
O Grupo de Trabalho (GT) sobre Sa�de do Governo de Transi��o diagnosticou a principal amea�a aos primeiros meses de governo: a falta de informa��es.
"Recebemos dados confusos, que n�o batem, que est�o incompletos… O atual governo nem consegue nos dizer quantas vacinas est�o para vencer em breve", relata o m�dico Arthur Chioro, coordenador do GT e ex-ministro da Sa�de.
"E isso chega at� a inviabilizar algumas das a��es que precisam ser tomadas", complementa.
- Como apag�o de dados sobre vacina��o no Brasil traz de volta amea�a de doen�as j� controladas
- 'N�o existe c�ncer p�blico e c�ncer privado. Por que o tratamento � t�o diferente no SUS?'
O chamado "apag�o" tamb�m � mencionado em relat�rios do Tribunal de Contas da Uni�o (TCU) compartilhados com a equipe de transi��o, que mencionam at� um poss�vel "cen�rio insustent�vel" para o Sistema �nico de Sa�de (SUS).
O Minist�rio da Sa�de nega essas alega��es e diz ter todos os dados dispon�veis.
Mas o que a poss�vel aus�ncia desses indicadores pode significar na pr�tica para o novo governo de Luiz In�cio Lula da Silva (PT)? E como isso pode afetar as pol�ticas p�blicas em sa�de no curto e no m�dio prazo?
A BBC News Brasil ouviu especialistas para entender o cen�rio da sa�de de 2023 e os principais entraves para as pol�ticas p�blicas de preven��o e o tratamento de doen�as entre os brasileiros.
A import�ncia das estat�sticas
A m�dica Fatima Marinho, assessora t�cnica s�nior da Vital Strategies, organiza��o global de sa�de p�blica, explica que os dados s�o vitais para definir pol�ticas e tomar decis�es.
"Se eu sei que a cobertura de uma vacina est� menor do que a meta estipulada, posso identificar quem n�o tomou as doses indicadas e lan�ar campanhas espec�ficas para esse p�blico", exemplifica.
"Ou seja: pela informa��o, consigo transformar a realidade e decidir quem, onde, como e por que vou fazer isso ou aquilo", complementa.
A especialista, que tamb�m trabalhou com essa �rea de epidemiologia e an�lise de estat�sticas no Minist�rio da Sa�de, acrescenta que manter os dados atualizados e dispon�veis � primordial para "a sociedade acompanhar e cobrar os representantes".
Quando essas informa��es n�o est�o dispon�veis, tudo fica mais complicado: ora, como o governo ser� capaz de definir a compra de medicamentos para diabetes, por exemplo, se n�o sabe ao certo o n�mero de portadores da doen�a no pa�s?
A falta de dados pode levar ao desabastecimento — se os n�meros forem subestimados — ou ao desperd�cio — caso sejam superestimados.
E, nesse caso, tanto a falta quanto o excesso podem ser prejudiciais. Seguindo o exemplo do diabetes: por um lado, a falta de medicamentos pode significar a piora da sa�de (e at� a morte) de muitas pessoas; por outro, o exagero na hora de comprar esses f�rmacos significa que o recurso p�blico foi investido em algo que n�o era necess�rio, e pode faltar dinheiro para outras �reas.

O que diz o TCU
Em junho, o TCU divulgou um relat�rio intitulado Lista de Alto Risco na Administra��o P�blica Federal.
O documento, que traz an�lises sobre diversas �reas, como energia el�trica, benef�cios sociais e seguran�a h�drica, dedica um cap�tulo inteiro para o acesso e a sustentabilidade do SUS.
Os respons�veis pelo artigo apontam como principais problemas do setor o cen�rio fiscal, a infla��o, o envelhecimento da popula��o e a judicializa��o (em que o governo acaba sendo obrigado pela Justi�a a custear tratamentos para indiv�duos).
O texto tamb�m apresenta os "problemas de governan�a e gest�o que impactam custos e efici�ncia do SUS" entre 2015 e 2021.
