
Numa primeira leitura, entendeu-se que parte dessa lideran�a havia encontrado uma sa�da honrosa para praticar o bom e velho fisiologismo que parecia a guiar em outros tempos. Muitos desses nomes, afinal, j� manobraram o discurso antes para justificar a ades�o ao governo da vez.
Nem s� da agenda moral vivem as igrejas evang�licas, afinal. Elas t�m interesses concretos em manter um canal desobstru�do com os governantes, como quest�es tribut�rias e parcerias com o Estado nas comunidades terap�uticas para dependentes qu�micos.� precipitado, contudo, afirmar que haver� um estouro da manada em dire��o a Lula. Pode-se inclusive dizer que desta vez pastores esticaram tanto a corda ideol�gica que ficou mais complicado fazer slackline sobre ela. Mesmo os l�deres que possam ver vantagem numa reaproxima��o com o PT devem ser alvo de fogo amigo.
J� h�, nos bastidores do poder evang�lico, cr�ticas a uma postura em cima do muro associada � Assembleia de Deus Minist�rio Madureira, um dos ramos assembleianos mais fortes. Seu bispo-primaz, Manoel Ferreira, chegou a posar sorridente com Lula, e seu filho Abner, ao mesmo tempo em que participava de comitivas pastorais ao Pal�cio do Planalto bolsonarista, j� elogiou o capital pol�tico do ex-presidente.
Para o soci�logo da USP Ricardo Mariano, pesquisador do tema, o patrulhamento levado a cabo por pastores durante e ap�s a elei��o "� um indicador emp�rico de sua radicaliza��o pol�tica, turbinada pela alian�a com Bolsonaro e pela din�mica sect�ria das redes sociais".
O efeito colateral � constranger "os eventuais pastores bolsonaristas fisiol�gicos dispostos a apoiar o novo governo em troca de favores pol�ticos", afirma.
O pastor Silas Malafaia seria, nesse sentido, um dos mais temidos por colegas, por sua orat�ria inflamada. Ele n�o v� sentido nisso. Diz n�o haver cr�tica que fa�a o "cara que perdeu o pudor" pensar duas vezes antes de ladear com Lula.
Malafaia, que endossou o petista em 1989 e nos anos 2000 e depois se disse arrependido, acha que uma minoria vai correr para o colo do PT. "N�o sou mosca de padaria como lamentavelmente alguns poucos l�deres evang�licos s�o. N�o podem ver o doce do poder e correm pra l�."
Afinado com o pastor, o deputado S�stenes Cavalcante (PL-RJ), membro de sua igreja e presidente da bancada evang�lica, diz estar convicto de que haver� puni��o nas urnas para aqueles que queiram acenar ao PT.
"Precisamos entender que quem perde a elei��o deve ser oposi��o por quatro anos. Caso contr�rio, a pol�tica n�o vai perdoar, ser�o considerados moscas de padaria."
Agora que Bolsonaro perdeu a reelei��o, impera o que um pastor definiu � reportagem como uma ronda ideol�gica, disposta a apontar o dedo para neolulistas. O bispo Edir Macedo teve que se explicar ap�s dizer que perdoava Lula: "N�o estou virando a casaca coisa nenhuma".
"A igreja evang�lica tem o dever b�blico de orar pelo Brasil e pelas autoridades constitu�das para que haja paz e progresso na nossa na��o", afirma o bispo Eduardo Bravo, presidente da Unigrejas, bra�o da Universal, que desde Fernando Collor se alinhou a todos os presidentes.
"Por outro lado, devemos fazer oposi��o a todas as ideias que venham ferir a fam�lia tradicional."
A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, apressou-se em dizer que o partido dispensava o perd�o de Macedo. Ainda que tenha agido por interesses materiais, o bispo poderia ajudar a pacificar fi�is que ajudou a inflamar. Gleisi cometeu um erro estrat�gico que n�o ajuda a dirimir a desconfian�a da base evang�lica com a esquerda, avaliam pastores.
"A Gleisi atacou o cara, � muito burra", afirma Malafaia. "Ele t� falando pro povo dele, ‘vamos perdoar, seguir em frente’, t� dando uma palavra espiritual."
