
Enquanto caminha entre fotos hist�ricas do Xingu e retratos de l�deres ind�genas da regi�o na mostra Xingu: contatos, do Instituto Moreira Salles em S�o Paulo, a l�der ind�gena Watatakalu Yawalapiti aponta para cada imagem de algu�m de sua fam�lia e conta suas hist�rias.
Ela chama a aten��o para sua irm�, Ana Terra Yawalapiti, e para as colegas que, ao seu lado, organizaram o movimento Atix-Mulher, um bra�o da Associa��o Terra Ind�gena do Xingu, que desde 1995 representa 16 povos que vivem no territ�rio. Diz que foram as mulheres as respons�veis por reunificar as comunidades ap�s um atrito entre alguns l�deres homens na �poca da constru��o da usina de Belo Monte durante os governos Lula e Dilma.
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"Os caciques brigaram naquela �poca por causa desses projetos. A gente tinha contato uma com a outra. Ent�o a gente pensou: a gente n�o est� brigando, ent�o temos que resolver essa situa��o dos nossos homens", diz ela.
Se havia diverg�ncias sobre como combater o projeto para a regi�o nos governos petistas, o posicionamento das comunidades se tornou praticamente un�nime durante o governo Bolsonaro, conta ela: todos se uniram para fazer oposi��o �s pol�ticas do presidente que afetaram a regi�o e os povos que ali vivem.Watatakalu foi uma das in�meras lideran�as que fizeram campanha para Lula em 2022 e ficaram muito felizes e aliviadas com sua vit�ria. Mas o apoio n�o significa 'carta branca' para o presidente eleito fazer o que quiser, diz ela.
"Todas as decis�es precisam ser pensadas junto com o movimento ind�gena. Ele precisa visitar algumas aldeias e ouvir primeiro antes de fazer", afirma.
"Ele prometeu o minist�rio ind�gena. T�, mas n�o � ele que indica. Tem que ser uma pessoa sugerida por n�s para eles. Sen�o n�o adianta nada", diz Watatakalu.

"Esse presidente eleito tem a oportunidade de sentar com a gente e conversar. Na nossa regi�o tem v�rios projetos gigantes, que at� podem acontecer. Mas precisa sentar com a gente para conversar."
"Claro que a gente vai continuar lutando, mas estamos abertos para contribuir para esses projetos sustent�veis pro Brasil", afirma a ativista.
Esse acordo com as lideran�as ind�genas sobre o nome para o Minist�rio dos Povos Origin�rios parece estar sendo mais f�cil para Lula do que a concord�ncia de diversos aliados sobre as outras pastas. Segundo O Globo, j� existe consenso para indica��o da deputada eleita e presidente da Apib (Articula��o dos Povos Ind�genas do Brasil), Sonia Guajajara, enquanto os nomes para os outros minist�rios ainda est�o sendo decididos.
Watatakalu enxerga como prioridades o fortalecimento de institui��es que tiveram verbas, funcion�rios e atua��o cortados por Bolsonaro.
"Temos que ver como vai ficar a quest�o da Funai (Funda��o Nacional do �ndio), que foi desmontada no governo Bolsonaro, rever as demarca��es de territ�rio e retomar a Sesai (Secretaria de Sa�de Ind�gena), que desde o in�cio do governo Bolsonaro praticamente n�o existe mais pra gente."

Feminista e defensora da tradi��o
Watatakalu olha para o pr�prio retrato entre as fotos lideran�as do Xingu que ganharam um espa�o na mostra.
"H� alguns anos, haveria apenas homens aqui", afirma.
Feminista, Watatakalu tem uma posi��o delicada de ao mesmo tempo defender a preserva��o da cultura de seu povo e combater tradi��es que considera machistas, como o casamento arranjado.
Ela pr�pria se recusou, aos 15 anos, a aceitar um casamento arranjado e depois de tr�s anos conseguiu retornar para sua fam�lia. Hoje � casada com Ianukul� Kaiabi Sui�, marido que ela pr�pria escolheu.
Ao lado da irm� Ana Terra, ela organizou a constru��o de uma Casa da Mulher no centro da Aldeia Velha Yawalapiti, em Mato Grosso - algo revolucion�rio, pois os Yawalapiti costumavam ter apenas a Casa dos Homens, onde eles se re�nem para tomar decis�es e onde as mulheres n�o entram.