Entre os pontos, est�o o desperd�cio de recursos, as defici�ncias na pactua��o federativa (quem � respons�vel por custear cada coisa entre Governo Federal, Estados e munic�pios), e inefici�ncias nos sistemas de auditoria do SUS.
Em novembro, o TCU tamb�m compartilhou com o governo de transi��o outros documentos, em que cita "ind�cios de insustentabilidade" do sistema p�blico de sa�de do pa�s e afirma que o Governo Federal n�o possui dados espec�ficos sobre a vacina��o contra a covid, especialmente a respeito dos grupos priorit�rios e a divis�o por faixa et�ria.
No t�pico sobre tecnologias da informa��o em sa�de, o documento cita o termo "apag�o" e lista "defici�ncias no funcionamento dos comit�s de governan�a" do Minist�rio da Sa�de.
"Constatou-se que os dois comit�s internos mais importantes da pasta — o Comit� Interno de Governan�a (CIG) e o Comit� de Inform�tica e Informa��es em Sa�de (CIINFO) — se encontravam inoperantes durante a maior parte do per�odo de acompanhamento", escrevem os autores.
"As reuni�es destes comit�s foram retomadas no final do per�odo acompanhado, j� em 2022, ap�s provoca��o da equipe de fiscaliza��o", informam.
O relat�rio admite que aconteceram alguns avan�os (como a pr�pria retomada dos tais comit�s, ainda considerada "incipiente"), mas indica a necessidade de implementar v�rios aperfei�oamentos nessa �rea de dados em sa�de.

O que diz o governo de transi��o
Chioro, que tamb�m � professor da Universidade Federal de S�o Paulo (Unifesp), afirma que muitos dados pedidos pelo GT de Sa�de ao minist�rio "est�o em sigilo".
"Eles n�o sabem dizer quantas vacinas contra a covid foram distribu�das para Estados e munic�pios, ou qual o prazo de validade das doses que est�o em estoque", critica o coordenador.
O m�dico revela que, desde as elei��es, o GT da Sa�de fez 38 audi�ncias com diversos representantes do setor, como a ind�stria farmac�utica, a Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria (Anvisa), a Ag�ncia Nacional de Sa�de Suplementar (ANS), diversas associa��es de trabalhadores…
"Dessas, em 37 reuni�es as pessoas apontaram a falta de informa��es como um problema", calcula.
"Descobrimos a duras penas que, no in�cio de dezembro, o Minist�rio da Sa�de n�o tinha feito a programa��o de compra das vacinas para a campanha contra a gripe, que come�a em mar�o ou abril do ano que vem", acrescenta.
Procurado pela BBC News Brasil, o Instituto Butantan, respons�vel pela fabrica��o das doses contra o v�rus influenza usadas na rede p�blica do pa�s, confirmou a informa��o.
A m�dica sanitarista Lucia Souto, presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Sa�de (Cebes) e integrante do GT, considera a situa��o "grav�ssima".
"Como n�o h� dados, n�o temos uma dimens�o adequada do problema que enfrentaremos", diz.
"O que deu para constatar foi uma desmobiliza��o do Programa Nacional de Imuniza��es (PNI) e de setores que cuidam da sa�de da mulher, dos ind�genas e da assist�ncia farmac�utica, como o programa Farm�cia Popular", lista.
A especialista, que tamb�m integra a Funda��o Oswaldo Cruz (FioCruz), chama a aten��o para uma "demanda represada" por diagn�sticos e tratamentos para as mais variadas doen�as.
O que dizem os pesquisadores
Ao ser questionado sobre o assunto, o m�dico sanitarista Reinaldo Guimar�es, vice-presidente da Associa��o Brasileira de Sa�de Coletiva (Abrasco), cita uma frase dita pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) logo no in�cio do governo, em 2019.
"� �poca, ele afirmou que era necess�rio 'desconstruir muita coisa' no Brasil", lembra.
Na vis�o do especialista, isso de fato aconteceu em rela��o aos dados p�blicos em diversas �reas, como a sa�de.
"Ao longo de muitos anos, eu fiz uma consulta sistem�tica ao site do Minist�rio de Ci�ncia e Tecnologia para colher informa��es sobre gastos nacionais com pesquisa e desenvolvimento. E esses dados simplesmente deixaram de ser publicados nos �ltimos tr�s anos. Algumas bases v�o s� at� 2018 ou 2019", conta.
