
O governo de Luiz In�cio Lula da Silva disponibilizou rapidamente uma enorme planilha que detalha dezenas de milh�es de reais em gastos p�blicos com cart�o corporativo pelos �ltimos quatro presidentes (2003 a 2022), retirando o sigilo de milhares de opera��es.
Desde que os n�meros foram revelados, apoiadores de diferentes governos passaram a discutir nas redes sociais sobre qual presidente teria usado mais o cart�o: Lula, Dilma Rousseff, Michel Temer ou Jair Bolsonaro?
A planilha divulgada pelo governo — ap�s pedido da organiza��o especializada em transpar�ncia Fiquem Sabendo — n�o � a fonte ideal para concluir qual deles registrou mais despesas. Os dados do Portal da Transpar�ncia, que trazem o total dos gastos com cart�o por cada governo, indicam que essa planilha n�o traz todas as despesas feitas pelos quatro presidentes.
Por isso, a BBC News Brasil fez um amplo levantamento no portal, tanto das despesas totais com cart�o, como dos gastos espec�ficos da Presid�ncia da Rep�blica, em cada governo, desde 2004 (o portal n�o tem dados anteriores a isso).
Os n�meros analisados pela reportagem indicam que, na m�dia anual, a administra��o Lula foi a que mais gastou com o cart�o, tanto quando se considera o total do governo (R$ 111,6 milh�es ao ano), como quando se observa apenas as despesas da Presid�ncia (R$ 13,6 milh�es). Os valores foram atualizados pela infla��o.Na outra ponta, a administra��o Temer aparece como a que menos usou o cart�o: R$ 66 milh�es na m�dia anual de todo o governo, e R$ 6,3 milh�es na m�dia anual da Presid�ncia.
J� Dilma e Bolsonaro se alternam. O governo dela aparece como o segundo que mais gastou no total (R$ 105,4 milh�es em m�dia), enquanto ele aparece com o segundo maior gasto quando se considera apenas o uso do cart�o pela presid�ncia (R$ 11,3 milh�es em m�dia).
Considerando os quatro governos, foram gastos quase R$ 1,78 bilh�o de 2004 a 2022 com cart�es corporativos.
Eis a m�dia anual de cada presidente, calculada ap�s atualiza��o das despesas pela infla��o:
Gasto total do governo com cart�es (m�dia anual)
Lula: R$ 111.615.995,03
Dilma: R$ 105.359.749,99
Temer: R$ 66.018.287,49
Bolsonaro: R$ 66.859.775,58
Gasto da Presid�ncia com cart�o com cart�es (m�dia anual):
Lula: R$ 13.651.977,23
Dilma: R$ 10.168.224,19
Temer: R$ 6.352.463,95
Bolsonaro: R$ 11.297.276,77
J� na segunda-feira (23/01), uma nova leva de informa��es trouxe mais detalhes sobre o h�bito de consumo presidencial, com a libera��o das notas fiscais dessas opera��es, novamente a pedido da Fiquem Sabendo. Essas notas, por�m, foram divulgadas pelo governo em papel f�sico e e est�o sendo escaneadas pela organiza��o. Isso permite saber os itens exatos consumidos no cart�o.
A primeira leva digitalizada (cerca de 2,6 mil p�ginas, 20% do total) revelou que Bolsonaro usou o cart�o corporativo para comprar itens como picanha, caviar, fil� mignon e camar�o, al�m de combust�vel para as motociatas que realizava com apoiadores.
A organiza��o est� tentando obter acesso tamb�m �s notas fiscais das despesas dos governos anteriores.
A seguir, a BBC News Brasil explica melhor a diferen�a entre a planilha divulgada pelo governo e os dados do Portal da Transpar�ncia. E detalha tamb�m os n�meros de cada governo levantados pela reportagem.
Planilha x Portal da Transpar�ncia
O cart�o corporativo passou a ser adotado no governo Fernando Henrique Cardoso com objetivo de dar mais agilidade para compras emergenciais e de baixo valor, evitando os tr�mites burocr�ticos de uma licita��o. Seu uso, por�m, tem sido acompanhado de pol�micas em diferentes governos, j� que h� opera��es com valores vultosos pouco transparentes.
Esses cart�es s�o usados n�o s� para despesas diretas do presidente, mas tamb�m gastos de diferentes �rg�os, como os minist�rios ou o Gabinete de Seguran�a Institucional (GSI), que cuida da seguran�a presidencial. Um uso comum, por exemplo, ocorre em viagens oficiais de autoridades e servidores.
