
"Sei que voc�s est�o chateados e tristes. Esperavam outra coisa. Eu tamb�m", disse o presidente Jair Bolsonaro na noite do dia 2/11, em um v�deo no qual pedia que seus apoiadores desobstru�ssem as rodovias do pa�s, ainda bloqueadas em centenas de pontos 72 horas ap�s a derrota eleitoral dele para Lula no �ltimo domingo, 30/10.
Embora diga que n�o esperava a derrota, Bolsonaro j� expressava temor sobre qual poderia ser o seu futuro caso perdesse as elei��es mais de 6 meses antes da disputa eleitoral.
Bolsonaro expressou essa preocupa��o ao se comparar diretamente em ao menos cinco ocasi�es p�blicas com a ex-presidente interina da Bol�via Jeanine A�ez, presa e condenada a dez anos de pris�o por "promover um golpe de Estado", segundo decis�o da Justi�a boliviana de 2022. A isen��o da Corte para julgar A�ez foi questionada pela Organiza��o das Na��es Unidas (ONU).
Bolsonaro acompanhou com aten��o o processo judicial de A�ez e chegou a oferecer asilo pol�tico para ela no Brasil, o que A�ez recusou.
Sem reconhecer textualmente sua derrota nas urnas e diante de manifesta��es de apoiadores que pedem por um "golpe militar" e t�m causado caos para a popula��o ao bloquear mais de 400 pontos de rodovias, Bolsonaro poderia estar tentando driblar qualquer possibilidade de responsabiliza��o legal pelos atos sem, no entanto, frustrar sua base popular, segundo analistas.
"Bolsonaro participou de uma forma ou de outra na consolida��o do poder de A�ez, que agora j� foi indiciada, presa e condenada, tanto por quest�es de direitos humanos quanto por golpe. At� que ponto Bolsonaro teme que algo parecido aconte�a com ele? Acho que provavelmente bastante", afirma Guillaume Long, analista pol�tico do Center for Economic and Policy Research e ex-ministro das Rela��es Exteriores do Equador, que atuou como observador das recentes elei��es no Brasil.
Para Long, as preocupa��es de Bolsonaro e o paralelo que ele tra�a fazem sentido.
"At� porque a Justi�a brasileira, enquanto Bolsonaro esteve no poder, j� o contrariou algumas vezes, o que n�o � o caso na Bol�via, em que o Judici�rio mostra pouca independ�ncia em rela��o ao Executivo. E o fato de ele ter governado de maneiras que s�o problem�ticas em termos jur�dicos em v�rias �reas, com uma s�rie de investiga��es j� abertas contra si, e para adicionar a isso, um certo comportamento antidemocr�tico, acaba por gerar uma situa��o amea�adora para ele", analisa Long.
Mas afinal, de que maneiras, as hist�rias de Jair Bolsonaro e Jeanine A�ez se parecem?
Bolsonaro X Jeanine
A pol�tica conservadora e de direita Jeanine A�ez ocupou a presid�ncia da Bol�via entre 2019 e 2020 ap�s a ren�ncia do ent�o presidente Evo Morales em meio a uma crise pol�tica.
O processo de convuls�o social e pol�tica que levou Jeanine ao poder em nada lembra a chegada de Bolsonaro ao Pal�cio do Planalto.
O atual presidente brasileiro foi democraticamente eleito em 2018, ao derrotar no segundo turno o candidato petista Fernando Haddad, que publicamente reconheceu a derrota um dia ap�s a proclama��o dos resultados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
J� Jeanine chegou ao poder depois que o presidente Evo Morales, seu vice-presidente, o presidente da C�mara e o do Senado renunciaram coletivamente, em novembro de 2019, e deixaram o pa�s sob expl�cita determina��o das For�as Armadas bolivianas para que abdicassem do poder.

Desfeita a ordem sucess�ria, Jeanine, ent�o vice-l�der do Senado, anunciou em l�grimas que estava disposta a atuar como presidente interina, segundo ela, "para acabar com o vandalismo e as mortes (nas ruas) ".
Foi o desfecho para uma crise que durou 3 semanas, iniciada com a reelei��o de Morales para seu quarto mandato e que arrastou o pa�s para violentos conflitos civis nas ruas.
Para concorrer, Morales contrariou o resultado de um referendo popular de 2016, no qual a maioria da popula��o votou contra a reforma da Constitui��o para possibilitar que o l�der cocaleiro voltasse a disputar a presid�ncia. Morales j� estava h� 14 anos no poder. Uma decis�o da Corte Constitucional do pa�s, no entanto, revogou os limites do mandato, o que assegurou a possibilidade de que Evo concorresse. Ao fim do pleito, ele foi proclamado o vencedor.
