carolina Josefa Leopoldina Francisca Fernanda de Habsburgo-Lorena.

"Estava completando 20 anos quando aceitou se casar com Dom Pedro e se mudar para um pa�s distante e completamente diferente. No in�cio do s�culo 19, Viena e Rio de Janeiro n�o poderiam ser mais d�spares", observa a jornalista Virg�nia Siqueira Starling. "Leopoldina estava empolgad�ssima com seu casamento: n�o s� representava a concretiza��o de um dever p�blico como tamb�m marcava sua passagem para a vida adulta".

No in�cio, Leopoldina at� levou uma vida feliz ao lado do pr�ncipe regente, mas, em pouco tempo, passou a sofrer com suas infidelidades conjugais. A futura imperatriz teve papel decisivo na separa��o entre Brasil e Portugal. Na manh� do dia 2 de setembro de 1822, assinou o decreto da Independ�ncia. Em seguida, escreveu uma carta a Dom Pedro 1º, entregue em m�os por Paulo Bregaro, o carteiro oficial da fam�lia real, �s margens do Ipiranga, cinco dias depois. A correspond�ncia o aconselhava a romper com Portugal, que amea�ava rebaixar o Brasil de reino para col�nia. "O pomo est� maduro. Colhei-o j�. Sen�o apodrece", aconselhou a princesa.

"Al�m de determinante na perman�ncia de Dom Pedro no Brasil, Leopoldina era considerada uma excelente chefe de Estado. Muito de sua atua��o � resultado da educa��o que recebeu desde crian�a. Proveniente de uma fam�lia rica e influente da Europa, os Habsburgo, serviu de refer�ncia intelectual e pol�tica at� para Dom Pedro", explica a historiadora Giovanna Trevelin. "Na carta que escreveu para Dom Pedro, Leopoldina o incentiva a concluir o processo. A Independ�ncia j� estava basicamente decidida, s� precisava ser proclamada".

Pesquisadora do Grupo Nina Simone, um grupo de Estudos Interdisciplinares de G�nero da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Giovanna relata a exist�ncia de um movimento nascido na cidade de Saubara, a 110 km de Salvador: as Caretas do Mingau. "Mulheres se vestiam de branco e, com panelas de mingau na cabe�a, sa�am �s ruas para assustar os portugueses. Quando eles fugiam apavorados, elas levavam armas e mantimentos para seus filhos e maridos, que lutavam contra as tropas", revela a historiadora.

Indigna��o em forma de panfleto

O menos conhecido dos sete perfis � o de Ur�nia Van�rio. A filha �nica de um casal de portugueses nasceu em 14 de dezembro de 1811, em Salvador (BA). Ainda na inf�ncia, foi educada pela pr�pria m�e, Samoa Ang�lica Van�rio, que lhe ensinou, entre outros idiomas, ingl�s, franc�s e italiano.

Ur�nia estava na janela de casa, provavelmente nos arredores da Pra�a da Piedade, em Salvador, quando, no dia 19 de fevereiro de 1822, assistiu � execu��o da abadessa s�ror Joana Ang�lica de Jesus (1761-1822) a golpes de baioneta. A religiosa tentava impedir que tropas portuguesas invadissem o Convento de Nossa Senhora da Concei��o da Lapa. Eles acreditavam que soldados baianos estivessem escondidos no claustro. "Para tr�s, bandidos! Respeitai a casa de Deus! S� entrar�o passando por cima do meu cad�ver!", teriam sido suas �ltimas palavras.

Indignada, Ur�nia, de apenas 10 anos, escreveu Lamentos de uma Baiana. Os versos inflamados denunciavam as atrocidades cometidas pelas tropas portuguesas. "Justos C�us, como � poss�vel / Ficar impune a maldade / De monstros, que n�o perdoam / Nem mesmo o sexo, ou a idade…", dizia o panfleto.

"Nos dias de hoje, Ur�nia seria considerada uma menina. Mas, naquele tempo, j� era vista como uma mo�a. Em meados do s�culo 19, elas se casavam entre os 13 e os 15 anos", contextualiza a historiadora Patr�cia Valim, do Departamento de Hist�ria da Universidade Federal da Bahia (UFBA). "Chama a aten��o por ser uma menina que, aos 10 anos, se sentiu estimulada a participar do debate pol�tico por meio do engajamento de suas ideias".

Em 1824, Ur�nia Van�rio passou a trabalhar, ao lado dos pais, no antigo col�gio da fam�lia e, dois anos depois, traduziu, a partir do franc�s, Triunfo e o Car�ter do Patriotismo, escrito por M. de Florian, pseud�nimo de Louis-Pierre Claris de Florian (1755-1794). Tudo indica que, aos 15 anos, Ur�nia Van�rio se tornou a primeira tradutora do pa�s, uma d�cada antes de N�sia Floresta (1810-1885).

No dia 1º de mar�o de 1827, Ur�nia se casou com Felisberto Gomes de Argollo Ferr�o, filho de uma das fam�lias mais ricas e tradicionais de Salvador. O casal teve 13 filhos. Desses, dois nasceram mortos. V�tima de uma infec��o na hora do parto de seu �ltimo filho, Ur�nia morreu em 3 de dezembro de 1849, aos 38 anos.

"Hero�nas como Maria Felipa, Hip�lita Jacinta e B�rbara de Alencar s�o invisibilizadas pela hist�ria hegem�nica porque simbolizam ideias poderosas e, para nossa sociedade machista e racista, perigosas. Elas enfrentavam proibi��es � participa��o feminina na cena p�blica, bradavam seus ideais de liberdade e desafiavam as repetidas tentativas de apagamento de seus nomes", afirma a jornalista Virginia Starling.

"Para resgatar essas mulheres do esquecimento e impedi-las de se perderem para sempre, � preciso continuar repetindo seus nomes e contando as suas hist�rias. S� assim a Hist�ria do nosso pa�s ser� mais rica e diversa".

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62809341

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