Ter puxado uma ora��o por Lula na noite da elei��o n�o significa que v� dar uma colher de ch� para o petista, diz Malafaia. "A �nica coisa que ele pode contar comigo � o que t� na B�blia [orar por ele], que sou obrigado." O ap�stolo C�sar Augusto, da igreja Fonte da Vida, trilha caminho parecido.
"Mais de 50% dos eleitores, incluindo quem se absteve de votar ou votou nulo, se decepcionou com o resultado das elei��es. Isso demonstra que o pa�s tem uma maioria de conservadores. � muito dif�cil o meio evang�lico apoiar um governo esquerdista. Mas isso n�o nos exime da fun��o sacerdotal de aben�oar os governantes e crer que o pr�ximo governo dar� certo pelo bem da na��o."
No Alian�a, grupo de WhatsApp que re�ne Malafaia, Augusto e algumas das principais lideran�as evang�licas do pa�s, o humor � o mesmo. Lula ganhou, vamos virar a p�gina, mas nem por isso ele contar� com a nossa boa vontade.
Decretada a vit�ria lulista, a maioria dos pastores acatou, resignada, o vencedor das urnas. N�o se repetiu o que vimos nos EUA, lembra Mariano, da USP.
"Foi um comportamento distinto dos pares da direita crist� norte-americana, capturada pelo trumpismo. Por enquanto, parece ser minorit�rio o questionamento golpista da disputa eleitoral no segmento."
O soci�logo aponta que a identidade direitista na lideran�a evang�lica recrudesceu desde a Lava Jato e o impeachment de Dilma Rousseff (PT). "Aliaram-se a Bolsonaro, integraram seu governo, marcado pelo aparelhamento religioso, e envidaram esfor�os descomunais para reeleg�-lo. Nesse processo, muitos se radicalizaram."
Em nenhum momento da p�s-redemocratiza��o a igreja esteve t�o envolvida em um projeto pol�tico como em 2018 e 2022, afirma Kenner Terra, pastor e doutor em ci�ncias da religi�o. "A ades�o ao bolsonarismo marca um fen�meno incomum da rela��o entre evang�licos e pol�tica."
Para entender essa comunh�o, � preciso levar em conta a espiritualiza��o da discuss�o —a batalha espiritual embutida no bin�mio bem vs. mal— e o fato de Bolsonaro ter virado "um tipo de benfeitor dos evang�licos, garantindo-lhes maior espa�o no governo", afirma Terra.
"O presidente ocupou o lugar de defensor da moral crist� no imagin�rio dessa parcela religiosa. Nem mesmo avan�os econ�micos seriam capazes de atrair da mesma maneira [os evang�licos]."
"Esses elementos s�o novos ap�s o fortalecimento do bolsonarismo de 2018 pra c�", concorda Ana Carolina Evangelista, � frente do Instituto de Estudos da Religi�o.
"A bancada evang�lica tamb�m ganhou for�a para indicar seus aliados e colocar suas pautas. Existe, portanto, uma fatia de lideran�as ainda mais alinhada com a extrema direita que n�o � mais apenas fisiol�gica, como em outros tempos."
� um equil�brio t�nue, porque, se n�o h� clima para fingir que nunca tiveram problema com Lula, tamb�m arrefeceu a predisposi��o para preservar a belicosidade da campanha eleitoral.
O ap�stolo Estevam Hernandes havia dito em julho, quando capitaneou a Marcha para Jesus, que achava imposs�vel se reconciliar com Lula. "Creio que [as predile��es eleitorais] s�o caminhos bem definidos, e que obviamente se vai at� o final por esse caminho."
Orar pelo presidente eleito "n�o significa um aceno", diz agora. "Pode ser que no caso de alguns seja, mas acredito que na maioria � o compromisso com a palavra de Deus." Hernandes, contudo, conta que manter� a tradi��o de convidar o chefe do Executivo para o evento promovido por sua igreja, a Renascer.
J� na saideira de seu segundo mandato, o petista sancionou uma lei que instituiu o Dia Nacional da Marcha para Jesus. Lula, contudo, nunca foi ao maior ato do calend�rio evang�lico do pa�s. "Sempre � importante recebermos um presidente da Rep�blica para orarmos por ele."