Por�m, in�meras acusa��es de fraude eleitoral contra Morales pipocaram pelo pa�s e ganharam for�a quando a Organiza��o dos Estados Americanos (OEA), que atuou como observadora eleitoral, as endossou, citando inclusive um servidor secreto supostamente programado para fazer Morales vencer.
As conclus�es deram for�a a manifesta��es da oposi��o na rua que receberia o endosso decisivo dos militares. E tamb�m minaram o apoio internacional a Morales. O governo Bolsonaro, a gest�o dos EUA sob Trump e outras administra��es de direita na Am�rica Latina apoiaram as den�ncias da OEA. O ent�o ministro das Rela��es Exteriores do Brasil, Ernesto Ara�jo, disse que a fraude na elei��o boliviana foi "clara como a �gua".
Evo Morales sempre repetiu que o processo era um golpe de Estado. Meses ap�s sua ren�ncia, um estudo de pesquisadores do MIT e outro feito por acad�micos da Universidade da Pensilv�nia com dados eleitorais da Bol�via obtidos pelo jornal americano The New York Times desmentiram os achados do relat�rio da OEA. A organiza��o, por�m, manteve suas conclus�es iniciais.
Quase um ano ap�s a ren�ncia de Morales, novas elei��es presidenciais sacramentaram seu candidato, Luis Arce, como vencedor ainda em primeiro turno.
A partir da�, se iniciam os processos judiciais que prenderam Jeanine A�ez - encontrada pela pol�cia escondida dentro de uma cama box em sua casa - e a condenaram.
Jamais uma Jeanine
"Tenho certeza: eu jamais serei uma Jeanine. Jamais. Porque, primeiro, eu acredito em Deus e, depois, eu acredito em cada um de voc�s que est�o aqui. A nossa liberdade n�o tem pre�o. Digo mais, como sempre tenho dito: ela � mais importante que a nossa pr�pria vida", disse Bolsonaro, em Bras�lia, em abril de 2022, quando Jeanine j� estava presa, mas ainda faltavam dois meses para sua condena��o final.
Quando um veredicto contra Jeanine foi alcan�ado na Justi�a boliviana, Bolsonaro se pronunciou publicamente sobre a tentativa de traz�-la ao Brasil, o que estremeceu a rela��o com o governo do pa�s, que considerou o esfor�o de Bolsonaro uma inger�ncia em assuntos dom�sticos da Bol�via.
"Continuamos a conversar. O que for poss�vel eu farei para que ela (Jeanine) venha para o Brasil caso assim o governo da Bol�via concorde. Estamos prontos para receber o asilo dela, como desses outros dois (aliados de Jeanine) que foram condenados h� 10 anos de cadeia", disse Bolsonaro. A pr�pria Jeanine recusou a oferta por se dizer "inocente" e querer permanecer em seu pa�s.
Em junho, em visita a Orlando, nos Estados Unidos, Bolsonaro tra�ou claros paralelos entre Jeanine e ele pr�prio.
"A turma dela perdeu (as elei��es), voltou a turma do Evo Morales. O que aconteceu um ano atr�s? Ela foi presa preventivamente. E agora foi confirmado dez anos de cadeia para ela. Qual a acusa��o? Atos antidemocr�ticos. Algu�m faz alguma correla��o com Alexandre de Moraes e os inqu�ritos por atos antidemocr�ticos? Ou seja, � uma amea�a para mim quando deixar o governo?", questionou em junho de 2022, em visita a Orlando (EUA).
Bolsonaro colecionou embates com o Supremo Tribunal Federal (STF), chegou a participar de atos que pediam o fechamento daquele Poder e viu aliados investigados, denunciados e presos por atos anti-democr�ticos em processos liderados pela corte.
Ao ficar sem mandato, em 1º de janeiro, o presidente perder� tamb�m o foro privilegiado que possui h� d�cadas e, portanto, passar� a responder a processos na Justi�a comum.

Atualmente, h� quatro inqu�ritos autorizados pelo STF em que Bolsonaro � investigado por suspeitas de diferentes crimes, como a divulga��o de not�cias falsas sobre a vacina contra covid-19 (INQ 4888), o vazamento de dados sigilosos sobre ataque ao TSE (INQ 4878), o espalhamento coordenado de not�cias falsas e a poss�vel interfer�ncia na Pol�cia Federal (INQ 4831). H� ainda as acusa��es de crimes feitas pela CPI da Covid, que est�o em apura��o pela Procuradoria Geral da Rep�blica.
3 semanas
O que acontecer com os manifestantes pr�-Bolsonaro nas ruas at� o fim do atual mandato presidencial tamb�m poder� ser determinante para o futuro do capit�o.
