
O presidente eleito, Luiz In�cio Lula da Silva, tenta aprovar no Congresso uma altera��o da Constitui��o que permitir� ao governo gastar em 2023 at� R$ 198 bilh�es fora do Teto de Gastos — regra constitucional que limita o aumento das despesas ao crescimento da infla��o.
O grosso desse valor (R$ 175 bilh�es) vem da proposta de retirar o programa Aux�lio Brasil — que deve voltar a se chamar Bolsa Fam�lia — definitivamente do or�amento limitado pelo teto. Al�m disso, o pr�ximo governo tenta uma licen�a para gastar uma parte de eventuais receitas extraordin�rias (por exemplo, a arrecada��o com leil�es de campos de petr�leo) com investimentos fora do limite constitucional, montante que pode chegar a R$ 23 bilh�es em 2023.
As medidas constam em um proposta de emenda � constitui��o, chamada de PEC da Transi��o, que foi apresentada na quarta-feira (16/11) pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin.
O pedido para tirar despesas do teto n�o � novidade. Segundo levantamento do economista Br�ulio Borges, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Funda��o Getulio Vargas (FGV IBRE), feito a pedido da BBC News Brasil, os gastos do governo Bolsonaro acima do teto somam R$ 794,9 bilh�es de 2019 a 2022.
Esse valor representa a soma de autoriza��es que a atual gest�o obteve no Congresso para gastar acima do limite constitucional e outras manobras que driblaram o teto, como o adiamento do pagamento de precat�rios (d�vidas do governo reconhecidas judicialmente) e a mudan�a do c�lculo para definir o teto em 2022.
A maior parte dos quase R$ 800 bilh�es acima do limite constitucional gastos pelo atual governo foram empregados em 2020, ano em que o Congresso liberou amplamente as despesas devido � pandemia de covid-19. Mas a flexibiliza��o da regra come�ou j� no primeiro ano de governo e continuou ap�s o arrefecimento da pandemia. Neste �ltimo ano, os furos no teto impulsionaram a expans�o de benef�cios sociais pouco antes da elei��o, em uma a��o que tentava impulsionar a reelei��o de Bolsonaro, na vis�o de Borges.
Foram R$ 53,6 bilh�es em 2019, R$ 507,9 bilh�es em 2020, R$ 117,2 bilh�es em 2021 e ser�o R$ 116,2 bilh�es neste ano, segundo os c�lculos do economista (entenda melhor os n�meros ao longo da reportagem).
O valor agora solicitado pela futura gest�o Lula (R$ 198 bilh�es) � considerado exagerado por atores do mercado financeiro, que defendem maior controle das despesas com objetivo de evitar o aumento do endividamento p�blico, atualmente em 77% do PIB (Produto Interno Bruto). O governo eleito, por sua vez, afirma que esse montante � necess�rio para garantir despesas para o bem-estar da popula��o mais pobre.
"Aos cr�ticos vai a� uma informa��o. Or�amento de 2023 de Bolsonaro n�o tem recurso previsto pra merenda escolar, Farm�cia Popular, creches e aux�lio de 600 reais. Estamos trabalhando para reverter a terra arrasada que estamos encontrando e colocar o povo no or�amento", argumentou no Twitter a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, ao defender a amplia��o dos gastos.
A PEC de Transi��o precisa ser aprovada com texto id�ntico no Senado e na C�mara para entrar em vigor, e o Congresso pode alterar pontos da proposta. Um ponto que est� em negocia��o � retirar o Bolsa Fam�lia do teto apenas em 2023 ou at� 2026, �ltimo ano do mandato de Lula, em vez de fazer essa mudan�a definitivamente.
A proposta de Or�amento atual, apresentada pelo governo Bolsonaro, prev� R$ 105 bilh�es para o Aux�lio Brasil em 2023, valor que garante um benef�cio mensal de R$ 405 a partir de janeiro.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63653642
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A promessa de Lula, por�m, � manter o atual valor de R$ 600, que foi elevado poucos meses antes da elei��o e tem previs�o para durar apenas at� dezembro. Al�m disso, o pr�ximo governo quer pagar R$ 150 a mais por crian�a de at� seis anos na fam�lia.
Essas duas medidas est�o estimadas em R$ 70 bilh�es, o que elevaria para R$ 175 bilh�es o total do programa.
Se o Congresso aprovar a proposta do governo eleito de retirar os R$ 175 bilh�es do teto, os R$ 105 bilh�es que hoje est�o previstos pro benef�cio seriam remanejados para outras despesas, como o aumento de transfer�ncias de renda, do programa Farm�cia Popular e de investimentos em obras p�blicas.

As despesas fora do teto de Bolsonaro
J� no primeiro ano de governo, o teto de gastos gerava atritos dentro da gest�o Bolsonaro. Em setembro de 2019, o presidente chegou a defender a flexibiliza��o do limite constitucional.
