
Em seu primeiro discurso ap�s a confirma��o da vit�ria nas elei��es de 30 de outubro, o agora presidente eleito Luiz In�cio Lula da Silva (PT) falou sobre as prioridades para seu futuro governo.
Entre os pontos destacados, Lula deu �nfase ao seu desejo de "reconquistar a credibilidade, a previsibilidade e a estabilidade do pa�s" diante do restante do mundo.
"Hoje n�s estamos dizendo ao mundo que o Brasil est� de volta. Que o Brasil � grande demais para ser relegado a esse triste papel de p�ria do mundo", disse Lula em seu discurso ap�s a confirma��o do resultado da vota��o pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
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Durante seus dois mandatos anteriores (2003-2010), a pol�tica externa chamou a aten��o da comunidade internacional. Em 2009, a revista brit�nica The Economist dedicou uma capa e um especial de 14 p�ginas ao Brasil, no qual afirmava que o pa�s, de repente, havia estreado como ator relevante no cen�rio internacional.
Mas agora, no terceiro mandato de Lula, segundo analistas consultados pela BBC News Brasil, o caminho do presidente eleito provavelmente ser� mais dif�cil — e repetir algumas das conquistas de 12 anos atr�s pode ser uma tarefa �rdua em um contexto internacional totalmente distinto.
"Lula n�o vai conseguir repetir a mesma pol�tica externa que fez em 2003, mas pode tentar recuperar reconhecimento internacional do Brasil ap�s o governo de [Jair] Bolsonaro", diz Guilherme Casar�es, professor de Rela��es Internacionais da Funda��o Get�lio Vargas (FGV).
O cientista pol�tico ressalta que "reconhecimento internacional � diferente de estatura" no cen�rio global."O contexto de hoje � fundamentalmente diferente do de 2003. Naquela �poca havia um grande entusiasmo com a globaliza��o, que sofreu v�rios reveses tanto em termos culturais, quanto pol�ticos e econ�micos desde ent�o."
"Outra diferen�a importante � que o mundo em que Brasil, R�ssia, �ndia e China se posicionavam como pa�ses emergentes — n�o s� em termos econ�micos mas tamb�m geopol�ticos —, n�o existe mais. Temos agora uma ordem internacional articulada em torno de China e Estados Unidos", explica Casar�es.
Para Leticia de Abreu Pinheiro, professora do Instituto de Estudos Sociais e Pol�ticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), tamb�m vivemos em um mundo "completamente diferente" em termos de economia internacional.
"N�o somente pelo t�o comentado boom das commodities ter acabado, mas porque ainda estamos em um momento de guerra na Ucr�nia, com um impacto muito negativo sobre a economia dos pa�ses europeus — que certamente reverbera no mundo todo e, portanto, no Brasil", diz.
Mas segundo os analistas, apesar das condi��es distintas, � poss�vel prever que temas como meio ambiente, direitos humanos e coopera��o na Am�rica do Sul ganhem mais relev�ncia nos pr�ximos quatro anos.
Confira a seguir alguns dos principais pontos da pol�tica externa do futuro governo Lula, segundo seu plano de governo e a an�lise de especialistas no tema.
Coopera��o e protagonismo
Em seu plano de governo, Lula destaca a inten��o de "recuperar a pol�tica externa ativa e altiva que nos al�ou � condi��o de protagonista global".
"Nas minhas viagens internacionais, e nos contatos que tenho mantido com l�deres de diversos pa�ses, o que mais escuto � que o mundo sente saudade do Brasil. Saudade daquele Brasil soberano, que falava de igual para igual com os pa�ses mais ricos e poderosos. E que ao mesmo tempo contribu�a para o desenvolvimento dos pa�ses mais pobres", disse ainda Lula em seu primeiro discurso ap�s a vit�ria nas elei��es.

A proposta parte do pressuposto de que o pa�s perdeu parte de seu protagonismo e tradi��o de coopera��o em pol�tica externa desde o fim do governo do PT, em especial durante os quatro anos de mandato de Jair Bolsonaro (PL).
"Podemos esperar uma pol�tica externa soberana, pragm�tica e realista para o governo Lula, em converg�ncia com a demanda do povo brasileiro", diz Hussein Kalout, pesquisador da Universidade de Harvard que colaborou informalmente com a campanha do ex-presidente como cientista pol�tico convidado por lideran�as do PT.
Desde sua elei��o, Lula j� recebeu liga��es e mensagens de v�rios l�deres mundiais — entre eles do americano Joe Biden e do franc�s Emmanuel Macron —, em um sinal que muitos analistas entendem como de receptividade para tal plano.
Mas para Leticia Pinheiro, o maior protagonismo do Brasil e o incentivo � coopera��o global s� vir�o "�s custas de muito trabalho".
"Ser� preciso reconduzir determinadas pol�ticas e corrigir um pouco decis�es equivocadas tomadas nos �ltimos anos. N�o vai ser f�cil, embora j� haja uma receptividade no ambiente internacional para que o Brasil possa ter um papel mais ativo no di�logo internacional."
A professora da Rela��es Internacionais salienta tamb�m que h� uma expectativa de que o aparato diplom�tico e o Minist�rio das Rela��es Exteriores passe por uma reforma e ganhe mais relev�ncia nesse processo.
Integra��o regional
Outro tema que ganhou destaque nos planos do futuro governo Lula � o fortalecimento dos la�os com pa�ses vizinhos na Am�rica do Sul e Am�rica Latina.
O texto divulgado pela campanha do petista antes da elei��o fala em "defender a integra��o da Am�rica do Sul, da Am�rica Latina e do Caribe, com vistas a manter a seguran�a regional e a promo��o de um desenvolvimento integrado de nossa regi�o, com base em complementaridades produtivas potenciais entre nossos pa�ses" e em "fortalecer novamente o Mercosul, a Unasul, a Celac e os Brics" (blocos de pa�ses).
Para Guilherme Casar�es, iniciativas de natureza pol�tica na regi�o foram "totalmente esvaziadas" durante o governo Bolsonaro. "Passamos quatro anos abertamente ignorando qualquer perspectiva de integra��o", diz.