Os gastos com esses cart�es s�o disponibilizados a cada m�s no Portal da Transpar�ncia, uma ferramenta administrada pela Controladoria Geral da Uni�o (CGU) que permite acompanhar as despesas do governo. No entanto, parte do uso do cart�o � mantida em sigilo — ou seja, embora o Portal traga os valores totais gastos, n�o � poss�vel saber os detalhes de parte das opera��es, como o local da compra, o que foi adquirido e por qual servidor respons�vel pelo cart�o.
A justificativa costuma ser a seguran�a de autoridades ou garantir o sucesso de a��es sigilosas, como opera��es da Pol�cia Federal.

A organiza��o Fiquem Sabendo, especializada em transpar�ncia, chegou a solicitar a queda desse sigilo ao governo Bolsonaro, mas o pedido foi negado. A justificativa da recusa se baseou neste trecho da Lei de Acesso � Informa��o: "As informa��es que puderem colocar em risco a seguran�a do Presidente e Vice-Presidente da Rep�blica e respectivos c�njuges e filhos(as) ser�o classificadas como reservadas e ficar�o sob sigilo at� o t�rmino do mandato em exerc�cio ou do �ltimo mandato, em caso de reelei��o".
Com o fim do mandato de Bolsonaro, portanto, a justificativa para o sigilo caiu e as informa��es foram disponibilizadas pelo novo governo, junto com despesas de outros presidentes desde 2003, atendendo ao pedido da Fiquem Sabendo.
No entanto, o governo Lula liberou a planilha sem explicar o seu conte�do, o que levantou muitas d�vidas e questionamentos sobre qual seria exatamente o escopo das despesas divulgadas.
Assim como os n�meros do Portal da Transpar�ncia analisados pela BBC News Brasil, o conte�do dessa planilha indica que os maiores gastos teriam sido realizados pelo atual presidente, nos seus dois primeiros mandatos (2003 a 2010). Seus apoiadores, por�m, passaram a argumentar que os dados de Lula incluiriam despesas de todo governo — ou seja, n�o seriam apenas da Presid�ncia da Rep�blica, mas tamb�m de minist�rios.
Segundo essa argumenta��o, as despesas de Lula estariam infladas em rela��o a de outros anos, que seriam restritas aos gastos da Presid�ncia da Rep�blica.
No entanto, essa informa��o n�o procede. A BBC News Brasil questionou a Secretaria de Comunica��o da Presid�ncia da Rep�blica (Secom) no dia 13 de janeiro e, ap�s uma semana, o �rg�o esclareceu que os dados divulgados na planilha se referem apenas a gastos relacionados diretamente aos presidentes, registrados no Portal da Transpar�ncia como despesas da Secretaria Especial de Administra��o da Presid�ncia (unidade gestora identificada pelo c�digo 110001).
Ainda assim, h� diferen�as entre o conte�do da planilha e os dados dessa unidade gestora extra�dos pela BBC News Brasil diretamente do Portal da Transpar�ncia.
Um ponto que n�o foi esclarecido ainda pelo governo � se os dados incluem gastos dos presidentes em viagens ao exterior, por exemplo. A planilha n�o parece incluir essas despesas, enquanto a CGU disse � reportagem que "� poss�vel que despesas no exterior componham as transa��es" dos cart�es corporativos.
A nota da Secom diz ainda que est� produzindo uma nova planilha das despesas com cart�o. "Haver� uma nova publica��o em breve, uma vez que alguns registros n�o foram inclu�dos na extra��o original", respondeu o �rg�o.
A Secom ressaltou ainda que gastos do Gabinete de Seguran�a Institucional (GSI) que foram classificados como sigilosos "permanecer�o sem publica��o at� o posicionamento do GSI acerca da persist�ncia ou n�o das raz�es para classifica��o".
Segundo o �rg�o, o governo "divulgar�, juntamente com a nova planilha, os crit�rios (escopo) utilizados para extra��o (dos dados)".
Entenda o levantamento da BBC News Brasil
Diante do argumento de apoiadores de Lula de que n�o seria poss�vel comparar os gastos no cart�o corporativo porque as despesas do petista incluiriam mais �rg�os do governo do que as de outros presidentes, a BBC News Brasil fez duas an�lises.