Naquele momento, havia um debate sobre o risco de paralisa��o da m�quina p�blica devido ao limite de despesas imposto pelo teto. Como algumas despesas obrigat�rias seguiam crescendo automaticamente, caso das aposentadorias, a regra do teto exigia que outras fossem cortadas, amea�ando o funcionamento de servi�os p�blicos essenciais.
Nesse contexto, o presidente respondeu "que era quest�o de matem�tica", quando foi questionado sobre a necessidade de mudar a regra.
"Eu vou ter que cortar a luz de todos os quarteis do Brasil, por exemplo, se nada for feito", disse ainda na ocasi�o.
No dia seguinte, ap�s resist�ncia de Guedes � ideia, Bolsonaro recuou de sua fala.
"Como conversei com Paulo Guedes (ministro da Economia), seria uma rachadura em um transatl�ntico", disse, sobre a flexibiliza��o do teto.
Apesar disso, j� em 2019 o governo "furou" o teto. Naquele ano, o Congresso alterou a Constitui��o para permitir que o governo transferisse para Estados e munic�pios cerca de R$ 46 bilh�es relativos � arrecada��o com cess�o onerosa (leil�o para explora��o de campos de petr�leo).
Isso foi necess�rio porque apenas as transfer�ncias obrigat�rias para governos estaduais e municipais ficam fora do teto, o que n�o era o caso do compartilhamento dessa arrecada��o.
Um dos objetivos do teto � impedir o governo de gastar mais do que arrecada, ampliando seu endividamento. Idealmente, os defensores da medida esperavam que ela for�asse o governo, inclusive, a economizar (gastar menos do que arrecada) para pagar o custo da d�vida, permitindo sua redu��o.
No entanto, ao decidir compartilhar os recursos dessa arrecada��o extra em 2019 fora do teto, por exemplo, o governo evitou que outros gastos fossem cortados para permitir esse repasse a Estados e munic�pios.
Al�m disso, em 2019 o governo registrou fora do teto a capitaliza��o da Emgepron, estatal ligada � Marinha, em R$ 7,6 bilh�es, com objetivo de usar esses recursos na compra de novos navios.
Segundo Borges, a regra do teto permite capitaliza��o de estatais fora do limite de gastos, mas isso foi pensado para situa��es espec�ficas, como dificuldades financeiras dessas empresas p�blicas ou em opera��es de preparo dessas companhias para privatiza��o.
No caso da Emgepron, por�m, a opera��o foi entendida pelo Tribunal de Contas da Uni�o como uma forma de driblar o teto para fazer investimentos do Minist�rio da Defesa que deveriam estar dentro do limite constitucional.
O Or�amento de Guerra contra covid-19
Em maio de 2020, com o Brasil e o mundo enfrentando a grave crise de covid-19, o Congresso aprovou o chamado Or�amento de Guerra, que suspendeu o teto no caso de gastos relacionados � pandemia.
Naquele ano, foram gastos R$ 507,9 bilh�es fora do limite constitucional. Esses recursos cobriram despesas como recursos extras para o Sistema �nico de Sa�de (SUS), o programa de redu��o de jornada de trabalho para evitar demiss�es em empresas, compensa��es a Estados e munic�pios que tiveram forte perda de arrecada��o, e o Aux�lio Emergencial de R$ 600, que substituiu o Bolsa Fam�lia.

Depois, quando novas ondas da covid ganharam for�a no ano seguinte, parte dessas despesas foi novamente liberada acima do teto em 2021, somando R$ 117,2 bilh�es, segundo o levantamento de Borges.
Al�m da pandemia, a gest�o Bolsonaro tamb�m usou a guerra da Ucr�nia como justificativa para ampliar as despesas acima do teto em 2022. Segundo o governo, o conflito, iniciado em fevereiro deste ano, teve reflexos na infla��o brasileira, afetando os mais pobres.
Braulio, por�m, questiona esse argumento, j� que parte dos gastos acima do teto neste ano foram aprovados no final de 2021, quando a pandemia j� havia arrefecido e a guerra ainda n�o havia come�ado.
Na sua vis�o, o objetivo principal era ampliar despesas que pudessem melhorar a avalia��o do governo e atrair votos para Bolsonaro na elei��o, em especial com a amplia��o de programas sociais. J� o governo rebateu que a inten��o fosse "eleitoreira".
"Tem que escolher: se h� fome no Brasil, se as pessoas est�o cozinhando � lenha, se isso tudo � verdade, esse programa [o pacote de benef�cios sociais] n�o � eleitoreiro. Ou ent�o esse programa � eleitoreiro e n�o tinha ningu�m passando fome", argumentou o ministro da Economia, Paulo Guedes, em julho deste ano.