Mas segundo o pesquisador, o novo governo deve ter grandes oportunidades para reverter o cen�rio. Uma delas foi escancarada pela guerra da Ucr�nia, que apesar de desafiadora, abriu as portas para a Am�rica do Sul reorganizar suas cadeias produtivas e investir mais em uma regionaliza��o.
"Percebeu-se que uma depend�ncia profunda de de locais muito distantes ou de uma cadeia muito complexa pode ser perigosa, pois se um elo se rompe existe risco de problemas de abastecimento, seguran�a alimentar ou escassez de energia", diz.
A segunda grande oportunidade encontra-se na atual crise venezuelana. "O Lula est� muito bem posicionado para estabelecer uma interlocu��o com Nicol�s Maduro e com a oposi��o na Venezuela e tentar usar o peso diplom�tico brasileiro para construir uma alternativa p�s-Maduro."
O futuro presidente foi muito criticado durante a campanha por sua suposta liga��o com governo autocr�ticos de esquerda na Am�rica Latina, como o da Venezuela e da Nicar�gua. A campanha bolsonarista explorou em especial a falta de uma cr�tica dura de Lula e seu partido a abusos desses regimes.
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O cientista pol�tico Hussein Kalout, por�m, defende o di�logo pragm�tico na regi�o em prol do equil�brio geopol�tico.
"Isolar esses pa�ses n�o � produtivo na Am�rica do Sul. � importante dialogar e com base no di�logo arrefecer os pontos de tens�o - o que n�o quer dizer tamb�m concordar com o m�todo de governan�a", disse � BBC News Brasil.
EUA e China
A atual rivalidade entre Washington e Pequim tamb�m pode representar um desafio para o Brasil de Lula.
No passado, o ex-presidente conseguiu manter uma rela��o pragm�tica com as duas pot�ncias - foi durante seu governo, ali�s, que a China se tornou o principal parceiro comercial do Brasil, em 2009. Mas desde ent�o o antagonismo se acentuou e os EUA v�m cobrando que seus aliados se posicionem de forma mais clara.
Em seu discurso p�s-vit�ria, Lula manifestou o desejo de "retomar nossas parcerias com os Estados Unidos e a Uni�o Europeia em novas bases", ao mesmo tempo em que falou sobre fortalecer os Brics — alian�a formada por Brasil, R�ssia, �ndia, China e �frica do Sul.
Para Leticia Pinheiro, da UERJ, a �nica solu��o para o Brasil seria adotar uma "equidist�ncia pragm�tica" — o termo foi cunhado pelo historiador Gerson Moura em refer�ncia � pol�tica externa por Get�lio Vargas na rela��o com EUA e Alemanha antes da 2ª Guerra Mundial.
"Essas rela��es n�o precisam ser de soma zero, uma em detrimento da outra", diz.
E ao que tudo indica, esse deve ser exatamente o caminho do futuro governo. "Tradicionalmente o Brasil tem uma rara que � conseguir transitar sem compromissos ideol�gicos entre grandes pot�ncias", diz Guilherme Casar�es.