"Por um lado, temos a falta de compet�ncia das pessoas que foram colocadas em cargos importantes. Por outro, h� um projeto de poder que se aproveita do sequestro e do apagamento de dados", opina.
Guimar�es d� outro exemplo para entender como a aus�ncia de n�meros � prejudicial.
"O Censo deveria ser feito pelo IBGE em 2020, mas atrasou e s� teremos os dados no in�cio de 2023. Ou seja: todas as pol�ticas p�blicas atuais s�o baseadas numa estimativa de 2010, sendo que nesse meio tempo tivemos uma queda na taxa de fecundidade e na expectativa de vida, al�m de uma pandemia que matou quase 700 mil brasileiros", diz o pesquisador, que tamb�m � professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Para Marinho, algumas decis�es tomadas pelo governo durante a crise da covid-19 aumentaram a descren�a sobre as estat�sticas oficiais de sa�de.
"N�s tivemos aquelas tentativas de n�o disponibilizar os dados de casos e mortes por covid, em que foi necess�ria at� a cria��o de um cons�rcio de ve�culos de imprensa para coletar as informa��es com as Secretarias Estaduais da Sa�de", lembra.
J� durante a vacina��o contra o coronav�rus, lembra a m�dica, os sistemas de inform�tica de munic�pios, Estados e do Minist�rio da Sa�de n�o "conversavam" e foram detectadas muitas discrep�ncias entre as estat�sticas locais e as do Governo Federal.
"Isso tudo gerou desconfian�a, at� porque o Brasil sempre foi um dos pa�ses mais avan�ados do mundo em termos de disponibilizar publicamente os dados de sa�de", conta.
O infectologista Julio Croda, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, concorda que h� de fato um apag�o no momento.
"N�o temos acesso adequado a respeito da cobertura vacinal, ou de quantas pessoas internadas receberam ou n�o as doses", afirma.
Mas o especialista, que � professor da FioCruz e tamb�m trabalhou no Minist�rio da Sa�de, chama a aten��o para algumas dificuldades cr�nicas de obter informa��es nessa �rea.
"Desde a cria��o do SUS em 1988, nunca tivemos um sistema com capacidade de avaliar o impacto das medidas que s�o tomadas", avalia.
"Com isso, sempre foi dif�cil saber o real impacto dos servi�os que o SUS executa. Por exemplo, como um novo tratamento contra o AVC [Acidente Vascular Cerebral] reduziu os casos e as mortes em cada regi�o? Ou qual foi o resultado da implementa��o de uma UPA [Unidade de Pronto Atendimento] numa cidade?", questiona.
"Esses processos de avalia��o de sa�de p�blica muitas vezes s�o feitos por institui��es como a FioCruz e as universidades p�blicas, mas precisamos tamb�m que isso seja realizado de forma constante pelo pr�prio Minist�rio da Sa�de", opina.
O que diz o governo
A BBC News Brasil procurou o Minist�rio da Sa�de para saber qual o posicionamento do Governo Federal a respeito das alega��es apresentadas por pesquisadores, entidades e a equipe de transi��o.
Em nota, a assessoria de comunica��o disse que "� falsa a informa��o de falta de transpar�ncia dos dados relacionados � covid-19".
"O Minist�rio da Sa�de possui todos os registros relacionados aos brasileiros vacinados contra a doen�a no pa�s, como CPF, tipo de vacina administrada, data de administra��o, doses de refor�o aplicadas, entre outros. Todas essas informa��es est�o dispon�veis para acesso da popula��o por meio do aplicativo Conecte SUS."
A nota tamb�m defende que, "desde o in�cio da pandemia, o Governo Federal atuou de forma c�lere e transparente para agilizar as medidas de preven��o, prote��o e cuidado da popula��o brasileira".
"A pasta apostou na compra diversificada de vacinas, garantindo mais de 700 milh�es de doses com um investimento de mais de R$ 37 bilh�es. Destas, mais de 550 milh�es de doses j� foram distribu�das a todos os Estados e Distrito Federal."