Nas redes sociais, seus apoiadores t�m relembrado a ren�ncia de Morales como uma esp�cie de exemplo motivacional do que suas a��es poderiam gerar. "Em 3 semanas derrubaram Evo Morales, os protestos n�o podem ser de um �nico dia…", postou um perfil de apoio a Bolsonaro no Twitter com dezenas de milhares de seguidores.
"Lula e o STF n�o t�m o apoio dos militares, os movimentos se avolumam no Brasil e for�a humana nenhuma ser� capaz de conter. Me lembra a queda de Morales", postou outro usu�rio, que se identifica como pastor evang�lico.
Para Long, no entanto, as situa��es s�o muito diferentes. Primeiro, porque a pr�pria OEA j� publicou um relat�rio preliminar de observa��o eleitoral no Brasil em que descarta a possibilidade de fraude na elei��o de Lula, assim como j� fizeram outros observadores internacionais, o Tribunal de Contas da Uni�o e at� mesmo as For�as Armadas. Na Bol�via, a den�ncia de fraude eleitoral pela OEA foi determinante para a ren�ncia de Morales.
Segundo porque a comunidade internacional imediatamente reconheceu a vit�ria do petista, demonstrando que n�o h� apoio para questionamentos sobre a lisura do pleito.
"No caso da Bol�via, Evo estava sendo visto como algu�m com um comportamento antidemocr�tico, por tentar um novo mandato, e isso o enfraqueceu politicamente no mundo. No Brasil, quem � visto como antidemocr�tico � Bolsonaro", diz Long.
A atua��o dos bolsonaristas pr�-interven��o militar podem, no entanto, trazer implica��es criminais para Bolsonaro caso fique provado que ele teve alguma atua��o para a promo��o de tais atos. Segundo Long, a condi��o de Bolsonaro nesse caso poderia ser an�loga � de Trump, que enfrenta investiga��es por seu papel na invas�o do Congresso dos EUA, em 6 de janeiro de 2021.
DENUNCIA P�BLICA
De manera ilegal y abusiva han detenido a @Rodrigo_GuzmanC ex ministro de energ�as por el caso armado de “golpe de estado” adem�s hay orden de aprehensi�n en contra de @JeanineAnez @yerko_nunez y en contra m�a.
O ato de estimular comportamento golpista � em si um crime. O artigo 286 do C�digo Penal brasileiro tamb�m prev� deten��o de tr�s a seis meses, ou multa pra "quem incita, publicamente, animosidade entre as For�as Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as institui��es civis ou a sociedade".
A Federa��o Nacional dos Policiais Rodovi�rios Federais (FenaPRF) e os Sindicatos dos Policiais Rodovi�rios Federais divulgaram uma nota antes dos pronunciamentos de Bolsonaro no qual afirmaram que o sil�ncio do presidente estaria "estimulando uma parte de seus seguidores a adotar a��es de bloqueios nas estradas brasileiras".
Bolsonaro e seus aliados t�m tentado desvincular o presidente das manifesta��es. "Aplausos de p� a todos os brasileiros que est�o nas ruas protestando, espontaneamente, contra a fal�ncia moral do nosso pa�s! Confiem no Capit�o!", postou o senador Fl�vio Bolsonaro, caracterizando as a��es como org�nicas.
"Eu quero fazer um apelo a voc�, desobstrua as rodovias, isso da� n�o faz parte, no meu entender, dessas manifesta��es leg�timas. Outras manifesta��es voc�s est�o fazendo pelo pa�s todo, em pra�as, faz parte. E, deixo claro, voc�s est�o se manifestando espontaneamente", afirmou o pr�prio Bolsonaro no v�deo que postou no dia 2. O post do presidente nas redes sociais foi inundado por coment�rios com fotos de camas box, em refer�ncia ao esconderijo de Jeanine.
"Suspeito que Bolsonaro est� buscando ser legalmente cauteloso para n�o ser acusado de ser golpista, o que contraria a Constitui��o e poderia ter fortes repercuss�es legais contra ele. Creio que o exemplo de Trump deve estar na cabe�a dele. Ent�o, ele est� tentando legalmente se proteger ao n�o convocar explicitamente uma insurg�ncia. Mas, por outro lado, ele est� dizendo � sua base 'estou com voc�, apenas n�o bloqueie as estradas'. Ele est� sendo muito amb�guo em sua linguagem. Est� preocupado em perder o apoio de sua base popular, que ficar� desapontada com seu l�der, que n�o est� lutando o suficiente aos olhos deles. Mas, ao mesmo tempo, ele est� preocupado com essas consequ�ncias legais que ele pode enfrentar", resume Long.
Cumprindo a pena, Jeanine reconheceu a vit�ria eleitoral de Lula ainda na segunda-feira, 01/11, antes de qualquer pronunciamento de Bolsonaro. E pediu que o governo Lula "condene abusos pol�ticos" na Bol�via, Nicar�gua e Venezuela.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63508978