A reportagem comparou tanto o total gasto por cada governo, como as despesas relacionadas diretamente ao presidente, por meio da Secretaria Especial de Administra��o da Presid�ncia.
Esses gastos s�o identificados pela CGU na categoria "cart�es de pagamentos do governo federal". Os dados disponibilizados v�o de 2004, segundo ano do primeiro governo Lula, at� outubro de 2022. Ou seja, os dois meses finais do mandato de Bolsonaro ainda n�o entraram no sistema.
Em ambos os casos, foi retirada uma m�dia anual dessas despesas para cada governo — como cada um dos presidentes governou por uma quantidade diferentes de anos, n�o faria sentido comparar o total.
Para essa compara��o, o gasto de cada ano foi atualizado pela infla��o (IPCA) at� dezembro de 2022, e depois foi retirada a m�dia de cada presidente.
No caso de Lula, como o Portal da Transpar�ncia fornece apenas dados a partir de 2004, foi feita a m�dia de sete anos de gest�o (2004 a 2010), ficando de fora o primeiro ano do mandato.
O valor total gasto pelo governo corrigido pela infla��o ficou em R$ 781.311.965,24, dando uma m�dia anual de R$ 111,6 milh�es.
J� o gasto da Secretaria Especial de Administra��o da Presid�ncia somou R$ 95.563.840,61 em sete anos, uma m�dia de R$ 13,6 milh�es.
Para Dilma, foram considerados os anos de 2011 a 2015 (cinco anos), j� que em 2016 ela foi afastada do cargo em abril. O total do governo deu R$ 526.798.749,95, e a m�dia anual ficou em R$ 105,4 milh�es.
A despesa da Secretaria Especial de Administra��o da Presid�ncia com cart�o somou R$ 50.841.120,94 nos cinco anos da presidente (R$ 10,2 milh�es em m�dia)
Para Temer, foram considerados apenas 2017 e 2018, j� que s�o os �nicos anos completos de mandato, o que significou um total de R$ 132.036.574,98 para o governo e uma m�dia de R$ 66 milh�es.
No seu caso, a Secretaria Especial de Administra��o da Presid�ncia gastou R$ 12.704.927,90 com cart�o nos dois anos, ou R$ 6,3 milh�es em m�dia.
E, para Bolsonaro, foi feita a m�dia dos quatro anos de governo (2019 a 2022). O total gasto por sua administra��o com cart�es deu R$ 267.439.102,32, com a m�dia anual em R$ 66,8 milh�es.
J� a Secretaria Especial de Administra��o da Presid�ncia somou R$ 45.189.107,08 no cart�o. Na m�dia anual, o gasto ficou em R$ 11,3 milh�es.
Os dados disponibilizados pela CGU n�o t�m uma apresenta��o padronizada. O Portal da Transpar�ncia mant�m apenas dez anos de gastos dos governos (2013 a 2022) para consulta online.
"Isso se deve � necessidade de se manter um volume administr�vel de dados em disco, de maneira a n�o comprometer o desempenho do Portal", explicou a institui��o.
J� as despesas com cart�o corporativo de 2004 a 2012 foram enviadas em planilhas de Excel ap�s a solicita��o da reportagem.
Sigilo questionado
Para Gil Castello Branco, secret�rio-geral da organiza��o Contas Abertas, o cart�o corporativo deveria ser destinado, sobretudo, �s despesas emergenciais ou imprevis�veis.
"Notadamente quando n�o h� tempo, ou conveni�ncia, para que seja feita uma licita��o e que sejam emitidos empenhos e ordens banc�rias", ressalta.
Na sua avalia��o, � compreens�vel que algumas despesas sejam sigilosas, como opera��es da Pol�cia Federal que n�o podem ser antecipadas com emiss�es de notas de empenho, descrevendo previamente os nomes dos agentes, o local, e a data das compras.
"Em f�runs internacionais, s�o debatidos, inclusive, o sigilo ou n�o, por exemplo, da padaria onde � comprado o p�o para a resid�ncia oficial do presidente da Rep�blica. Supostamente, essa informa��o facilitaria um eventual atentado", acrescenta.
Na sua avalia��o, por�m, parte das informa��es n�o � divulgada porque as autoridades temem algum constrangimento.