"Ao contr�rio do governo Bolsonaro que antagonizou o [presidente dos EUA, Joe] Biden e a China por muito tempo, Lula n�o tem raz�o nenhuma para fazer isso."
Para Hussein Kalout, o presidente eleito deve ser capaz de manter uma rela��o de respeito m�tuo com os dois pa�ses, mas com independ�ncia.
"H� uma clara e manifesta disposi��o, tanto do presidente Biden quanto de Lula, de fazer com que as rela��es bilaterais sejam al�adas a uma rela��o ao patamar de uma rela��o estrat�gica", disse sobre os v�nculos com os EUA.
Uma reelei��o de Donald Trump em 2024, por�m, poderia dificultar essa rela��o. "O Trump tem uma forma de jogar pol�tica externa que � muito baseada em um 'toma l� d� c�'. Ele barganha muito, ele exige muito e muitas lealdades", diz Casar�es, da FGV.
Meio ambiente
A pauta ambiental teve grande destaque no plano de governo e nos discursos de Lula, assim como a coopera��o internacional sobre o tema.
O presidente eleito falou que o Brasil "est� pronto para retomar o protagonismo na luta contra a crise clim�tica" e que o pr�ximo governo vai "lutar pelo desmatamento zero na Amaz�nia".
"Estamos abertos � coopera��o internacional para preservar a Amaz�nia, seja em forma de investimento ou pesquisa cient�fica. Mas sempre sob a lideran�a do Brasil, sem jamais renunciarmos � nossa soberania", disse ainda o petista em seu discurso ap�s a vit�ria.
Nos governos Lula, o Brasil consolidou uma posi��o de destaque nas confer�ncias clim�ticas internacionais, que visam implementar a��es globais de conten��o do aquecimento global.
Foi num desses encontros que surgiu a proposta do Fundo Amaz�nia, implementado em 2008 com dinheiro da Noruega e da Alemanha para estimular projetos de combate ao desmatamento e uso sustent�vel da floresta.
Ap�s sua elei��o, diversos l�deres mundiais manifestaram desejo de cooperar mais com o Brasil na �rea, em mais uma indica��o de que o meio ambiente deve ganhar bastante espa�o na agenda de pol�tica externa do pr�ximo governo.
O primeiro-ministro do Canad�, Justin Trudeau, falou em "fortalecer a parceria entre os pa�ses" e "avan�ar em prioridades compartilhadas — como proteger o meio ambiente".
Josep Borrell, chefe da diplomacia da Uni�o Europeia, disse que o bloco est� comprometido em "aprofundar e ampliar o relacionamento em todas as �reas de interesse m�tuo, inclusive no com�rcio, no meio ambiente, nas mudan�as clim�ticas e na agenda digital".
J� Rishi Sunak, primeiro-ministro do Reino Unido, falou em "trabalhar juntos por quest�es que importam", como "a prote��o dos recursos naturais do planeta".

Para Guilherme Casar�es, o maior investimento em diplomacia ambiental pode destravar um dos obst�culos que t�m impedido a concretiza��o do acordo entre Uni�o Europeia e Mercosul.
"A real viabilidade do acordo depende dos outros fatores, inclusive internos de pa�ses europeus que est�o fora do controle brasileiro, mas pelo menos o pretexto internacional mais �bvio que segurava sua assinatura — a quest�o ambiental — deve ser superado", afirma.
Direitos humanos
Para a professora Leticia Pinheiro, o tema dos direitos humanos tamb�m deve ganhar mais espa�o na agenda externa do governo.
"Embora o Brasil tenha ficado um pouco isolado durante o governo Bolsonaro, o pa�s teve um certo protagonismo na discuss�o sobre direitos humanos, no sentido de reverter decis�es anteriores e ir contra direitos e posi��es que o pa�s j� havia defendido no passado", diz.
"H� uma expectativa de que esse protagonismo na dire��o inversa dos direitos seja abandonado ou que o Brasil retome sua defesa por direitos relacionados � quest�o reprodutiva e de g�nero."
Para a pesquisadora, isso deve ser feito dialogando com entidades da sociedade civil no Brasil, inclusive as religiosas, que t�m ganhado um papel cada vez maior na pol�tica nacional.
Guerra na Ucr�nia
Apesar da dist�ncia f�sica, � inevit�vel que a guerra na Ucr�nia impacte a pol�tica externa do governo Lula, pelo menos enquanto o conflito durar.

O presidente eleito recebeu muitas cr�ticas por uma entrevista dada em maio � revista americana Time, em que afirmou que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, � t�o respons�vel quanto o presidente russo, Vladimir Putin, pelo conflito. "Porque numa guerra n�o tem apenas um culpado", declarou.
Apesar de em geral se manter neutro em confrontos como o que atinge o leste da Europa atualmente, o Brasil � bastante dependente da R�ssia para a compra de fertilizantes — o pa�s importa 85% dos fertilizantes que utiliza, e os russos respondem por 23% dessas importa��es. Bras�lia tamb�m mant�m rela��es pr�ximas com Moscou por conta dos Brics.
Ao mesmo tempo, o Brasil tamb�m tem interesse em aprofundar as suas rela��es com a Europa — e grande parte dos pa�ses europeus est�o apoiando a Ucr�nia.
Para a professora Leticia Pinheiro, a tend�ncia � que o pr�ximo governo mantenha uma estrat�gia semelhante � adotada por Jair Bolsonaro nos �ltimos meses, tentando conciliar posi��es.
"Ap�s algum tempo, o governo Bolsonaro conseguiu equilibrar seu papel com a R�ssia, condenando as a��es do pa�s, mas chamando a aten��o da comunidade internacional para as demandas de Moscou", diz.
Segundo a especialista, a diplomacia brasileira tem larga experi�ncia em se relacionar com for�as em conflito — e deve manter sua tradi��o.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63522159