As medidas 'fura-teto' pr�-elei��o
No final de 2021, o governo conseguiu que o Congresso aprovasse a chamada PEC dos Precat�rios, com objetivo de abrir espa�o no Or�amento para manter o Aux�lio Brasil em R$ 400 reais neste ano.
A PEC trouxe duas medidas. Um delas foi alterar o c�lculo do teto de gastos. A regra original estabelecia que o valor autorizado para as despesas do governo era atualizado pela infla��o acumulada em 12 meses at� junho do ano anterior. Funcionava assim porque o Or�amento � formulado ao longo do segundo semestre do ano anterior. Dessa forma, isso era feito j� com a informa��o exata do reajuste do teto.
Com a mudan�a proposta pelo governo Bolsonaro, o reajuste do teto passou a ser fixado com a infla��o acumulada at� dezembro. Ou seja, o Or�amento agora come�a a ser formulado com base na infla��o esperada para o ano e ao final isso � ajustado, caso necess�rio.
O governo adotou essa mudan�a porque j� se projetava que a infla��o fecharia 2021 mais alta do que o acumulado em 12 meses at� junho daquele ano. Essa manobra permitiu ao governo gastar em 2022 R$ 26 bilh�es a mais do seria autorizado pela regra original do teto, aponta o levantamento do economista.
Al�m disso, a PEC autorizou o atraso no pagamento de precat�rios (d�vidas da Uni�o com pessoas e empresas j� reconhecidas pela Justi�a). O adiamento desses gastos abriu uma folga de mais R$ 49 bilh�es no teto.
Depois, em julho deste ano, o Congresso aprovou a chamada PEC Kamikaze, autorizando uma s�rie de de benef�cios acima do limite constitucional, como o aumento do Aux�lio Brasil de R$ 400 para R$ 600 e novos aux�lios para caminhoneiros e taxistas. Foi necess�rio modificar a Constitui��o, n�o s� devido ao limite do teto, mas para contornar tamb�m a legisla��o eleitoral, que veda a cria��o de benef�cios �s v�speras da elei��o.
Borges calcula que ser�o gastos R$ 41,2 bilh�es acima do teto at� o final deste ano, devido � PEC Kamikaze. Somando isso ao atraso dos precat�rios e a mudan�a do c�lculo do teto, o governo ter� usado R$ 116,2 bilh�es acima do que a regra original permitiria para este ano.
"Eles (o governo Bolsonaro) enfrentaram realmente um cen�rio bem adverso. E n�o foi s� a pandemia e a guerra. Teve uma seca muito, muito severa aqui no Brasil em 2021. Isso afeta muito a nossa economia, que depende de hidroeletricidade, de agroneg�cio. Ent�o, realmente, teve muito choque negativo na economia", nota o pesquisador da FGV.
"Mas toda essa bagun�a (nas contas p�blicas) que a gente est� discutindo pro ano que vem come�ou com a PEC dos Precat�rios no ano passado, que foi pra aumentar espa�o (fiscal) no ano da elei��o", cr�tica.

O fim do teto?
Para o pesquisador da FGV, a discuss�o precisa avan�ar para uma nova regra fiscal que substitua o teto, j� que claramente essa regra n�o est� funcionando. O pr�prio Lula defendeu o fim do atual limite constitucional durante a elei��o.
"Isso (o debate sobre a licen�a de gastos acima do teto) � s� a ponta do iceberg, porque a discuss�o � o que vamos colocar no lugar do teto de gastos", ressalta Borges.
Alguns especialistas em contas p�blicas, como o secret�rio da Fazenda de S�o Paulo, Felipe Salto, defendem que o teto seja substitu�do por uma regra que atrele o aumento de gastos ao comportamento da d�vida p�blica. Um cen�rio de alta da d�vida levaria a uma restri��o de despesas, enquanto uma redu��o do endividamento abriria espa�o para expans�o dos gastos.
"A vantagem da proposta � que voc� reorienta a pol�tica fiscal para aquilo que realmente importa, que � trajet�ria da d�vida, e evita ter uma pol�tica fiscal excessivamente contracionista (de corte de gastos quando a economia j� est� fraca)", explicou, em entrevista recente ao jornal Folha de S.Paulo.
"A regra do teto, na verdade, j� n�o existe mais. Quem acabou com ela chama-se Paulo Guedes, com uma s�rie de emendas � Constitui��o", disse ainda Salto.
A proposta � defendida tamb�m pela economista e professora da Universidade Johns Hopkins, Monica de Bolle. Na sua vis�o, isso j� deveria ser tratado na PEC de Transi��o. A tend�ncia, por�m, � que essa discuss�o seja feita ap�s a posse de Lula.
"A PEC da Transi��o precisa abrir o caminho para que se modernize o arcabou�o fiscal brasileiro. Ser� lastim�vel se as lideran�as eleitas n�o tiverem a capacidade de perceber isso", escreveu de Bolle no Twitter.