"Costumo dizer que os presidentes n�o t�m sal�rio, e sim poupan�a. Tudo o que imaginarmos relacionados ao dia a dia da fam�lia presidencial e seguran�as s�o pagos pelos cidad�os. E os presidentes, seja quem for, comem iguarias preparadas por chefs famosos, vestem-se bem orientados por estilistas, t�m cabeleireiros e outros servi�os pessoais � disposi��o, consomem bebidas alco�licas, etc", exemplifica.
"S�o despesas pagas pelos contribuintes que, se reveladas, pensam as autoridades, geram constrangimento perante os eleitores", acredita Castello Branco, que defende a ampla divulga��o das despesas com os cart�es corporativos, com exce��o apenas das que envolvam a seguran�a do presidente e de seus familiares.
A planilha divulgada pelo governo Lula revela, por exemplo, que todos os quatro presidentes eram clientes do mercado La Palma, um com�rcio gourmet em Bras�lia.
No total, a Presid�ncia da Rep�blica consumiu cerca de R$ 3,6 milh�es nas duas unidades do mercado, em valores n�o atualizados pela infla��o. Lula, em oito anos, usou o cart�o em compras que somaram R$ 1,175 milh�o. Dilma, por sua vez, gastou cerca de R$ 1,2 milh�o em pouco mais de cinco anos. J� as despesas de Temer somaram R$ 492 mil em cerca de dois anos e meio. Enquanto Bolsonaro consumiu cerca de R$ 680 mil em quatro anos.
Pol�micas novas e antigas
Essas despesas t�m sido alvo de pol�micas desde que o cart�o corporativo foi adotado no governo Fernando Henrique Cardoso.
Em 2008, no segundo mandato de Lula, o Senado chegou a instalar uma Comiss�o Parlamentar de Inqu�rito para apurar o uso dos cart�es. Um dos investigados foi o ent�o ministro dos Esportes, Orlando Silva (PCdoB-SP), que virou alvo ap�s pagar R$ 8,30 em uma tapioca em Bras�lia com o cart�o corporativo. Ele alegou que se enganou no momento do pagamento e que ressarciu o valor, j� que o cart�o s� poderia ser usado em viagens.
Tamb�m sofreu questionamento uma despesa de R$ 20.112 com di�rias em hotel e alimenta��o, em uma viagem ao Rio de Janeiro para qual levou a esposa, sua filha beb� e uma bab�. Ele argumentou que estava em agenda oficial e que a presen�a de sua mulher fazia parte do protocolo da viagem.
Apesar disso, Silva decidiu devolver do pr�prio bolso R$ 30.870,38 gastos com o cart�o em dois anos como ministro.

No caso de Bolsonaro, algumas despesas tamb�m chamam aten��o, como gastos elevados com alimenta��o e abastecimento de combust�vel em dias que o ex-presidente realizou motociatas com apoiadores.
Segundo levantamento do jornal O Globo, o uso do cart�o corporativo soma R$ 1,5 milh�o em dias de motociata. A maior parte envolve hospedagens em hot�is de alto padr�o (R$ 865.787), alimenta��o (R$ 580.181), apoio log�stico (R$ 36.047) e gasolina (R$ 18.691).
Quando Bolsonaro realizou uma motociata em S�o Paulo no dia 15 de abril de 2022, por exemplo, o cart�o da presid�ncia realizou sete compras no valor total de R$ 62.206 na lanchonete Tony e Thais, que fica em Moema.
Nessa mesma data, tamb�m foram gastos no total R$ 2.614,61 em dois postos de combust�vel.
Ap�s a divulga��o desses dados, foi levantado o argumento de que as despesas indicam a possibilidade de o cart�o da presid�ncia ter sido usado n�o s� para os gastos da equipe presidencial, mas para fornecer lanches e combust�vel para os apoiadores que participaram da motociata.
Segundo Gustavo Badar�, professor de Direito Processual Penal da Universidade de S�o Paulo, se isso tiver ocorrido, o ex-presidente poderia ser enquadrado no crime de peculato (desvio de dinheiro p�blico), que tem pena de 2 a 12 anos de pris�o, al�m de multa.
Al�m disso, poderia ser cobrado a ressarcir os cofres p�blicos na esfera civil.
Outras despesas podem levantar esse tipo de suspeita. A planilha revela que Bolsonaro gastou R$ 55 mil em uma padaria no Rio de Janeiro um dia ap�s a festa de casamento do seu filho Eduardo Bolsonaro, que ocorreu na cidade em 25 de maio de 2019.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64380490