O texto ainda afirma que todos os dados relativos � covid-19 est�o dispon�veis na plataforma Localiza SUS. "Na ferramenta, tamb�m � poss�vel localizar todos os insumos e recursos financeiros disponibilizados aos Estados e munic�pios durante a pandemia, como leitos, vacina, medicamentos, testes diagn�sticos, EPI, entre outros."
Por fim, o Minist�rio da Sa�de diz que vai disponibilizar doses da vacina bivalente (que protege contra as variantes mais recentes do coronav�rus) a partir de dezembro.
Ap�s o recebimento das respostas, a BBC News Brasil enviou novamente ao Minist�rio da Sa�de questionamentos sobre o programa Farm�cia Popular, o represamento de exames e cirurgias, o mecanismo de fiscaliza��o do SUS e o relacionamento com o governo de transi��o, que n�o foram respondidos no primeiro comunicado.
At� o fechamento desta reportagem, n�o haviam sido enviados posicionamentos sobre essas outras perguntas.
O que fazer?
Diante dos desafios e da falta de dados, o que o novo governo est� planejando na �rea da sa�de? E quais s�o as principais metas desse setor para os primeiros 100 dias de Lula na presid�ncia?
Chioro cita que o primeiro passo � garantir um or�amento mais polpudo para a sa�de em 2023.
"Pedimos para o [vice-presidente eleito] Geraldo Alckmin (PSB) recompor R$ 10,4 bilh�es que foram cortados pelo governo Bolsonaro do or�amento de sa�de do ano que vem. Al�m disso, requisitamos tamb�m mais R$ 12,3 bilh�es para medidas emergenciais, como comprar vacinas e medicamentos", estipula.
"Tamb�m precisamos recuperar a capacidade de coordena��o do Minist�rio da Sa�de. Isso inclui articular as a��es com Estados e munic�pios, pois s�o eles que est�o na ponta e executam as pol�ticas p�blicas", acrescenta.
O m�dico tamb�m cita que �reas como vacina��o, sa�de ind�gena, assist�ncia farmac�utica, redu��o de filas de exames ou cirurgias e sa�de mental ser�o prioridades.
"Vamos voltar a condicionar o Bolsa Fam�lia � carteirinha de vacina��o atualizada. Exigir esse documento na hora da matr�cula em creches, escolas e universidades � outra atitude para voltarmos a ter boas coberturas vacinais", promete.
Souto destaca a necessidade de melhorar os sistemas de informa��o. "Precisamos turbinar essa �rea para que todos os dados estejam no mesmo sistema e isso facilite a vida de pacientes e profissionais da sa�de", diz.
A m�dica tamb�m indica a necessidade de retomar a participa��o popular nas pol�ticas p�blicas, por meio das Confer�ncias Nacionais de Sa�de.

Para Guimar�es, o in�cio do pr�ximo governo deveria servir para corrigir as defici�ncias mais urgentes, que se agravaram nos �ltimos quatro anos.
"� claro que temos problemas estruturais, mas precisamos compreender a situa��o na qual estamos, recuperar o tempo perdido e resgatar um sistema que, apesar de alguns defeitos, fornecia a maior parte das informa��es necess�rias para o governo exercer o seu papel", conta.
Croda v� que os primeiros 100 dias da nova gest�o podem apresentar uma armadilha importante na �rea de sa�de. "A grande dificuldade � saber se teremos insumos suficientes para iniciar os projetos, como as grandes campanhas de vacina��o", cita.
"Sem esses insumos estrat�gicos, como vacinas, rem�dios e inseticidas para controlar insetos transmissores de doen�as, qualquer planejamento fica comprometido", aponta o infectologista.
Por fim, Marinho entende que a situa��o � preocupante — e vai exigir a��es imediatas.
"J� t�nhamos que estar trabalhando na reestrutura��o da sa�de e, ao mesmo tempo, 'apagar os inc�ndios' que aparecer�o pelo caminho", diz.
"Tudo indica que at� agora s� foram identificadas as pontas do iceberg de muitos dos problemas", conclui.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63970693