Seu pai, um dos l�deres mais importantes do Xingu, Pirakum� Yawalapiti, foi um dos �nicos l�deres homens a apoiar o projeto. Pirakum� morreu em 2015, deixando vi�va a m�e de Watatakalu, a guerreira e paj� Iamony Mehinako. Iamony morreu em 2021 v�tima de covid-19 - uma dos oito parentes pr�ximos que Watatakalu perdeu durante a pandemia, incluindo seu tio Aritana, outro l�der important�ssimo do Xingu.
Pirakum� � retratado em diversas fotos na exposi��o, inclusive uma em que era beb� e estava no colo da m�e. Assim como muitas das fotos hist�ricas do Xingu tiradas por fot�grafos brancos, esse retrato n�o tinha qualquer identifica��o de quem eram as pessoas - apenas uma legenda dizendo a qual povo pertenciam.
Foi Watatakalu, uma das consultoras da exposi��o, quem reconheceu o pai e a av� na foto — identificada n�o s� pelo rosto, mas pela barriga, pelo bico do seio — durante o trabalho de pesquisa para a mostra.

Odisseia de identifica��o
Dezenas de outras pessoas retratadas nos 200 itens da exposi��o foram reconhecidas durante um longo e trabalhoso processo de identifica��o feito em in�meras aldeias por diferentes povos, entre eles os Xavante, os Bakairi e os Kayap�.
Iniciado pelos curadores Takum� Kuikuro e Guilherme Freitas, o trabalho teve o aux�lio da Atix e grande participa��o do pesquisador Yamalu Kuikuro.
Fotografias hist�ricas da regi�o — o primeiro territ�rio ind�gena a ser demarcado no Brasil — costumam ter apenas o nome dos sertanistas brancos nas legendas, sem identificar os �ndigenas que os acompanham, que muitas vezes eram importantes lideran�as em seus povos, como o cacique Raoni Metyktire, retratado quando ainda era jovem.

O curador Guilherme Freitas diz que qualquer exposi��o que fosse montada sobre o Xingu ficaria incompleta sem a identifica��o dos ind�genas. "O acervo do instituto, com todo seu tamanho e import�ncia, n�o seria suficiente para contar essa hist�ria", afirma ele, que al�m do processo de identifica��o foi atr�s de trabalhos feitos pelos pr�prios ind�genas para contrapor o olhar de fora.
Al�m do nome do fot�grafo, data e �s vezes do povo, a maioria das fotos tinha pouqu�ssima informa��o contextual nas legendas - n�o s� das pessoas envolvidas, mas dos rituais sendo feitos, das situa��es sendo retratadas.

Para identific�-las, encaderna��es com os retratos foram levados de aldeia em aldeia com ajuda da Atix. Com a pandemia de covid dificultando o trabalho, parte da identifica��o foi feita montando grupos de whatsapp com as lideran�as e enviando as fotos digitalmente quando era poss�vel.
Freitas destaca que o IMS n�o � o �nico nem o primeiro a fazer essa pesquisa que ajuda a reverter um pouco o apagamento das pessoas retratadas. Ele afirma que � um trabalho em cont�nuo andamento, mesmo com a exposi��o j� inaugurada. Nem todas as pessoas registradas foram reconhecidas ainda.

Algo que � provado por Watatakalu alguns minutos depois, quando ela reconhece um conhecido em uma foto em que apenas o av� dela, Kanato Yawalapiti, estava identificado. Ela demora alguns segundos para se lembrar do nome.
"Pulaliyat� Aweti", diz ela. "Na legenda original estava escrito kuikuro, mas ele n�o era kuikuro. As pessoas confundem porque os kuikuro acolhiam v�rias pessoas cujos povos tinham perdido a aldeia."
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63589602